Meus olhos sobem morosos na fachada do prédio de seis andares, uma arquitetura pobre e comum para condomínios residenciais do centro de São Paulo. Retiro os óculos escuros com a mão livre e o encaixo entre os botões abertos da camiseta. Encho o pulmão e o esvazio rapidamente, pois encontro-me no centro de uma situação delicada e não sou um homem sensível que saiba lidar com circunstâncias frágeis.
— Merda, tenho que subir.
Durante o caminho fui obrigado a desligar o celular, lidar com meus pais no ápice da minha fúria não é recomendável. Não há dúvida que as notícias chegaram na California e a UP é o assunto mundial.
O apartamento de Raica é no primeiro andar, opto pela escada, é o tempo que garante um controle racional. No andar, de três, uma das portas está aberta, é nela que entro, sentindo-me um completo idiota com o imenso buquê na mão.
— Nicholas?! — A voz macia move meu pescoço de um lado para o outro. Dou-me conta que estagnei na soleira ao reconhecer meu sócio escorado na bancada acoplada com a cozinha, Deloy parece uma peça decorativa no pequeno espaço. — Entre.
— Claro!
Os movimentos controlados levam-me à frente da sua estrutura pequena, encaro o rosto bonito, cabelos castanhos claros, presos num coque bagunçado no topo da cabeça e lábios saudáveis de um rosa natural.
Aurora é uma mulher belíssima, apreciei sua beleza no primeiro contato, fora a beleza externa, essa garota tem algo especial que a ilumina e faz iluminar todos à sua volta, esse é o principal motivo do meu ódio não decair sobre ela com todas as forças. Ela possui estímulos gritantes para considerá-la como moeda de troca. É noiva do meu irmão, é a gama de prioridades dele. Ele a ama mais que a própria vida. Porém, mantenho essa relação estranha com ela. Relação, obviamente, desconhecida por David, que mesmo depois do meu afastamento, do acidente, orquestra seus seguranças ao redor da sua garota como um manto de proteção. Não o condeno por resguardar seu coração, pois Aurora é o coração do meu irmão.
Atingir essa mulher é lhe sugar a alma. Compreendi a dinâmica, rápido, só não a usei ao meu favor quando devia.
Tolice ou não, não usei.
As imagens do acidente, da quantidade absurda de sangue manchando sua roupa é razão de algumas noites em claro. Mesmo depois do seu perdão, ainda é um pesadelo que me atormenta, não vou negar.
— Que gentileza. — Ela se refere ao buquê com os olhos fixos nele. — Raica está no banho, posso cuidar disso. — Estende a mão e lhe entrego o maço. — Raica não para de receber carinho.
Observo a quantidade de rosas espalhadas em diversos pontos da sala e fito meu amigo, entretido com uma xícara de café.
— Cheguei não faz vinte minutos.
— O que faz aqui, Deloy? — indago seco.
O descarado finge naturalidade, depois que saímos do hospital a função dele era lidar com os assuntos burocráticos, enquanto eu cuidava da investigadora, perdi a parte em que a casa de Raica entrou no itinerário.
— O mesmo que você. Solto uma lufada de ar.
— O mesmo que eu? — Avanço um pouco mais, fecho o espaço para que Aurora não ouça. — Tá de brincadeira? Não disse nada sobre vir aqui.
— Devo esse tipo de explicação a você? Não lembro.
Não é o momento para prosseguir com essa discussão tola. Olho minha cunhada, ela une meu buquê a outros dois postos na bancada minúscula. Como eles conseguem viver num espaço tão limitado? Me sinto sem ar.
— Onde estão seus seguranças, Aurora? — Uma observação válida, uma vez que a ausência de homens de preto cercando o diamante de David é bem estranho.
— Estão discretos, mas se conhece o seu irmão estão por perto e ele sabe da presença de vocês.
— Nossa… — exclamo surpreendido. — Meu maninho evoluiu ao permitir sua novinha sozinha com dois homens.
— Sem ironia, Nicholas. — Ela ignora a provocação. — Café?
— Não, obrigado. Só preciso de garantias de que a srta. Vásquez está bem, não quero incomodar.
— Ela…
Pisadas brutas, pesadas massacraram o assoalho do lado de fora.
Aurora se cala e todos miramos a porta.
— Lucca? — ela fala aliviada ao reconhecer o rapaz ofegante que surge na entrada, logo em seguida dois seguranças camuflados nas paredes do corredor do hall, só pode, brotam como fantasmas nas costas do cara. Aurora acena autorizando sua liberação, eu e meu sócio nos olhamos, confusos. — Entre, que bom que veio.
Ele pesa a cabeça na nuca e um choro dolente pode ser ouvido. Aurora caminha na direção do rapaz e o abraça. Cruzo os braços, provavelmente são amigos pelo abraço apertado que presencio.
David merece essa foto, acabaria com sua paz.
— Cadê ela? — ele pergunta depois de eliminar as lágrimas dos olhos com o dorso das mãos.
— No quarto. Ele nos percebe.
— Desculpe, sou Lucca, sei quem são vocês, os donos da UP. Tenho a impressão de que seu maxilar trincou.
— Lucca… — Aurora intervém, a energia do rapaz pesa pro nosso lado. — Nicholas e Deloy vieram para ajudar.
— Depois da morte do Renan, que tipo de ajuda eles ofereceram?
Ah, um passo inconsciente acontece, não suporto insinuações vindo dos outros, mas Deloy toma a frente, não permite que eu revide.
— Entendemos a sua dor, acredito ser amigo de Renan, mas estamos assim como vocês, procurando os culpados e vamos punir cada um deles.
— Eu quero o pescoço de cada um deles. — Repentinamente, ela aparece. O batente emoldura uma pintura bela pela linda mulher, mas melancólica pelo suplício da sua perda. Raica exala amargura, cabelos cacheados molhados cobrindo seus ombros, olhos e semblante feridos, afetados, polidos de ódio. — Consegue isso, Nicholas?
— Os pescoços são meus, podemos negociar os braços e as pernas.
— Não foi uma piada ao que parece.
— Não é brincadeira, Nicholas — repreende minha cunhada, indo ao encontro da amiga.
— Por acaso tenho cara de comediante?
Raica não desvia o olhar ferido do meu, tenta garantir numa cobrança silenciosa a certeza de que seu irmão será vingado.
— Amiga, fiz um caldo, toma, por favor.
— Obrigada, Jú, não tenho fome. — Perco a intensidade verde dos seus olhos para o cara abusado na entrada. — Lucca, que bom que veio.
O marrento ocupa o lugar da Aurora, toques e carícias íntimas o aproxima da garota.
— Srta. Vásquez, voltamos em outro momento, sei que precisa descansar, sobre os detalhes do…, você sabe. Já estamos cuidando de tudo. Nós verdadeiramente sentimos muito — quem diz é Deloy, eu permaneço de braços cruzados observando a interação dela com o amigo boca esperta.
Raica se desvencilha do contato caloroso do então amigo e anda em linha reta, na minha direção. Seu corpo não é capaz de cobrir o meu, tanto que preciso descer o pescoço para ter seus olhos como centro.
— Pegue os malditos que mataram o meu irmão. Pegue-os, por tudo que é mais sagrado, me prometa. Me prometa, Nicholas! — A voz falhada dificulta a pronúncia de uma palavra ou outra, embargada no choro constante.
Engulo em seco o ar da responsabilidade que tenho em mãos.
Engulo e assumo, é o mínimo que posso garantir a ela.
Seguro seu queixo, firmando nosso contato, alinhando nossos narizes numa linha tênue de pele de cores diferentes, temos aqui um desejo mútuo, algo que compartilhamos com a mesma intensidade.
— Eu prometo.