Sr. Rotina: Chorão

1

O céu sabe ter seus momentos de clichê, chorando copiosamente nesta preguicenta manhã de domingo. Se eu me descolar da realidade desenrolando-se diante dos meus olhos, da identidade daquela sendo velada por família e amigos, posso até me imaginar habitando uma dessas cenas fúnebres de um drama das oito qualquer. Lá fora a chuva cai torrencialmente; nuvens barulhentas, vento que uiva, ar gélido. Aqui dentro da capela as paredes esquentam os corpos vivos, nos enfiando num bolso seco e protegido de uma cidade inexoravelmente molhada. O céu chora junto com aqueles deixados pela jovem Marjorie. Mais clichê, impossível. 

Talvez seja esse ar de cafonice o responsável pelo descolamento. Sei que estou aqui, sentado, assistindo o serviço como todos os outros, mas não é essa a sensação... Ao menos, não é a sensação correta. Meus olhos dizem que estou no meio de um funeral, minha mente, por sua vez, mente pra mim, dizendo que eu poderia estar de volta no parque, ou de frente para a TV desligada, ou até mesmo fazendo cálculos em planilhas no trabalho. Eu poderia estar flutuando fora do meu corpo, mas não neste lugar. Se eu, de fato, estou aqui, isso significa que Marjorie do 102 realmente está morta, e eu ainda não estou pronto para viver o fato. Eu entendo que a morte é a entidade mais democrática e, de certa forma, equânime das quais já ouvimos falar, pois não faz distinção de gênero, idade, classe social e todos os outros eteceteras. Um dia a morte bate à porta e não há o que fazer. Todavia, no caso de Marjorie, e de tantos outros corredores, incluindo a Bolt do parque, eu me pergunto se a mão da morte não está sendo forçada de alguma maneira. Marjorie não teria partido se não tivesse pulado do alto do prédio. Não é uma certeza, mas uma probabilidade bastante forte. Digo mais... Se ela tivesse morrido ontem por qualquer outra causa, qual a probabilidade de terminar no chão, de frente à portaria, daquele jeito? 

Há um zumbido atrás de mim, localizado nas últimas fileiras do sagrado lugar, e meus ouvidos captam muito claramente aquilo que tenta, sem sucesso, se passar por um discreto sussurro: 

_ “Eu ouvi que eles tiveram que raspar partes do corpo do chão...” 

Esta informação, em particular, eu ouço pela quarta vez. Parece, inclusive, ser a raiz de todo o espanto por aqui; a forma escolhida por Marjorie em tirar a própria vida, não a grande escolha em si. De fato, a queda fora tão bruta que partes do corpo grudaram no asfalto. Ontem, após ter ficado estarrecido com a notícia e gastado mais de uma hora encarando o televisor desligado, comecei a caminhar pela sala e fiz uma parada na janela de grades de alumínio, sabendo que a vista de meu apartamento, de cima para baixo, daria direto para frente da portaria, ou seja, o epicentro da tragédia. Da altura de quatorze andares, o corpo de Marjorie parecia tudo, menos um corpo, especialmente por baixo da lona preta. Se eu não soubesse o que tinha acontecido, não faria a associação. Parecia um saco de lixo vazio na calçada, esperando qualquer brisa para sair voando. Foi dito que a região do corpo que mais sofreu foi a cabeça, a qual batera contra o meio-fio da rua, fazendo com que o crânio e cérebro, em termos leigos, explodissem. Por isso o caixão está fechado, com uma foto sobre o mogno brilhante e, certamente, nenhum corpo para dá-lo o peso devido. O cadáver ainda está no necrotério, sendo revisado pelo médico legista, mas, a família quis apressar o velório. 

Na foto, logicamente, está Marjorie, sorrindo como se alguém tivesse acabado de contar uma piada extremamente engraçada. Não é desses sorrisos forçados de foto. Seus dentes brancos se alinham numa fila perfeita, iluminando um rosto redondo queimado de sol; o nariz é empinado e termina em ligeiro formato de batata; os olhos assemelham-se a duas piscinas de tão azuis, parcialmente cobertos pela franja de seus longos cabelos dourados. Às vezes, esqueço como é linda essa Marjorie. 

Era... Era linda.

No momento, a foto parece zombar de todos nós, sabendo da incongruência entre o belo sorriso e o caixão vazio devido ao detalhe de que, ao fim do trabalho da polícia, não havia muito de Marjorie a ser depositado no caixão. O velório é mais para a família do que para a defunta, como é em todos os velórios. Exceto que este é, de alguma forma, cruelmente mais honesto. 

Fico olhando para todos os lados, pela primeira vez na vida encorajado a apreciar a decoração característica de uma igreja católica. Os vitrais coloridos são muito bonitos. Em dias ensolarados seriam ainda mais, enchendo o recinto num prisma de cores. As paredes deixaram a aparência antiga para trás, tendo sido reformadas, mergulhando o lugar em um belo contraste entre passado e presente. Os bancos são todos de madeira, daquele tipo tradicional nos quais o assento é único, sem divisões, e à frente existe um compartimento onde sempre achamos uma Bíblia ou um hinário. Eu já havia examinado o meu: não tinha Bíblia nem hinário, mas encontrei um papel de bala amassado, um panfleto de academia e uma moeda de cinquenta centavos. O corredor principal é forrado por um tapete vermelho, que se estende da entrada até o altar, estranhamente remetendo-me mais à festa do Oscar do que aos sacros rituais milenares. Em dias mais felizes, esta capela, até que charmosa, deve ser um excelente lugar para troca de votos e alianças, exceto pelo fato de estar dentro de um cemitério, claro. Atrás do altar, Jesus, crucificado, nos olha com uma expressão triste, parecendo lamentar por todos nós. Creio que sua imagem possa proporcionar um minúsculo conforto para os pais de Marjorie, em prantos lá na primeira fila de bancos. O padre, à frente do caixão e de Jesus, está falando faz uns vinte minutos, mas, eu não consegui prestar atenção no início e não vou conseguir ouvir agora. É engraçado que meus ouvidos resolveram selecionar o que preferem escutar. O sermão do padre? Não, obrigado. A mãe de Marjorie soluçando de tanto chorar? Sim, por favor. 

As pessoas, para meu alívio, não estão todas de preto. Eu estou pelo banal motivo de que esta era a única camisa passada e razoavelmente formal para a ocasião. Sempre tenho a sensação de que as roupas pretas de velório são as mais mentirosas que existem, afundadas mais em convenção social do que pesar genuíno. À volta, um mar de vermelhos, azuis, verdes, cinzas, muito cinza, mesmo jeans... Não importa. De repente, tudo vai sumindo e sendo transportado para o preto, branco, iluminado e sombreado, ao que a memória evoca o desenho do serviço funerário no caderno da Bolt. Imagino qual seria o retrato que ela tiraria deste aqui. E quanto ao retrato dos restos de Marjorie? O que ela desenharia em seu livro se visse o cadáver no chão? Acredito que, dada à oportunidade de transformar horror em arte, Bolt desenharia as expressões de espanto nos rostos daquela multidão que encobria a visão do corpo no momento em que eu voltava pra casa ontem. Se eu for mais selvagem em minha imaginação, pode até ser que ela esquecesse de todo o caos e replicasse apenas o carro de polícia parado ante a cena macabra. 

Um novo zumbido anuncia um novo rumor, trazido a mim pelo mesmo par de fofoqueiros sentados aqui perto.

_ E se não foi suicídio?

_ A polícia já começou a investigar...

_ Ela tinha um namorado esquisitão, a Marjorie...

_ Está uma onda de crime passional esses dias...

As pessoas adoram usar reticências quando querem falar muito, mas não têm nada de bom a pôr para fora. Lançam sugestões maldosas sem nunca as terminar, apenas disseminando mais veneno no ar, do tipo que intoxica quem estiver perto de imediato.

Coitado do namorado que, se é mesmo esquisitão, não posso dizer. Não o conheço, então não posso fazer juízos de valor tão facilmente. Posso dizer o que vejo: um jovem rapaz de olhos vermelhos e cansados, sentado ao lado da sogra, bravamente consolando-a no máximo de suas habilidades. Nem mesmo sei seu nome. Seu Agnaldo deve chamá-lo de “o namorado da menina do 102”. Marjorie foi minha amiga de infância e parte da adolescência, no entanto, hoje em dia, estamos... Estávamos (há que se usar o tempo verbal correto) longe de sermos íntimos. Falávamo-nos quando nos esbarrávamos, vez por outra. Há umas semanas atrás, o próprio Seu Agnaldo avisara que ela queria me falar e...

Revelações podem ser vertiginosas.

Nó na garganta. Saliva que força para baixo aos trancos e barrancos um gole vazio.

Daquele recado nada saiu. Eu nunca respondi. É como se o Seu Agnaldo não tivesse feito seu trabalho. “A menina do 102 queria saber que horas você estaria em casa, Bolt”.

Curioso.

A menina do 102 nunca vai saber, e Bolt, não a Bolt do parque, mas, este Bolt aqui, o Bolt do 1404 também nunca vai saber o que ela queria. Esta capela está inesperadamente apertada demais para mim. Na minha mais nova urgência por ar, levanto, ainda que não vá longe. Minha digníssima mãe segura meu braço com a força da ursa que ela realmente é. Sem brincadeiras. A gente a chama de ursa lá em casa, e com bons motivos. Da estrutura corpulenta aos maneirismos sutis como tratores, ela é uma ursa. Sua fisionomia austera não demora a formar frases que me fazem ter cinco anos de novo.

_ Onde pensa que vai, mocinho? _ Um sussurro de mil decibéis.

_ Lá fora. Preciso de ar.

Nessas horas, somente a verdade, nada além da verdade. Normalmente, essa resposta não seria o suficiente para ela, porém, deve haver algo em meu semblante que a faz mudar de ideia e dizer:

_ Não demore. É de mau tom sair andando no meio do velório assim.

Deve, sim, ser de mau tom; concordo. Todavia, a náusea revirando meu estômago pode provocar uma situação de tom muito pior. O padre, inspirado, continua falando em seu timbre apaziguador. Não entendo como ele consegue parir tantas palavras belas de um corpo grudado no asfalto e da foto de um fantasma. Não há lirismo algum em um cérebro espatifado. Aposto que a mãe de Marjorie está se segurando para, ela mesma, não espatifar o cérebro do padre, talvez com auxílio do guarda-chuva. Por outro lado, quem sabe, ela queira que o sermão dure para sempre, ou, ao menos, na culminância de seu potencial, a fim de permanecer perto daquele caixão e daquela foto, nunca chegando ao adeus final.

Tentei andar discretamente pelo corredor lateral da capela que, quando se está sentado nos últimos bancos, parece minúscula, quando se é o único em pé no meio de um serviço funerário, ganha dimensões similares à Disneylândia. O passo apressado, quase um trote, me faz lembrar a corrida fracassada de ontem de manhã. Vou até a lateral externa da capela, percebendo que a chuva deu uma trégua, mas dá para pressentir na umidade contínua do ar que logo voltará à ativa. É como se estivesse no intervalo entre o primeiro e segundo tempo desta partida da choradeira. Uma figura conhecida recostada contra a parede da capela, não parece se importar se seu agasalho sujou. Na cabeça um gorro velho vermelho, nos lábios um cigarro aceso. Estou surpreso de vê-lo aqui; poderia estar mais.

_ Não vai entrar, Seu Agnaldo?

_ Hoje não é meu turno na portaria. _ O velho não responde minha pergunta, mas, pelo menos, não questiona o que eu estou fazendo do lado de fora.

_ Seu cigarro é muito fedorento. _ Declaro, coçando meu nariz.

_ Ninguém está obrigando você a ficar aqui fora, Bolt.

Contra fatos não há argumentos. Entre o cigarro asfixiante e a capela claustrofóbica, vou parar do lado do Seu Agnaldo, igualmente recostado na parede e molhando minha camisa. Não é apenas o céu que está cinza. O cenário inteiro, o chão, as árvores, o cocô do cachorro de rua que deve ter perambulado por aqui não faz muito tempo, tudo está coberto por uma fina, vaporosa camada de cinza claro. Tudo está meio-morto hoje, com exceção de Marjorie, que está completamente morta. 

_ Depois que você saiu para a sua corrida ontem, eu comecei a ler o jornal. Não lembro quanto tempo passou. Uns vinte minutos, sei lá. Estava lendo a porcaria do caderno de esportes quando...

_ Ah! 

Enquanto eu estava correndo, Marjorie estava largando a corrida em grande estilo: voando.

_ Foi o barulho, Bolt. Parecia uma bomba, só que mais... Concentrada. Eu nunca ouvi uma dessas em pessoa, só nos filmes, mas, por Deus, pensei em bomba. Achei que algum maluco terrorista estivesse na cidade. Aí me lembrei de que nunca tivemos malucos terroristas na cidade, mas para tudo existe uma primeira vez. Por que não para o terrorismo? 

Seu Agnaldo, agora vejo, é desses que dispara a falar quando transtornado. Uma verdadeira metralhadora que em nada combina com a imagem taciturna do velho calmamente fumando seu cigarro do lado de fora da capela.

_ O susto foi tão grande que eu rasguei o caderno de esportes! Fui correndo para o portão e aí... 

Seu Agnaldo tira o cigarro da boca, ainda nem pela metade consumido, joga-o no chão e esmaga-o embaixo do tênis. Ato contínuo, saca o maço do bolso do jeans desbotado, como a uma arma, pressiona a parte de baixo e (Opa!) o cigarrinho pula amigavelmente para seus dedos enrugados e ágeis. O isqueiro entra e sai de cena rapidamente, como suas faíscas sugerem. Fumaça dá o ar de sua graça, brincando de ciranda com o dia cinza. Suspeito que Seu Agnaldo fez toda essa magia para não ter que falar o que viria a seguir, afinal, ele foi o primeiro a achar o corpo. 

_ Estou sem comer desde ontem. _ Ele informa. 

Miolos mexidos no café da manhã, suponho, fazem isso com um homem. Seu Agnaldo quer falar, mas, ao mesmo tempo, quer calar. 

_ Lembra-se daquela vez que quebramos o farol do carro daquele cara? _  Velórios são o lugar comum de se trocar lembranças, anedotas de dias melhores que nada dizem respeito ao ar de morte que impregna a igrejinha. Estou abrindo o cofre das memórias, confesso, por Seu Agnaldo. Francamente, não acho que fará muito efeito. Os dedos que seguram o cigarro estão trêmulos.

_ Aquele cara _ ele diz em reprimenda _ era o delegado. Eu avisei para não jogarem bola na rua. Vocês não passavam de dois pestinhas encrenqueiros.

Não sei se gargalhei da rabugice do velho ou da lembrança em si. Eu era um moleque levado, como dizia meu pai. Do tipo que vivia cheio de roxos e machucados, colecionava band-aids e esparadrapos pelo corpo, arrancava tampo dos dedos correndo, com ou sem chinelos, por onde ia. Já quebrei o mesmo braço três vezes e o médico disse que é um milagre ele ainda funcionar tão bem. Marjorie assinara o nome em todos os três gessos. Quando ela quebrou a perna, eu assinei meu nome umas vinte vezes, não querendo deixar espaço para mais ninguém. Marjorie era como eu, ou pior do que eu, pois sua carinha redonda de querubim ridícula impedia as pessoas de verem a diaba que ela realmente era, o que significa dizer que todas as nossas travessuras, sem exceção, idealizadas pela cabecinha mirabolante dela terminavam sempre em minha conta. Ninguém nunca suspeitava de Marjorie, mesmo daquela vez em que tivemos a brilhante ideia, no alto de nossa veia artística, de decorar as paredes do banheiro da escola. Aquilo havia sido obviamente um trabalho feito por mais que um par de mãos. Uma lata de tinta vermelha depois (acredito) que a diretora não apreciou muito nossa estética, especialmente as obscenidades desenhadas aqui e acolá. Um infortúnio, de verdade. Os alunos com certeza riram bastante, especialmente daquele boneco de neve cujo nariz não era uma cenoura. 

_ Eu me lembro. Fiquei de castigo por dois meses por causa disso. Ainda tive que trabalhar para pagar outro farol.

_ Ah, sim, você lavou os carros de todos os moradores do prédio. Enquanto isso, a menina do 102 ficava na sombra e água fresca...

_ Ninguém nunca soube que eu tive uma ajudante, mas, o que se pode fazer? Michelangelo teve ajudantes, mas só ele ficou famoso pelo teto da Capela de Santa Sofia. _ Seu Agnaldo me olha como o professor de História costumava fazer, sempre que eu soltava alguma asneira em classe, tirando o detalhe de meu professor nunca me acertar um tapa no pescoço desse jeito. Descobri mais um fato sobre meu porteiro.

Número quatro: Seu Agnaldo tem uma mão pesada demais para um ancião de seu porte.

_ Em primeiro lugar, seu burro, Santa Sofia é uma catedral. O teto pintado por Michelangelo é o da Capela Sistina. Em segundo lugar, você deveria entrar lá agora e pedir perdão de joelhos ao bom Jesus por se comparar a Michelangelo. _ Com o polegar, ele indica a parede onde estamos encostados. Não sei o que é mais surreal aqui. O fato de que estamos do lado de fora de uma capela, o fato de que Seu Agnaldo entende de História da Arte, ou o fato de que eu nem sequer mencionei minha contribuição artística na parede do banheiro da escola e agora estou com vergonha pela ironia da situação. Seja como for, tapas no pescoço à parte, minha intenção era tirá-lo desse canto escuro onde se encontrava ainda pouco. 

_ Você era um bobão, isso, sim. Fazia tudo como a menina do 102 mandava e ainda levava a culpa. _ Acho incrível como, de todas as pessoas no mundo, justo Seu Agnaldo nunca foi enganado pelos encantos de Marjorie.

_ Eu era um cavalheiro _ retruco, insistente. _ Olha a diferença!

_ Você era caidinho por ela.

_ Era difícil dizer não para Marjorie... _ Nostalgia colorida me leva para longe da tragédia e para perto das coisas boas. Por exemplo, o dia em que a presenteei com um pacote tamanho extragrande de M&M’s e ela me fez comer todos os amarelos. Nunca entendi porque ela nunca comia os amarelos e nunca perguntei. Mais uma curiosidade que nunca será saciada. 

_ Mas sabe, Seu Agnaldo, sempre valia à pena. Toda vez que eu ficava de castigo ou era punido na escola, Marjorie me dava doces. 

Funcionou muito bem durante nossa infância. O caso é que, até os quinze, ela continuou com o mesmo tipo de recompensa. Foi assim, até o dia em que o balde de gelo da responsabilidade caiu em nossas cabeças e resolvemos estudar mais, tentar faculdade e arranjar empregos, nessa ordem. Pouco a pouco, perdemos contato, sendo que nem eu, nem ela fizemos muita questão de retomar a amizade na intensidade de antes. Vai ver, acho eu, que nosso tipo de amizade só funcionava em tempos mais juvenis. Nem mesmo tive a curiosidade de saber com o que Marjorie trabalhava.

_ Ah! _ diz Seu Agnaldo, com ares de iluminação _ Então era assim que ela comprava seu silêncio. Sempre achei que aquela peste tinha talento para mafiosa.

Talvez, minha mente traz uma ideia absurda e divertida para mim, era com isso que ela trabalhava. Afinal, ela tinha o dom. Pode ser que tanto Seu Agnaldo quanto eu estejamos exagerando nos adjetivos, embora nenhum deles esteja muito afastado da verdade, para nos distanciarmos mais dos acontecimentos do outro lado da parede. 

_ Me dá um cigarro.

_ Desde quando você fuma?

É uma pergunta válida, Seu Agnaldo, merecedora de uma resposta igualmente válida.

_ Eu posso começar agora!

Meu porteiro olha para mim com firme e desdenhosa incredulidade, porém, com os mesmos movimentos ensaiados, me oferece um cigarro de seu maço e o acende. Seguro o objeto entre os dedos polegar e indicador, os quais, repentinamente, parecem desajeitados e gordos como salsichas, ao apertarem o cigarrinho, sem conseguir disfarçar meu repentino fascínio. É justo, afinal, meu pai não fuma, minha mãe não fuma e minha irmã, creio eu, também nunca fumou. O único conhecido fumante é um colega de trabalho, e ele está tentando parar, alegando preocupações com a saúde. Seu Agnaldo, quem, eu imagino, deve fumar há pelo menos meio século, possivelmente já venceu a fase de se importar com essas coisas pífias, a saber, pulmões pretos. Para que ocupar a mente com isso? Existem mil e uma formas terríveis de se tirar a própria vida. Saltar de um prédio de vinte andares sem que isso seja um esporte acompanhado de paraquedas, ou câncer de garganta, são apenas duas delas. Será que Seu Agnaldo se considera tão suicida quanto Marjorie?

_ Vai fumar ou vai guardar de souvenir?

Eis mais um fato sobre Seu Agnaldo.

Número cinco: em tempos de tristeza, nervosismo ou uma combinação de ambos, seu temperamento torna-se ultra sarcástico. Normalmente, ele está mais para vovô pacífico de portaria de prédio. A gente só conhece as pessoas depois de um suicídio e um funeral, não é mesmo? 

Ponho o cigarro na boca, como se fosse (vamos dizer...) um peixe fora d’água, tamanha estranheza, lutando contra o gosto ruim que já penetra o paladar, claramente emitindo um sinal de que “não, não, Seu Agnaldo, não vou guardar de souvenir”. Admito que mostrar-me convincente virou uma batalha. Muito bruscamente, uma montanha de fumo invade minha boca e nariz, e eu, tarde demais, percebo que não possuo conhecimento técnico para expulsá-la. Chego à conclusão de que todos os fumantes devem vir de uma linhagem muito específica de chaminés.

_ Olha aí, desperdiçando meu cigarro!

A crise de tosse é fenomenal, ao que a fumaça entra por onde, suspeito, deveria ter saído. Um cigarro, uma boca, um nariz, um pulmão. Como elementos tão comuns podem gerar uma fórmula tão complicada? Antes eu queria distrair Seu Agnaldo, agora recolho do chão o que restou de minha dignidade. Estou vermelho, posso sentir o rubor esquentando as bochechas. Seu Agnaldo, no auge da falta de empatia, nem sequer me dá uns tapinhas nas costas ou uns conselhos sobre como fumar decentemente. Ao contrário, ri de mim descaradamente. Acho que, no lugar dele, eu faria o mesmo.

_ Rá, rá! Muito engraçado! _ Bufo alguma fumaça _ Até parece que você nunca se atrapalhou da primeira vez!

_ Nunca! _ Pelo jeito suave com o qual ele lida com seu cigarrinho do inferno, é possível que, de fato, nunca tenha tido problemas. Também é possível que tal memória esteja distante demais para ser perturbada.

_ Seu cigarro é terrível. Meu colega fuma um bem menos forte do que esse!

_ Seu colega é um filhinho da mamãe que só fuma mentolado. Aquilo não é cigarro de verdade, nem ele é homem de verdade. 

Sentindo os pontos de masculinidade caírem por volta de cinquenta e quatro por cento, e os de orgulho bobo subirem dez, movido de puro impulso infantil, o mesmo que me levou a continuar a corrida no parque ontem, enfio o cigarro na boca de novo. Desta vez, estou esperando o fumo e, de alguma forma, consigo puxar e soltar; asqueroso, porém, mágico.

_ Sua geração está perdida, Bolt. 

Mal o escuto quando, por algum milagre, consigo executar a segunda tragada empregando minha própria técnica recém-adquirida chamada intuição sem hesitação. No terceiro trago, fecho os olhos lentamente, sem me dar conta do que estou fazendo. Odeio admitir, mas, aí estão, os ombros relaxados e a manhã perturbada reduzida a uma miúda cortina de fumaça. Neste momento é tudo o que precisava e não sabia. 

_ Viciou.

_ Credo, Seu Agnaldo, ninguém vicia assim!

_ Há quanto tempo você acha que eu fumo este maldito? _ Ele enfatiza, parando por um segundo de fumar e apontando o cigarro na minha cara. 

_ Uns cinquenta anos.

_ Na trave, Bolt. _ Ele volta ao querido “traga e solta”. _ Quarenta e nove. Minha mulher número um tentou me fazer parar. Na época, fui ingênuo o bastante para achar que ia dar certo.

_ Mulher número um?! _ Meu espanto é quase caricato. É a segunda vez que converso com Seu Agnaldo por mais de dois minutos. Um elevador quebrado e uma morta; esses nossos encontros estão se tornando em verdadeiros eventos de gala.

_ Não é a mãe das minhas filhas. Minha mulher, aliás, ex-mulher número um, era uma megera! _ O tom ranzinza dele me faz rolar os olhos e bufar cansado.

_ Não me diga que se separou dela por conta de um cigarro.

_ Separei porque era uma megera. _ Vou fumando que, quase, quase não percebo mais. Fumar vira uma atividade secundária à conversa em uma velocidade escabrosa. Seu Agnaldo prossegue.

_ Ela queria que eu mudasse, que me vestisse melhor, que parasse de fumar e de beber, e que ganhasse mais dinheiro.

_ Que coisa terrível, Seu Agnaldo! Uma mulher que queria o seu bem. Uma megera, realmente.

_ Cinismo não combina com você, garoto. Ela era uma megera. _ Estamos usando demais esse adjetivo. Chego ao ponto de, por um momento efêmero, ter pena da mal falada mulher. _ Uma cobra, manipuladora, alpinista social que sabia muito bem quem eu era antes de assinar o contrato de casamento. Se tiver alguém enganado nessa história toda, fui eu. Quer um conselho? Nunca fique com alguém que vai tentar mudar você. Se ela quer que você mude, é porque ela nunca te amou como você é em primeiro lugar.

Não sei se estou preparado para esta qualidade de sabedoria numa circunstância dessas. Minha mente me carrega, momentaneamente, para a grama defeituosa do parque e para o lado da garota dos cabelos cacheados com calça de pijama. Uma pessoa como ela jamais teceria julgamentos ou tentaria mudar meu jeito. Ontem a imaginei voando, caindo, morrendo. Hoje vejo que a missa na capela poderia muito bem ser para que chorassem a morte dela.

_ Me dá outro. _  Requisito, jogando o que sobrou do primeiro cigarro no chão, pisoteando a bituca para que apague, em uma perfeita imitação do velho Agnaldo, que resmunga, mas me dá outro. 

_ Se vai ser fumante de hoje em diante, comece comprando seus próprios cigarros! Não dá em árvores, sabia?

Uma árvore de cigarros seria incrível, no entanto, cruelmente irônico da parte da mãe natureza. Quero que Bolt desenhe uma árvore de cigarros só para mim em seu livro de coisas fantásticas. 

_ E quanto à mulher número dois?

_ A número dois é a mãe das meninas; completamente diferente da número um. Era um anjo na Terra... _ ele suspira, numa paródia um tanto quanto adorável de um menino sonhador _ por isso não ficou muito tempo conosco. Nesse mundo cão em que vivemos, gente como ela não se dá bem. Foi melhor assim. Partiu jovem, minha Sophia, mas, deixou três anjinhos em seu lugar. _ O olhar desinteressado e os traços carrancudos mudam. Enquanto o rosto relaxa, mais leveza, menos linhas, os olhos brilham ao ponto das lágrimas decididamente masculinas, que caprichosamente não rolam, contentes em umedecer os olhos verdes ressequidos. _ Sophia nunca foi uma “ex-mulher”. Ela apenas se foi... Com um sorriso no rosto e as trigêmeas nos braços. Completamente diferente da... 

Da menina do 102... Sinto que ele fez muita força para segurar as palavras que cambaleavam na ponta de sua língua. É exatamente isso o que ele quis dizer, isso que o perturba, que o impede de entrar na capela. Perturba a mim também, Seu Agnaldo.

Sinto-me triste por Marjorie, pois jamais poderia imaginar que uma mulher jovem, bonita, inteligente, bem-humorada e aparentemente tão feliz guardava essa espécie tão mórbida de escuridão em si. Sinto-me culpado não por não ter descoberto a tempo ou voltado com nossa antiga amizade. A culpa vem pelo fato de estar no velório de Marjorie com a cabeça em Bolt; em seus cabelos cacheados, seu sorriso que não é..., seus desenhos perturbadores. E se a conversa de ontem não foi o bastante para mantê-la na corrida hoje? Ela disse que seria e parecia sincera, mas sempre há a possibilidade de que estivesse mentindo para si mesma. Bolt, Bolt, Bolt... Ainda não sei o seu nome e tenho medo de nunca descobrir. O devaneio não dura muito, pois o trovão que faz o firmamento vibrar logo me sacode. O segundo cigarro vai parar no chão.

_ Preciso ir, Seu Agnaldo.

_ Daqui a pouco acaba a missa.

_ Preciso ir, Seu Agnaldo. _ Não sei se consegui imprimir a urgência necessária, mas, tenho para mim que meu porteiro simplesmente me entende. É uma dessas coisas que acontecem entre homens após dividirem um cigarro, suponho. Ele dá de ombros. Gosto de Seu Agnaldo, pois ele nem questiona por que, de repente, desatei a correr.

2

                Eis a razão de a corrida ser o melhor esporte do mundo: não é preciso investimento algum, além da simples vontade de correr. A matéria-prima da corrida se resume a peças já maravilhosamente acopladas ao equipamento do corpo humano, como pernas e pulmões e outras coisas que, um dia, aprendi nas aulas de biologia. De fato, alguns seres humanos não se encontram na situação de total privilégio da qual eu gozo, a exemplo daqueles que não possuem pernas, ou daqueles que, ainda que tenham pernas, por um ou outro motivo neural, não as podem usar. Não obstante, tais pessoas, algumas delas verdadeiras inspirações, sempre dão seu jeitinho para correrem. Isso me faz lembrar os atletas paraolímpicos que eu assisti nos últimos jogos pela televisão. Fico abismado com a capacidade deles de simplesmente seguir em frente. Bato palmas, pois não sei se eu teria a capacidade de, quiçá, imitá-los. Neste exato momento, curto como nunca o dom das pernas que trabalham sem par

ar, agradecendo minha própria sorte. Existem meios de transporte obviamente mais eficazes em vencer distâncias, mas absolutamente desanimadores no quesito sair correndo dramaticamente por aí, após uma ideia perturbadora resolver fazer morada em sua cabeça. Sair de perto de Seu Agnaldo e entrar em um carro, por exemplo, não teria metade do impacto. Não que eu necessite de drama pelo drama, mas sim pela verdadeira adrenalina que faz o sangue ferver em descarado contraste com o sentimento langoroso do lado de fora da missa fúnebre. É necessário que o sangue vire lava e que os pés me façam voar baixo pelas ruas e avenidas, que os pulmões se encham de ar, que o coração seja barulhento como nunca antes. É necessário, acima de tudo, que essa adrenalina que calibra as veias faça de mim um louco que, em outras circunstâncias, jamais se lançaria desesperado, de braços abertos, sobre a desavisada no parque, implorando para que não ceda ao apelo dos caquinhos e dos terraços dos prédios; aos apelos da morte.

Infelizmente, para que eu atingisse a distância completa entre a capela funerária e o parque, usando somente os pés, eu precisaria ser um maratonista de alta performance. Já corro há anos, e por mais que não me falte disposição, nada muda o fato de que sou um amador. Tão logo as pernas começaram a queimar, me enfiei dentro de um táxi, contudo, numa virada ainda mais azarada do destino, o veículo não andou mais do que dez minutos antes de acabar no meio de um engarrafamento colossal, um tanto quanto raro para um domingo na minha cidade. Nos domingos sempre há um trânsito a ser vencido, mas é de longe melhor do que os dos dias de semana. O problema é que houve um acidente na avenida que acabou por jogar um balde de água fria em minha excitação, mas não ao ponto de me fazer desistir. O medo que ainda corria nas veias, incrivelmente persistente, fez com que eu ficasse inquieto dentro do carro. Comecei tamborilando as juntas dos dedos bem de leve contra o vidro embaçado da janela, e rapidamente passei a bater o pé direito contra o chão de maneira enlouquecedora, sacudindo o joelho numa mostra clara de inquietação. Quando os números do taxímetro saíram de 23,80 para 24,10, me libertei do cinto de segurança do banco do passageiro, tirei umas notas de dinheiro, nem sei quantas, amassadas do bolso e joguei no colo do taxista. O cansaço das pernas sumiu, deixando-as prontas a correr novamente. Parti, encarando a tempestade de vez. 

A chuva, descendo aos borbotões, já me acertou por inteiro. Cabelo grudado na nuca devido à água e ao suor, camisa preta pintada à pele, tênis que golpeiam poças perversas pelo caminho. Meu destino é o parque. Não faço ideia de quantos minutos passaram, mas sei, por certo, que já percorri metade do caminho, tendo como ponto de referência uma conhecida Pet Shop do bairro. Se não estivesse com tanta pressa, provavelmente daria mais atenção à imaginação que me presenteia com um breve flash de cogito me dizendo que Bolt tem jeito de que adotaria uma tartaruga de estimação. Cachorros e gatos podem ser adoráveis, porém, pertencem às almas mais simplórias, como a minha. Talvez esta minha alma simplória, ignorante e juvenil seja a verdadeira responsável pela minha aparente surdez aos cantos da sereia sugadora de vidas.Lá longe, de forma que mal dá para reconhecer, sinto uma fisgada familiar no pé-direito. Começaria a rir, mas o ritmo dos meus passos é precioso demais para ser quebrado. Se não desisti em uma mera corrida de sábado de sol, com certeza não vou parar no meio do resgate em um domingo lamacento. A urgência em mim faz com que as adrenalinas e endorfinas não me traiam desta vez. Graças aos céus por pequenos milagres! Falando em céus, bem que este acima de nossas cabeças poderia cessar o choro. Está chovendo sobremaneira. O jeans está pesado e eu quase escorrego pela terceira vez. É tanta chuva que já não se tratam mais de gotas inchadas, mas de linhas de água que nunca acabam. 

Uma “station wagon” preta desliza pela rua à toda velocidade, erguendo uma coluna de água dubiamente cinza-amarronzada sobre mim. Infelizmente, eu estava na esquina do azar com a coincidência e acabei descobrindo que o gosto da água no chão é igualmente cinza-amarronzado. Meu consolo é saber que a pobre “station wagon” não sabe que está correndo só para estancar no fim da fila de veículos logo adiante, mas não é tempo de me preocupar com isso, nem de xingar a mãe do motorista. Uma momentânea inveja de sua eficácia automotiva em cruzar distâncias, somada a uma saudável dose de remorso pedestre, toma conta de mim. Começo a duvidar de minha decisão de ter abandonado o táxi. Ficar parado simplesmente mexeu comigo. Se não consegui esperar o fim do sermão do padre, tanto mais o engarrafamento. Ao menos o pé direito não está piorando. Suponho que esse efeito analgésico tenha a ver com o sangue quente sob as bochechas.

Alguns pensamentos súbitos vão se esgueirando pelos becos da mente a cada metro do caminho conquistado: Por que estou correndo, honestamente? Estou resgatando a quase viva Bolt ou fugindo do fantasma Marjorie? Estou correndo para não ter que pensar? Seja lá o que for, meu destino é o parque.

3

A planta do pé encontra os paralelepípedos da entrada do parque quando a conhecida fisgada resolve se fazer existente de novo. É o pé inchando e o tênis avisando que seria bom tirá-lo imediatamente. O aguaceiro bate com violência nas costas, tentando me punir por minha decisão estúpida. Não acho necessário, de verdade, pois sei que vou me arrepender de ter simplesmente saído correndo pela cidade no meio de um verdadeiro dilúvio. Por outro lado, também estou certo que esse reconhecimento só virá após efetivamente, literalmente, parar e sentir o peso da idiotice em toda a sua plenitude. No momento, só me resta terminar a corrida no mesmo ponto de gramado desfalcado de antes. A velocidade levou-me a frear nos calcanhares muito abruptamente; um grunhido de dor escapou de mim. A quase grama de antes se transmudou em barro amolecido com pitadas de verde escuro gripado, e por pouco eu não reconheci o lugar da parada. O que me salvou foi a amendoeira de função orientadora que fica alguns metros ao fundo.  

Antes desabei no chão duro de tanta dor, louco para livrar-me da compressão de um tênis; hoje desabo sobre um chão escorregadio, louco para livrar-me da compressão no peito. Luto com o ar que sai errático pela boca, tentando domá-lo, fazendo a respiração voltar ao normal. Demora muito, mas volta aos poucos, assim como a descoberta de que, obviamente, ela não se encontra. Será que realmente meu intento era encontrá-la, aquela quase desconhecida? Nem sinal de minha Bolt perdida no parque. Nada de abraços febris ou pedidos desesperados de “Não pule!”, “Não pare de correr!”, “Não aperte o botão de ejetar!”, “Não colecione caquinhos!”. 

Estúpido. Tão estúpido.

O que me possuiu a ponto de pensar que ela estaria aqui, neste parque, sentada numa poça de lama? O que tomou minha consciência, francamente, quando comecei a cogitar que eu, de todos os seres humanos do mundo, seria o herói que a convenceria da vida? Talvez a grande questão aqui seja esta: O que um abraço molhado e um par de palavras desordenadas podem fazer? Se eu fosse o céu, choraria de raiva.

Fito ao redor e o cinza que antes parecia permear o ambiente se condensa em infinitas minúsculas gotas, fazendo com que tudo derreta. Do céu insosso ao verde das folhas nas copas das árvores, tudo derrete. Eu derreto, corpo e espírito, desabando de vez no chão, lentamente, perdendo as energias, tão castigado quanto a superfície barrenta recém-fustigada pelo temporal. Com o corpo colado ao solo, levo as mãos à cabeça e enterro os dedos nos cabelos, apertando com violência, em uma alternativa ao grito de frustração que ameaça libertar-se dos pulmões. A boca está aberta, mas não sai som algum dali. A sensação de impotência conjugada ao desgosto surge como um veneno que mata as células. Não consigo pensar em mim, não como deveria. Não tenho competência para compreender por completo todas as nuances desta decisão espetacularmente equivocada. Estou esgotado, sujo, possivelmente resfriado, e, com certeza, um pouco mais burro, mas, por algum motivo, só consigo me importar com o fato de que ela não está aqui no parque e, quem sabe, pode já não estar aqui na Terra.

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