Sr. Rotina: Do topo

1

Aí está você, céu! Colorido de muitas cores, desta vez encontra-se léguas de um momento clichê. Evolução, suponho. Os laranjas, amarelos e rosáceos se esticam em grandes tiras intermináveis, se enfrentam, se agridem, fazem as pazes quando chegam perto demais dos diversos tipos de azul que monitoram toda a brincadeira. Na verdade, este céu não parece um, mas uma fornalha em pintura de duas dimensões. Há uma distinta falta de profundidade a este teto solar. Aperto os braços contra o peito ao sentir o crescente gelar de uma brisa que já nasceu anormal, sem a suavidade das brisas. Talvez o frio me atinja mais porque estou nu do quadril para cima. Onde foi parar minha camisa? Será que eu vestia uma, em primeiro lugar? Onde estou afinal? Por que o céu parece maior do que o normal?

_ Quem fica de pé do alto de um prédio de vinte andares desse jeito tem duas opções: ou pula ou vai embora.

Você ainda está de pé do alto de um prédio de vinte andares”, reflito, mas não ouso transformar pensamento em palavra. O ar canta, assobia, uiva, vaia, tirando uma com a minha cara, no que parece ser uma péssima imitação da menina que zomba de mim com sua mera presença. Bolt, você por aqui?! Pela primeira vez na vida, conseguiu não me surpreender.

A observação dela fica no ar, esperando e nunca obtendo uma réplica. Ainda não tive a oportunidade de ver seu rosto, tendo que me contentar com o comprimento salutar dos cabelos me encarando. O mais estranho é que, a princípio, julgara estar sozinho neste terraço de prédio, e ela, simplesmente, brotou do ar desse jeito. Não foi o que aconteceu no sábado, naquele parque? Exceto que lá brotou da terra. Ela se põe a caminhar, vagarosa, porém com propósito. Olho para seus pés calçados nos mesmos chinelos velhos. Por alguma razão misteriosa, fui assaltado pela sensação de que ela não tinha pés, como se se locomovesse flutuando, mas não, lá estão os pezinhos esquálidos, fazendo uma espécie de “tá, tá, tá” em marcha, saindo e voltando para o chão. Aliás, o que falar desse chão? Quadrados pretos e brancos, alternados num imenso tabuleiro de xadrez. Coisa estranhíssima. Desde quando o chão dos terraços dos prédios é assim? Vou além... Desde quando o terraço do “meu” prédio é assim? É meu prédio; apenas sei que é. Só estive aqui duas vezes em toda a minha curta vida. Coincidentemente, nas duas vezes acompanhado por Marjorie. Tínhamos dez anos, se não me falha a memória. Naqueles dias, Marjorie estava longe do salto que iria dar fim à sua vida. Falava de coisas outras que nada diziam respeito aos caixões e às capelas. Seus cabelos de fios de ouro esvoaçavam de um jeito diferente dos da menina que agora aqui caminha. Os cachos quase quicam em seu balanço, para cima e para baixo, de um lado para o outro, numa cadência que tem o poder de me hipnotizar por alguns descuidados segundos. O que me tira do transe é (surpresa!) a estampa sob nossos pés. Desperto para a estranheza deste lugar, deste jogo de xadrez em escala humana. Ela move-se como uma rainha, e eu me pergunto: Serei eu bispo, cavalo, mero peão? Devo ser o último, pois logro apenas um passo por vez enquanto ela desliza majestosamente sobre o tabuleiro, tomando distância.

Quero correr, mas persisto sem querer em minha lenta procissão, seguindo-a, sempre atrás. Nunca consigo alcançá-la. Nunca, descubro, é uma palavra forte demais, sendo que o sempre e o nunca com ela se reduzem ao nosso único encontro e a minha vontade ensandecida de vê-la ao menos uma segunda vez. Agora, ela está aqui, fluida e intocável como essa brisa que insiste em castigar meus olhos secos e meu peito desprotegido. No entanto, aqui, neste terraço de xadrez, para onde ela vai? Não há portas neste lugar, o que me causa nova estranheza. Afinal, todo terraço de prédio possui, obrigatoriamente, uma porta de acesso às escadas, ao prédio em si. Este aqui mais parece um cômodo qualquer em outra dimensão. A noção súbita, traiçoeira, de que a única saída deste lugar é um mergulho em direção à morte me apanha com garras de ferro, faz meu coração saltar para a garganta, batucando alto, fazendo coro às cruéis vaias do vento. 

Bolt finalmente para de caminhar, há uns poucos passos da beira, olhando para mim por sobre os ombros de um jeito que seria sensual se não fosse preguiçoso e debochado. Eu, corredor mais de pernas do que de alma, sinto dificuldade para mexer o corpo e simplesmente andar. A intransigência em seu olhar cresce, oprime, e eu saio errando, por fim, até que paro ao lado dela. Não foi preciso esperar muito, pois Bolt volta a caminhar, rumo à beirada de vidro, agora percebo. O prédio inteiro é de vidro, não de concreto, como os prédios normais. Incrível como esses pequenos grãos de bizarrices, que antes boiavam despercebidas na superfície, vão sendo descobertos, um a um, decantando lentamente, afundando, acomodando-se no abismo da cognição. Melhor nem questionar por que não me dei conta disso antes. A falta de saída ainda enerva, eriça os pelos, mas sigo a mestra: ela senta na beira, eu sento na beira. Olho para baixo e o corpo balança nos eixos ameaçadoramente, tomado pela vertigem. Tornei-me uma espécie macabra de João-Teimoso - dê um empurrão e ele vai e volta nas bases, sem nunca tocar o chão. Considero não ser boa ideia trazer um João Teimoso para um jogo de xadrez. Que espécie de xeque-mate eu faria?

_ Você mentiu para mim, Bolt.

Ela para de contemplar o horizonte e me dá atenção, como quem olha de cima a um inseto.

_ Sério?!

A sobrancelha esquerda ergue-se em atrevimento, e eu lembro que nunca a vi fazendo isso.

_ Disse que eu tinha duas opções: pular ou ir embora.

Você não quer que eu vá embora, é isso?

_ Menti em uma coisa, mas não em tudo. Você ainda tem duas opções: pular ou pular.

Seu senso de humor sarcástico, o qual previamente me fez rir, agora provoca nós apertados, impossíveis de desatar, no estômago.

_ Por que você acabou com a saída?

_ Eu? Eu não faço nada aqui. Ainda não percebeu? Você é dono disso tudo aqui, Max.

Max. É o meu nome. Nos lábios dela. Soa tão diferente em sua voz eternamente entediada, já gravada em minha mente após um mero encontro. Eu nunca a disse meu nome e só consigo chegar a uma conclusão: estou louco. O prédio de vidro, o tabuleiro de xadrez e todas as esquisitices desde que cheguei a este lugar (Quando foi que cheguei a este lugar?) não foram pista suficiente na resolução deste enigma surpresa. Sou um completo idiota. 

_ Então, eu trouxe você para cá. Aliás, _ pauso com a nova informação que vem explodindo como fogos de artifício _ eu trouxe nós dois para cá. E eu tranquei a porta.

O lugar onde deveria ter uma porta, mas não tinha, agora tem. Todavia, está trancada com grossas correntes novas e um cadeado prateado intimidador. Tudo aqui é terrivelmente instável, mexe para cá e para lá, metamorfoseia-se. O prédio voltou a ser de concreto e um pensamento passa rápido por mim, borboleteando com toda a inocência: o prédio não é de vidro, é de espelho, como aquele que Bolt quebrou e virou um monte de cacos... O material que segura e dá identidade ao edifício pode ter mudado, até o céu mudou, neste momento pintado à tinta-guache vermelha, mas o chão, curiosamente, continua impecável, preto e branco, xadrez. 

Bolt está falando comigo, sua boca está mexendo, mas o som sai abafado e as palavras tornam-se ininteligíveis. Será importante? Belisco meu braço porque acho apropriado para a ocasião, apesar de não saber de onde veio essa repentina noção. Dói. Ela balança as pernas ao meu lado e, ao acompanhar, com os olhos, seus movimentos, deparo-me com um chinelo que se solta do pé direito, despedindo-se no ar, rumo a uma queda atordoante. A distância de nós dois para o chão é muito mais do que vinte andares, percebo com horror. É muito mais do que cem. Não dá para mensurar onde está o chão. O chinelo pareceu mergulhar no infinito, perdido para sempre. Muito bom é poder colocar as coisas em perspectiva. Este chinelo é ela e sua decisão estúpida de pular; sou eu, da mesma forma, indo atrás sem pensar em coisas tais como consequências. Sem saída, sem chão. Odeio este lugar! 

Bile vai surgindo no centro do organismo, crescendo em volume, subindo pelo tubo digestivo, cutucando as papilas gustativas com seu toque ácido enquanto bolotas de suor nascem nos poros da nuca e no canto dos olhos, rolando e juntando-se à horrível sensação de moleza nos membros e à visão progressivamente fechada. Lá embaixo, seja aonde for, a cidade ecoa em orquestra: buzinas, motores, propaganda, vozes cacofônicas. Não posso ver, mas posso ouvir claramente.

_ Mamãe sempre dizia que essa sua cara de anjo não combinava com sua personalidade endiabrada. _ Ela solta, casualmente.

_ E eu sempre disse que sua mãe falava isso porque nunca teve seu próprio diabo. Além do mais, nós dois sabemos quem é a verdadeira diaba aqui.

O sorriso de concordância que abruptamente me responde é um conhecido de longa data. Deforma o rosto de Bolt porque não lhe pertence. É Marjorie, sorrindo através da boca de outra pessoa.

_ Você me ensinou que aquela estrela lá em cima já estava morta. _ Ela aponta com seu ossudo indicador um pedaço do céu rubro. 

Não há estrela alguma ali, porém recordo que na segunda, e última, vez que visitei o terraço do prédio era uma noite fria. Usávamos uns agasalhos pesados e toucas na cabeça. Marjorie, com a ponta do nariz e as bochechas rosados, apontava feliz para uma estrela solitária, apreciando a beleza e raridade daquele momento. Em uma cidade como a nossa, as estrelas sempre perdem o lugar para as neblinas da poluição. No meio de nossa selva de concreto, o parque onde corro todos os sábados é como um pequeno milagre que nos abençoa. A primeira vez que visitei o campo, por ocasião de uma visita ao sítio de minha já falecida vó, fiquei abismado com o número de estrelas no céu. Tantas luzes maravilhosas jamais se reuniriam desse jeito onde eu moro.

_ Eu li num livro. _ Respondi, deixando para trás o conteúdo de uma conversa há muito deixada para trás. _ A maioria das estrelas visíveis já explodiu há milhões de anos atrás. O brilho que vemos daqui não passa de destroços de acidentes cósmicos.

_ Como você guarda toda essa informação, assim? _ Seus olhos, azuis como piscinas, cintilavam tão lindamente quanto a estrela abandonada, olhando para mim com inocente admiração. Automaticamente, sorri para Marjorie, contente em dividir o conhecimento. _ Como se lembra dessas coisas?

_ Li mais de uma vez... _ Respondi vagamente. Era sempre divertido brincar com aquela garota peralta. Ainda assim, não se tratava de mentira alguma. Realmente, havia lido mais de uma vez, mais de dez, uma matéria em uma revista sobre a vida das estrelas. O assunto me fascinara, bem como as fotos do artigo. Terminaram cortadas e coladas na parede do meu quarto como um pôster para que pudesse olhar para aquelas estrelas quando bem entendesse. 

_ Devem brilhar muito mesmo... – Marjorie (Bolt?) divaga, fascinada. 

Neste momento percebo que algo na paisagem está dançando mais uma vez. Por meio da visão periférica, mais sinto do que noto o vermelho-guache ganhando manchas negras densas. Segundo a segundo, o negro vai se espalhando e o que era um pôr do sol pintado por dedos de uma criança, transmuda-se em profunda noite estrelada. Mais estrelada esta abóbada celeste do que a que fica acima do sítio da vovó. 

_ Mais que o sol? _ Ela indaga mais uma vez.

_ O sol é apenas mais uma estrela. Existem estrelas muito maiores do que o nosso sol.

Esta informação também estava inserida no tal artigo de revista.

_ Você é muito inteligente, Max. _ Lá vai ela falar meu nome de novo quando eu nunca sequer me apresentei. _ Os professores é que pegavam demais no seu pé.

_ Por sua causa.

_ Moi? _ Fazendo-se de ofendida, Bolt (Marjorie?) repousa a palma da mão sobre o peito dramaticamente, ao que um sorriso cínico todo dela desliza pela tangente dos lábios. _ Eu sou um anjo, lembra? _  Fato é que essa diaba sempre soube se divertir. Significa dizer que, sendo eu seu fiel companheiro de diabruras, me divertia também. _ Sério, sempre achei você inteligente. Um verdadeiro gênio. 

Os elogios são os piores. Nunca consegui determinar a linha entre a honestidade e o sarcasmo com eles.

_ Você sempre foi exagerada.

_ Sempre com seus livros e o seu caderninho de rabiscos.

_ Não são rabiscos! _ Defendo-me imediatamente, soltando a réplica em um reflexo.

_ Ah, desculpe, desculpe... _ Ela rola os olhos ao mesmo tempo em que desenrola o corpo para trás; as pernas continuam abanando no ar. Bolt está dois terços aqui no prédio, um terço ali depois da vida. Dou um grito de “Não!” surtado, de repente tremelicando os braços e as pernas num espasmo, por um segundo achando que ela tinha pulado. Minha preocupação foi recebida com risadinhas escarnecedoras. _ Bobinho, ainda planejo ficar aqui por enquanto. _ Não sei o que embrulhou mais, o meu estômago, as palavras ou a naturalidade delas. _ Não seria engraçado _ ela sugere _ se de nós dois, justo você terminasse lá embaixo? _ Ela começa a gargalhar. A voz suave e enfadada tornou-se aguda e imatura. Não era mais a voz de Bolt, mas de Marjorie. Uma dublando a outra no filme mais bizarro que a consciência já produziu. _ Quantas vezes eu não fiquei bagunçando o seu cabelo só para você brigar comigo? Eu queria só um pouquinho de atenção, mas você só tinha olhos para o caderninho! Que tanto você escrevia, aliás?

Escrevia, no passado. Realmente, eu tinha o hábito de escrever nas horas vagas; era um passatempo inocente de adolescência. Inventei mundos e pessoas. Fiz com que muitos se amassem, se odiassem, se matassem por amor e por vingança. Escrevi sobre cachorros e sobre xícaras de café. Descrevi guerreiros em suas armaduras e suas lanças que derrubavam enormes dragões. Criei mares com cores de flores, árvores com cor de mares, além de muitas formas absurdas de se xingar figuras de autoridade sem usar xingamentos de fato. Guardei tudo em um modesto baú debaixo da cama o qual, se não me falha a memória, foi jogado fora na faxina de fim de ano de três anos atrás. Pensando bem, tenho aqui uma metáfora para o dia em que saí do mundo das ficções para a realidade. Fascinante como a realidade, mais conhecida como expediente de nove às cinco, é substancialmente empobrecida em comparação aos meus delírios em formato de cadernos. Saudades... Não sei se é a tradução correta do sentimento.

_ Eu te dava muita atenção, Marjorie. Não reclame de barriga cheia. 

Eis aqui uma verdade. Por mais que eu me defenda, e por mais que negue as palavras do velho Agnaldo, eu realmente idolatrava o chão que essa menina pisava. Mas, até mesmo em nosso relacionamento infantil, não deixava por nada os meus cadernos e os meus mundos, nos quais eu era deus.

_ Eu sei, Max, estou apenas te provocando. 

Coisa que ela sempre fez com maestria. Ela parece sincera, mas com Marjorie é difícil saber. Além do mais, todo este cenário e até o ar que eu respiro parece uma enorme (e de péssimo gosto) provocação. Odeio este lugar. Odeio esta Marjorie que não é Marjorie, mas se utiliza de nossas memórias para me enganar com não sei qual intuito. Odeio esta Bolt, que de Bolt não tem nada além do rosto.

_ Conta uma estória.

_ Quantos anos você tem, cinco?! _ É tão fácil pensar em Marjorie quando tínhamos essa tenra idade. Seus cabelos loiros presos em uma trança, seus dentes da frente faltando, mas os olhos já brilhavam com um espírito de mandona. _ E por acaso eu tenho cara de mãe, é?!

_ Uma das suas estórias... Aquelas do caderno que você nunca me deixava ver...

Isso, não posso negar, é a pura verdade. Ninguém nunca viu minhas “obras”. Fazia parte do prazer de criar a vergonha de levar a criação a público, ainda que a dita cuja fosse apenas minha amiga de infância enxerida.

Vasculho as lembranças na busca de um conto, o mais banal possível, sem desdobramentos fascinantes ou construções narrativas embaraçosas. Começo a lembrar de cada redação escolar, usualmente distante de meu verdadeiro estilo, digna de uma nota abaixo da média entre os alunos, mas não merecedora de reprovação. Quem sabe o mais engraçado é pensar que um adolescente como eu achava que tinha um estilo literário.

_ Era uma vez...

Sou interrompido imediatamente. Marjorie buzina em meus ouvidos como uma apresentadora de um programa de perguntas e respostas de fim de domingo.

_ Resposta errada, Max. 

Maldição. Ela me conhece demais. Vou para a segunda tentativa sem muito pestanejar.

_ As estatísticas atuais...

_ De jeito nenhum você escrevia essas dissertações nojentas de ensino médio no adorado caderninho. Não caio nessa, menino. Dê-me algo suculento!

Antes, precisei vasculhar o cérebro para achar algo decididamente enfadonho, agora, nem sequer é necessário fazer força. Veio a mim algo que já escrevi, editei, apaguei, comecei de novo, li uma, duas, cinco vezes e lá pela décima releitura já a tinha trancado na alma. Meu herói, na verdade vilão, dependendo do ponto de vista, levita pelos meandros do conto e me dá coceiras. É minha pior estória, estando, inclusive, incompleta. Tinha que lembrar justo do negócio inacabado! A última que escrevi, e já faz uns dez anos ou mais. No fim das contas, minha timidez vence e meus lábios fecham-se como uma ostra.

_ Seria como dar para mim um pedacinho da sua alma, não? _ Marjorie declara, pela primeira vez conformada.

A agressividade vai desaparecendo, os músculos faciais relaxando, a voz volta ao timbre do tédio. Os resquícios de Marjorie finalmente desaparecem e esta nova mudança é de tontear. Bolt, a garota do parque, nem ao menos olha para mim. Apenas balança as pernas com mais vigor, fazendo o segundo chinelo voar. O vento tira do lugar seus cabelos já bagunçados desde o começo. De súbito, viramos as cabeças na direção da porta fechada, assustados com o ruído estridente de correntes e de ferro rangendo como os dentes da boca de uma esfinge.

_ Podemos voltar. _ Ela diz.

A porta que antes era um espaço vazio, abre-se. Eu levanto, estendo a mão para ela com cautela, como se estivesse tentando acariciar a pata de uma fera anestesiada. Minha respiração encurta e o que já foi uma brisa gelada tornou-se clima abafado de estufa. O coração tenta arrombar o portão do peito de tão forte que pulsa. O lugar inteiro parece se estreitar sobre nós. As estrelas começam a sacudir; enfeites de árvores de natal ameaçando cair com uma ventania rasteira. O céu logo irá nos engolir pela sua recém-nascida bocarra. Olho, estupefato, para a mão que agarra a minha que transpira. Não esperava que ela aceitasse minha ajuda assim, tão rápido, sem ao menos um ensaio de convencimento de minha parte. No parque precisei procurar tantas palavras de inspiração. Não hesito; dou um puxão em seu braço na direção da porta aberta e ponho nós dois a correr. A distância torna-se muito maior do que a percorrida no início deste ato teatral dos horrores. Mórbida curiosidade me faz olhar para baixo apenas em caso de o chão ter sido tirado de nossos pés e termos que viver o destino de muitos vilões de desenho animado. Qual não foi minha surpresa (nenhuma, absolutamente nenhuma), ao descobrir que o tabuleiro de xadrez manchou. Preto e branco, previamente tão bem delineados, encontram-se como dois rios, misturando-se na mais enfadonha aquarela, formando uma placa marmorizada até que vistosa em todo o seu caos. Para meu horror, um tremor sacode todo o prédio e o chão ganha uma fenda. Ela, admiravelmente, não soltou minha mão, saltando comigo por cima das rachaduras que começam a ferir a superfície do terraço do prédio. Um novo relance de minha parte, não para baixo, mas na direção dela. Seu rosto pálido acha-se tão impassível quanto da primeira vez, o que me enfurece. Tento me concentrar no atrito da mãozinha frágil contra a minha, a fim de ancorar minhas esperanças ali. A porta assemelha-se a uma miragem no deserto. Está bem ali, à nossa frente, exceto que nunca a alcançamos. 

_ Estamos chegando lá! _ Tento encorajá-la.

Um novo sismo causa uma fissura justo entre meu pé esquerdo e o direito dela. Nossos corpos oscilam, mas conseguem se manter razoavelmente firmes. Uma pequena vitória. Ela pula comigo, em espírito de aventura, porém sem exaltar-se ou sequer mudar o padrão respiratório. Eu, aquele que costuma correr, estou exausto. Por alguma razão que desconheço, as pernas latejavam mais fervorosamente do que naquele domingo de chuva atravessando a cidade. Os pés, estranhamente, não doem, e eu não posso me dar ao luxo de procurar um motivo ou de ser grato. 

Numa virada miraculosa do destino, conquisto a porta de ferro, a qual surgiu muito rapidamente na nossa frente. Alguns amigos meus que sofrem de miopia sempre reclamam que, às vezes, as pessoas “caem de paraquedas”, do nada, no meio da rua. Agora entendo como eles se sentem. Quase dei com o nariz no ferro. Viro para Bolt com um sorriso. Acabou. As escadas que, até que enfim, reconheço como sendo do meu prédio, estão bem ali, nos dizendo “Boa noite. Podem passar.”. Tudo parece estar acabando, do calor que faz a pele suar, ao chão quebrado e ao céu que escorre como uma pintura em tela lançada ao forno. Há um clima de fechamento, de amarração de pontas soltas, de fim de filme. Vivemos o clímax do clímax do clímax.Bolt escorrega, um tanto quanto literalmente, pelos meus dedos. A braçadeira da Inglaterra, que só agora percebo que está usando, foi a única coisa que restou dela, em minhas mãos. Só há o tempo de ver os cachos virados para mim, novamente, capturando o vento, flutuando em linha horizontal enquanto sua dona dispara. Existe uma ironia nessa imagem, no momento perdida para mim. Tenho muito o que fazer, tenho muito o que correr. O que aconteceu? Não sei o que aconteceu. Assim, em um abrir e fechar de olhos, ela soltou-se de mim e correu. 

Corro atrás. A distância, com ares de eterna, torna-se mais uma vez ínfima, e eu logo a acho. Ela nem sequer para pra contemplar o mundo se acabando à beira do terraço. Não pisca, não pensa, não se despede. Somente pula. Eu emudeço, sem conseguir formar palavras, evocar sons. Talvez tenha gritado, embora não consiga ouvir nada. Não ouço o corpo caindo. Na verdade, nem vejo o corpo atingindo o asfalto quando decido olhar para baixo. Sem panquecas de morango desta vez. Cadê o chão?Sumiu! Junto com ela, que deve estar caindo até agora; caindo, lentamente, para sempre. Quero dizer algo, sair do lugar, mas estou fixado a pregos neste chão duro. Cogito ir atrás, lógico, e num instante de hesitação, uma força me puxa para trás. Aquela brisa zombeteira cresceu, virou um tornado e me levou para longe, para fora daqui, de volta ao mundo dos acordados. 

Não era loucura, apenas um sonho.

2

Não só meus pés, todo o meu corpo encharca os lençóis de suor. Fito acima e sou recebido pelo teto branco com manchas bastante familiares, as quais já tive a oportunidade de decorar. Meu teto. Uma finíssima teia de aranha se forma no canto superior esquerdo da parede. O coração, antes tocando um solo de bateria em show de rock, passou ao pandeiro, em um inofensivo samba de boteco. Nem o frio irritante, nem o calor absurdo existem mais. Ergo o tronco e tenho a sensação de que estou para cair de um precipício (ou de um edifício de vinte ou cem andares), mas é apenas meu sofá, e o nó da garganta vai, com dificuldade, desatando. Meu breve e interminável delírio teve sabor de realidade. Eu não corri atrás dela.

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