A noite chegou devagar, tingindo o céu com tons de vinho e dourado, como se o universo quisesse me lembrar que beleza ainda existia mesmo nos dias cinzentos. Sentei na varanda com uma taça de vinho nas mãos, enquanto Clara e Daniel discutiam na cozinha sobre o molho do jantar. Eu precisava daquele silêncio. Ou, pelo menos, da ilusão dele.
Meus pensamentos estavam longe. Longe demais, talvez. Desde que pisei naquela casa, algo dentro de mim parecia inquieto. Não era só o bloqueio criativo, nem a pressão do livro, nem as cobranças do meu editor. Era... outra coisa. Uma presença que parecia ocupar cada canto, mesmo sem fazer barulho. Um olhar que ainda queimava minha pele como se tivesse me tocado de verdade. Gabriel. O nome dele vibrava na minha cabeça como uma nota grave de piano. Não era apenas o jeito como ele me olhou — aquilo poderia ser coincidência, ou apenas a minha imaginação fértil implorando por drama — mas o que senti quando vi aqueles olhos castanhos escuros me encarando. Um olhar que parecia carregar séculos de silêncio. Ouvi passos no chão de madeira e me preparei para responder alguma piada da Clara, mas quando olhei para o lado, meu corpo congelou. Era ele. — Desculpe incomodar — disse ele, com a voz grave e baixa, como se cada palavra tivesse o peso exato para me desmontar. — Só precisava pegar umas ferramentas no depósito. — Está perdoado — respondi, tentando soar indiferente, mas minha voz saiu baixa demais. Quase falhei comigo mesma. Ele parou por um instante. Não parecia alguém que puxava conversa à toa, e mesmo assim, não saiu de imediato. Seu olhar vagou pela paisagem, e por um segundo, ele não era o arquiteto misterioso e sim um homem cansado do mundo. — Você é escritora, certo? Assenti, surpresa. Não sabia que ele sabia. — Tô tentando, pelo menos — murmurei. — Mas as palavras me abandonaram há algum tempo. — Às vezes elas só estão... se escondendo — disse ele, como se aquilo fizesse sentido. — Talvez você precise sentir mais antes de escrever. Aquelas palavras ficaram presas dentro de mim como se tivessem sido tatuadas na minha pele. Sentir mais. Como, se eu mal conseguia existir sem me cobrar por tudo? — Talvez — respondi. — Mas o prazo do meu editor não tá muito interessado nas minhas emoções reprimidas. Ele deu um leve sorriso. Quase imperceptível. Mas foi o suficiente para acelerar meu coração. — Emoções reprimidas costumam causar explosões. Cuidado com isso — disse ele, antes de virar as costas e seguir seu caminho com passos firmes. Fiquei ali, sozinha de novo. Mas não completamente. Porque, de algum jeito que eu não entendia, a presença dele ainda me envolvia como uma sombra quente. Um tipo de ameaça que eu secretamente queria que se concretizasse. E, pela primeira vez em semanas, minha mente gritou: Escreve. Agora. Corri para dentro da casa, largando o vinho na varanda. Subi as escadas com pressa, tropeçando nos próprios pés, e abri o notebook como quem abre a porta de uma prisão por dentro. Os dedos tremiam sobre as teclas, mas a história estava ali. Um homem de olhos escuros. Uma mulher tentando se encontrar. Um desejo escondido sob a pele. Eu estava escrevendo de novo. E tinha certeza de que, de alguma forma, isso era culpa dele. Gabriel.