As Retas, as Voltas, as Curvas
As Retas, as Voltas, as Curvas
Por: Déborah de Souza
Sr. Rotina: Conhecendo a Garota Mistério

1

Hoje acordei com os pés suados. Mal abria os olhos naquele descolar de cílios que, eu sei, dura uma fração de segundo, mas, em momentos nos quais o corpo ainda não chegou ao ponto de expurgar o sono, parece que se perpetua no infinito, e logo notei aquela sensação familiar de pés pegajosos. Um friozinho característico de suor secando na pele em meio ao ar gelado da manhã, invadindo o quarto através de uma pequena fresta na janela, foi o suficiente para arrancar-me da nebulosidade para o despertamento. Num movimento a muito tornado uma segunda natureza, chuto a coberta para o mais longe possível do corpo e, ao deparar-me com os pés enroscados nela, atino para o motivo do suor.

Dormi de pés cobertos. Odeio quando isso acontece.

Nunca tentei descobrir significados profundos em tal hábito, no entanto, permanece o fato de que para que eu tenha uma boa noite de sono é necessário que os pés durmam do lado de fora do cobertor. Primeiramente, não consigo dormir em amarras. Pés cobertos só vão até onde o tecido da coberta permite. Qualquer movimento noturno envolve os pés em algum momento, e já me foi dito que eu remexo muito durante o sono. Uma vez, um amigo declarou que eu posso lutar kung fu enquanto durmo, mas isso não passa de típica hipérbole da época infantil. O segundo motivo para não cobrir os pés é este suor matinal que já começa a dissipar-se quando levanto da cama.

Termino as primeiríssimas atividades da manhã com preguiçosos alongamentos. Esticar os braços para cima, dedos das mãos entrelaçados, com o intuito não de alcançar o teto do apartamento, mas de ouvir os diversos estalos que o corpo faz nessas horas. Estico e estico pacientemente enquanto os pés saem do chão até a metade. Só paro quando ouço o estalo amigo e sorrio. Bom dia para mim! Olho para o relógio de pulso e noto que acordei mais cedo que o normal. Talvez fosse mais poético, e menos prático, abrir as cortinas e dar uma espiada no céu, que deve encontrar-se naquela mescla de cores indecisas. Rosa? Azul escuro? Cinza? Só sei que é tom de início de dia, como se o céu também estivesse com a coberta enrolada nos pés, terminando de acordar.

A porta do outro quarto está fechada; pai e mãe provavelmente ainda no mundo dos sonhos, protegidos e amarrados. Esses dois preferem os pés cobertos. Por alguma razão, sou diferente. Quero acreditar que meu filho (quando chegar a hora de ter um) vai ser assim como eu, um lutador de kung fu noturno dos pés suados. Eu deveria pensar em algo mais importante como “médico” ou “engenheiro”, mas à uma hora dessas, ainda por cima sem meu café, resta-me nada além de uma imaginação muito restrita. Nossa máquina de café, aliás, já está vivendo de hora extra, como costuma dizer meu pai. Parece mais uma velha senhora, cansada da vida e com problemas de pulmão, de tão vagarosa e barulhenta. É tão antiga que eu nem lembro quando a compramos. Sei que um dia ela estava lá, no lugar de outra ainda mais usada. Toda santa manhã a cafeteira prepara nosso precioso elixir. Ponho a água, o pó, aperto o botão desbotado de “ligar”, e rapidamente sou cumprimentado pelo resfolegar cansado da anciã. Tenho para mim que a coitada pifa ainda esse ano. É um jogo de espera. Sei que minha mãe só vai comprar outra quando a atual der o último suspiro.  

O sol está tímido, aos poucos dando as caras, e eu já troquei de roupa. Sábado de manhã é dia de correr. Deixo claro que não sou uma dessas pessoas impossíveis que inspiram academia e expiram puro glamour. Desconheço o significado da palavra dieta. Proteínas, carboidratos, suplementos, fazem parte de uma terminologia que só apareceu em minha vida durante uma conversa com um desses impossíveis, por acaso, colega de trabalho e grande amigo da vida. Acontece que eu apenas gosto de correr e quando termino a corrida sempre passo na padaria que fica depois do parque para comer um litúrgico pão doce. Por crueldade do destino, acabei num desses empregos de cubículo, no qual minha melhor amiga é a tela do computador, e as aventuras do dia-a-dia não vão muito além de cálculos em planilhas. O trabalho, como a maioria dos trabalhos por aí, começa de manhã e termina ao fim da tarde, o que torna as manhãs de sábado uma preciosidade para mim. Eu poderia correr de noite, diariamente, mas eu favoreço infinitamente mais o combo de sofá e videogame. Já me acusaram de preguiça, mas isso é uma mentira muito rasa e desalmada. E as flexões não contam? A verdade é que eu tenho meu próprio ritmo e, ainda que não seja uma espécie de Bruce Lee nas horas que não correspondem ao sono, posso sempre dizer: “Ai daquele que tentar acabar com meu ritmo”. Tênis calçado, café devidamente ingerido, não há mais nada a fazer que não seja mexer as pernas.

2

_ Bom dia, seu Agnaldo.

_ Bom dia, Bolt.

Seu Agnaldo, o porteiro do prédio, já está conosco faz um tempo. Até hoje, existem três coisas fundamentais que aprendi sobre o homem nesses encontros diários e velozes.

Número um: Seu Agnaldo fala muito das filhas. Muito. Entre as trigêmeas e as reclamações decorrentes das notícias de seu onipresente jornal, não sobra muita coisa em seu repertório de conversas. Talvez seja por causa da natureza veloz de nossos encontros. Nunca parei exatamente para bater um papo com ele, exceto no dia em que o elevador quebrou e eu não tive coragem nem amor para me fazer subir quatorze andares. Naquela gloriosa ocasião, descobri a existência das trigêmeas e o nível de superproteção que seu Agnaldo estava sempre disposto a galgar. 

Número dois: Seu Agnaldo tem um olho de vidro. Não entendo este fato como fundamentalmente relevante, mas está aí.

Número três: Seu Agnaldo nasceu incapacitado para os nomes. Ele nunca lembra o nome de nenhum morador do prédio ou visitas frequentes, sempre se dirigindo à maioria deles por pronomes de tratamento. No caso específico dos moradores, ele vai substituindo nomes pelos números dos apartamentos.

_ “Ah, a menina do 102 perguntou que horas você estaria em casa, Bolt.” Foi o recado passado uma semana dessas. Honestamente, acho incrível esse sistema dele. Mais honestamente ainda, até me sinto especial pelo apelido. Pouquíssimos aqui no prédio têm um. De fato, não venho da Jamaica, não sou atleta de nível olímpico, nunca nem ganhei um concurso de soletração na escola. “Bolt” não passa nem perto do aceitável para alguém como eu, mas como posso simplesmente jogar isso nas costas do querido e desavisado porteiro?

Mal abro o portão do prédio, ponho-me a correr.  Eis a beleza das manhãs de sábado: ruas virtualmente vazias, facilitando o caminho até o parque, lugar onde boa parte dos seus frequentadores se exercita. Eu nunca tive um método para fazer algo tão simples quanto correr por aí, por isso já começo assim que saio de casa. No primeiro trote, sinto um aperto no peito do pé direito. Dou de ombros. Vai passar até chegar ao parque.

3

O aperto não foi embora. De fato, quando consegui dar a primeira volta no parque inteiro, o tênis pareceu ficar ainda mais justo. Quando a constrição se transformou em desconforto, o qual, por sua vez, evoluiu para dor, julguei que talvez o problema não fosse o tênis apertado, mas o pé inchado. Fiz um segundo julgamento, admito, mais carente de bom senso em relação ao primeiro, de continuar correndo. Minha vontade de seguir em frente supera a dor, portanto aperto o passo naquilo que considero um súbito de ânimo. Fui atingido por um raio de inspiração. Começo a suspeitar que esse apelido “Bolt” está me subindo à cabeça. Contando com a liberação vindoura das adrenalinas e endorfinas, persisto teimosamente rumo ao fim da segunda volta. 

Com a camisa grudada no peito e o suor escorrendo em gotas espessas salgando os supercílios e os olhos, sinto que é hora de amaldiçoar meu momento de bravura olímpica tão ridiculamente inspirado. Os pés mais suados do que nunca e as endorfinas e adrenalinas que no meio da quarta volta resolveram me abandonar para curtir a flora do parque. A derrota total se traduz no latejar e queimar do pé, me fazendo desabar no primeiro pedaço de verde que localizei no chão. Infelizmente, hoje a grama está mais para marrom, rodeada de um jeito muito aleatório por magrelas folhas pequenas. Meus olhos me dizem que tem cara de cama. O contato do chão com a bunda foi um tanto quanto abrupto e desajeitado, mas é o de menos frente à nova prioridade: arrancar o bendito tênis. Lá vou eu, afrouxando o cadarço sem muito sucesso, pois o calçado está tão apertado quanto minha paciência. Logo desisto e parto para a manobra mais agressiva, qual seja plantar firme o pé no chão, enfiar dois dedos na lingueta do calcanhar e produzir a alavanca que irá finalmente libertar meu abusado pé. A dor aumenta devido à força concentrada no peito do pé, e eu não apenas continuo definitivamente entalado como, na empolgação e na pressa, quase me dou uma joelhada na testa. Nem o kung fu noturno chegou a esse ponto.

_ Darwin estava certo. Cruzes! 

Eu acho interessante como o universo parece sempre conspirar a nosso desfavor em dadas ocasiões. Numa corrida de sábado atípica, neste parque quase vazio, apareceu alguém para assistir de camarote minha risível performance.  

_ Deixa eu te ajudar!

De onde brotou esta criatura? Há quanto tempo ela está atrás de mim? Será que ela chegou primeiro e eu não vi? Pretendo verbalizar minhas perguntas, no entanto, por hora, limito-me a observá-la afrouxar os nós do tênis com uma paciência que parece não existir nesse mundo. Ela tem mãozinhas rápidas e precisas. Mal comecei a notar a luz do sol refletindo sobre uma curva particular de cacho de cabelo castanho, sinto o pé desalojando-se daquilo que, por hoje, vou chamar de armadilha mortal. Gemi de alegria ao despir o pé da horrorosa meia branca. Livre, enfim! Gemi de novo, dessa vez de abatimento, ao me deparar com uma massa vermelha e inchada, antes conhecida como pé direito. Eu sabia que as coisas não estavam boas lá embaixo porque o aumento progressivo da dor apontava para isso. Todavia, não estava esperando este tamanho de pé e este vermelhão de pé. Gemo uma terceira vez, mas agora é dor mesmo. O sangue acalmou e o latejar escalou exponencialmente.

_ Será algum nervo? _ indago. Nunca entendi nada dessas coisas. Apenas sei que os leigos da anatomia e ciências afins falam “nervo” toda vez que não sabem a causa de uma dor desta natureza. E eu estou no topo da realeza dos leigos.

_ Tem a ver com a circulação. Você deve estar sofrendo algum estresse ou possui um estilo de vida nada saudável. _ Anuncia a boa samaritana de forma robótica. 

Circulação? Sempre achei que os problemas nesse departamento fossem exclusivos do pessoal que morava na casa dos quarenta ou nos números superiores. Eu nem fiz trinta ainda. Talvez minha usual falta de disposição no espírito esteja me envelhecendo antes da hora. Por um instante, considero aumentar o número de flexões diárias e largar a cerveja. A ideia se dissipa da mente como nuvem, em velocidade constrangedoramente espetacular. 

_ Você passou por este trecho umas três vezes. Deveria ter parado na primeira _ ela diz. Concordo, e já tenho minha resposta. Ela realmente chegou aqui antes.

_ Só tenho boas ideias depois das emergências _ afirmo bravamente massageando os dedos dos pés, concentrando meus esforços naquela vala entre o dedão e o seguinte. Claramente não sei o que estou fazendo e, pela cara da boa samaritana, já posso largar a esperança de que ela não descubra. Ela rola seus olhos castanhos e suspira cansada, como se tivesse corrido as quase quatro voltas em meu lugar. De repente, vejo as mesmas mãozinhas rápidas trabalhando de novo, agora sem a barreira do calçado. Nossa, ela é boa.

_ Você é profissional?

_ Li sobre essa massagem em algum lugar.

Sua resposta é simultaneamente concisa e evasiva, extremamente insatisfatória.

_ Então, você é um desses tipos de gênio? Eu jamais aprenderia algo assim só de ler um livro.

_ Eu li mais de uma vez.

Não considero esse novo fato como causa provável de tal habilidade, mas não replico. 

_ Terminei _ anunciou tão inesperadamente quanto havia começado a massagear. 

A dor diminuiu um pouco, porém o pé continua vermelho e volumoso, portanto calçar o tênis e ir embora não será a ideia mais brilhante, especialmente com meu histórico de péssimas decisões da manhã; uma decisão errada para cada volta completada. Acredito que entabular conversa seja o ideal, mas a massagista de livro levanta e eu começo a achar que ela é quem está de saída. 

_ Você precisa colocar os pés para cima _ ela aconselha enquanto faz ruídos por trás de mim. Deve estar pegando a mochila para retirar-se. Para minha contente surpresa, errei feio. 

_ O ideal seria uns travesseiros duros, mas... 

Reticente, ela segura meu pé dolorido e o deposita sobre uma interessante construção, cujo alicerce é o meu próprio par de tênis sustentando o que aparenta ser o livro mais grosso que já vi ao vivo. Só com isso é possível desfrutar de uma onda de alívio, pois o pé, já não mais suado, embora ainda muitíssimo vermelho, respira o repentino frescor.  

Ela vai parar do meu lado, imitando a minha posição - antebraços ancorados na grama e o rosto levemente inclinado em direção ao sol. Percebo que os cachos são mais compridos do que havia pensado ao vê-los jogados por sobre a camisa velha de banda de rock. Além do tecido preto surrado e do logotipo da banda parcialmente descascado, fica perceptível que a roupa é alguns números menor, subindo acima do umbigo, alargando a faixa branca do abdômen e tomando distância de uma calça folgada de tecido com cara de pijama. O rosto absurdamente pálido, marcado de olheiras profundas, denuncia uma beleza escondida. Moça feliz essa que não liga para as aparências. Provavelmente é isso que estou achando bonito nela. Infelizmente, pressinto que essa beleza está incompleta, como um quebra-cabeça sem a última peça. O que falta? Ainda desconheço...

_ Ei, não tem problema eu pisar no seu livro? 

Livro preto enorme de aspecto medieval.

_ Relaxa! Já decorei todos os rituais satânicos descritos nele.

O tom de voz é de alguém que afirmou que vai chover mais tarde, mas o conteúdo é absurdo demais para ser tão verídico. Lacônica, irônica... Ela tem senso de humor, mas não o rosto de alguém que acabou de contar uma boa piada.

_ Se você não me rogar uma praga por ter pisado no seu livro, acho que vou ficar bem _ devolvo com uma piscadela. 

Fico esperando que ela esboce uma reação. Os olhos se encolheram num quase piscar, fisgados pelo anzol do meu humor igualmente sarcástico. Para meu azar, não passou disso. O que seria uma conversa morreu minutos após o nascimento; o silêncio que sobra não é aquele gostoso que paira no ar com suavidade, mas da espécie densa que provoca secura na garganta. Não sei quanto tempo fui feito de refém pelo meu próprio pé e pelo tal do livro satânico, contudo foi o suficiente para que o vermelho voltasse ao rosado. A dor sumiu e eu nem sou capaz de dizer o momento exato em que saíra batendo asas. 

_ Eu já te vi aqui antes _ ela solta, brusca como soluço que sacode o peito. Eu poderia ter tido uma crise de soluços agora com o nível do susto. Tudo o que acontece é meu pé saindo do lugar com um espasmo.

_ De vez em quando, vejo você passar. 

_ Como é que eu nunca te vi aqui antes? _ Tenho para mim que todas as linhas da minha face se reuniram para denunciar meu embaraço.

_ Não se culpe _ ela tenta harmonizar, ainda que em seu timbre desinteressado.

_ Eu sou invisível assim mesmo. 

Essa menina só abre a boca para dizer coisas estranhas. 

_ E tem mais... Como você ia reparar em mim se sempre passa correndo? _ Há verdade nessa sentença, e ela não me traz conforto algum. 

_ Para falar a verdade, tenho certa inveja de você. _ Além de abrir a boca para falar coisa com coisa, o simples fato de que ela, de repente, desatou a falar já é um espanto em si. Não pergunto nada. Sei que ela vai elaborar. 

_ Correr, sabe, sempre olhando adiante, não se importando com o que fica lá atrás.... É sempre bom fugir.

_ Fugir... _ recito, e a palavra rola como uma pedra pesada para fora da língua. Desde quando eu sou assim? Eu não fujo! Apenas gosto de correr até suar por todos os poros e perder o fôlego. Ela acha que isso é relacionado à fuga. Eu acho que ela não está falando do esporte “corrida”. 

Até então, minhas observações sobre a beleza da moça haviam estado muito na superfície. Eu finalmente entendo o que está faltando em seu rosto de quebra-cabeça. Ela não consegue sorrir. Seu olhar, da mesma forma, é profundo, perdido e desesperançado. Nada bom. Sem perceber, meus pés suados me conduziram a um verdadeiro campo minado. Algo me diz que essa garota tem sérios problemas. Não que eu seja especialista em ler pessoas. O caso é que a dor, não essa dor de “nervo” ou “circulação”, está estampada no rosto dela. Basta congelar a atenção por um instante e tudo fica brutalmente visível. Ela nem parece fazer questão de esconder; pelo contrário, em algum nível, parece querer mostrar, ainda que cheia de vergonha. Pinte um SOS na testa, menina.

_ Eu corro há muitos anos. Estou correndo agora mesmo. _ Ela diz, de repente. _ Não se assusta, por favor. Só deixa eu te alugar um pouquinho em troca do pé _ esse que, até que enfim, voltou ao tamanho e cor normais. – Você não vê, mas, eu corro muito mais do que você.

_ Eu acredito.

_ Estou correndo neste momento. 

Você já disse isso, mas vou relevar.

_ Ah! _ É o meu máximo de coerência, quando uma pergunta chega crepitando em minha cabeça e eu não a passo pelo filtro do bom senso em tempo, o que gera um disparo:

_ O que acontece se você parar de correr?

_ Eu morro.

_ Então, continua correndo – sugiro. Simples, não?

_ Hoje você foi meu parceiro de corrida.

Jurava que essa daí corria solo.

_ Não diga.

_ Vou ter energia para correr amanhã por causa de hoje.

O rumo da conversa me carrega até uma nova indagação, e um novo disparo.

_ Você sempre corre acompanhada?

_ Às vezes, sim, às vezes, não. É mais recomendável acompanhada, mas, eu me sinto mal quando meus parceiros de corrida se cansam ou se machucam por minha causa. Nessas horas eu volto a correr sozinha. Não é tão eficaz, mas é melhor assim.

_ Entendo _ Será que entendo, mesmo? Por um lado, sei exatamente do que ela está falando. O verbo “morrer” ficou claríssimo. Por outro lado, é impossível me colocar no lugar dela. Minha mente é simplória demais para ficar acuada num abismo desses.

_ É por isso que sento aqui. Chamo de minha corrida de cem metros. Se bem que há uns dias atrás os outros atletas sofreram uma lesão muito grave, então acho que vou ter que correr alguns quilômetros a mais para restaurar a ordem natural.

Que dilema! Se ela para de correr, morre; se correr demais, morre por asfixia.

_ A lesão, por acaso, diz respeito a essa faixa no seu pulso?

É óbvio que notei o adorno; azul, vermelho e branco, distribuídos nas indiscutíveis faixas da bandeira da Inglaterra. Havia reparado no momento em que olhara para as roupas. Entretanto, somente agora a bandeira passou a ganhar um significado diverso. 

_ Quebrei esse espelho do banheiro de casa e guardei um caquinho comigo de lembrança. Ninguém me viu guardando... Coloquei debaixo do travesseiro, dormi com ele, sonhei com ele. No terceiro dia...

Nem precisou dizer. Já entendi tudo.

_ Você quase interrompeu a corrida. _ Se tivesse sido bem-sucedida em seu intento, nós não estaríamos aqui tendo essa conversa, que já extrapolou os limites da bizarrice. Ela se restringe a acenar positivamente com a cabeça, retraindo os ombros e a espinha. É o máximo de constrangimento que irá pôr para fora. Seu rosto pálido nunca admitiria a entrada de qualquer rubor.

_ Mas, não interrompi! Isso é importante! – Ela exclama de um jeitinho bastante infantil, mas bastante sincero.

_ Muito importante! – ela enfatiza só mais uma vez e, de repente, parece se lembrar de algo...

_ Já pode baixar o pé.

Coisa fascinante. Nesse papo todo de atletismo, esqueci-me do pé. Ela não demora em pegar o livro e eu me vejo quase hipnotizado com a maneira reverente com a qual ela toca o volume, acariciando a capa preta de couro envelhecido, desprovida de qualquer grafia. Não há uma pista que possa guiar-me a imaginar o conteúdo do livro, fora, é claro, os mencionados rituais de magia negra. Vejo que ela abandonou o reclinado em favor da posição de lótus; o livro aninhado entre as pernas cruzadas. Sem imitar a postura dela, sento-me também, querendo me aproximar do livro misterioso. 

_ Vai me ensinar algum ritual ainda hoje? _ Volto a fazer troça com o máximo de esforço, pois a minha mente, desde agora a pouco, deu a inventar o som de cacos de espelho se espatifando no chão; uma estridência do tipo que dá frio na espinha e peso na boca do estômago. Se fechar os olhos, sei que vou ver uma veia azul debaixo de uma pele branca translúcida e um afluente vermelho que, naturalmente, não devia ter escoado para fora.

_ Não posso ensinar, desculpe, pois nunca aprendi. É só uma coisa que sei fazer.

Abro o livro, enfim, e de pronto um enorme girassol faz as saudações. Sempre me considerei uma pessoa sem um pingo de sensibilidade para algo tão complicado quanto a arte, mas lá está ela, flor solitária gerada de traços honestos e sombras melindrosas. Muitas cores pintadas em preto e branco. 

_ Uma coisa que você sabe fazer... – ecoo em perplexidade, olhando de canto para a modéstia da artista ao meu lado. Tenho que dizer: essa garota nunca desaponta nas surpresas. 

_ Você já desenhou todas as folhas? _ Ela dá de ombros no que interpreto ser um convite à descoberta. O tomo tem mais de mil folhas, sem sombra de dúvida. A segunda página, também em preto e branco, é completamente diferente da antecessora. Não há flores no meio do maravilhoso caos urbano; prédios, lojas, sinais de trânsito. Um belíssimo retrato do movimento, exceto pelo detalhe de que ela não desenhou sequer um cidadão para dar vida à selva de concreto. Nem mesmo a moto no canto direito inferior de uma rua, claramente correndo no trânsito, tem um condutor em cima. 

_ Cidade fantasma?

_ Bom título. Não tinha pensado.

Óbvio que não. Mas até que eu não sou ruim de dar títulos às obras. 

O terceiro é um retrato do vocalista da mesma banda cujo logotipo adorna sua camisa descascada. Ele possui olhos decididamente bravos. Os traços são tão ridiculamente meticulosos que eu tenho vontade de virar a página logo e me livrar do músico invocado me encarando. O próximo é de uma senhora frágil, deixando-se levar pela cadeira de balanço em uma varanda um tanto quanto destruída. Um corvo muito negro e brilhante se destaca sobre o telhado da casa. Tenho dúvida se o velho goldenretriever, acomodado aos pés da anciã, está mesmo dormindo. Um bolo vai se formando na minha garganta; apesar da perfeição artística, há algo de substancialmente perturbador nos desenhos. A massagista, desenhista, garota das corridas e dos caquinhos, nem se dá ao trabalho de olhar ou comentar os desenhos. Seus olhos estão furando minha nuca - posso sentir. Dou prosseguimento à aventura, já na expectativa de que os desenhos se mostrariam cada vez mais lúgubres e irrequietos. Qual não foi minha surpresa ao te conhecer, página cinco, adornada com um urso panda. Caramba!

_ Panda?! _ Escapou de mim. Fitei imediatamente o rosto dela, e posso jurar que os seus lábios se esticaram em direção aos dois cantos da face. Não se trata de um sorriso próprio, mas, também, não sei do que chamar esse mover milimétrico. Ao menos ficou claro, rapidamente, que nem todos os desenhos são estranhos, ou, talvez, sejam inadequados em meio aos desenhos fantasmagóricos, dividindo o mesmo livro. Ademais, a variedade é impressionante: objetos, natureza, notas musicais aprisionadas em uma gaiola, crianças pulando corda, tudo de tudo, sempre em preto e branco e o que há entremeios. – Mickey Mouse! – Observo articuladamente.

_ Os clássicos não morrem. _ Ela diz.

_ Estou vendo. _ Comento ao passar rapidamente os olhos por sobre a figura sombreada de Clint Eastwood, vestido de maneira icônica em um cenário consagrado pelo cinema. 

_ Um estranho sem nome? _ Arrisco.

_ Por uns dólares a mais. _ Ela corrige, me admoestando. Sacrilégio! Confundi os faroestes. Meu velho me mataria se ouvisse isso.

Um serviço funerário na página cinquenta me presenteia com um arrepio de pelos da nuca. Não ouso perguntar a história por trás de tal quadro. Uma casinha feita de lego na página setenta. Surreal! Legos são Legos, pois são coloridos. Passar o recado do lego sem as cores demanda uma qualidade estratosférica de talento. Por que alguém tão habilidosa se perdeu entre a corrida e o caquinho? Dói só de tentar entender. Suspiro chateado na página oitenta e três. Ei-lo aqui: o espelho quebrado em toda a sua glória. Os cacos estão todos no lugar, exceto por um pedaço bem pequeno que, tenho certeza, deve ter aparência inofensiva. Talvez este caco perdido seja achado na página seguinte, ainda escondido debaixo de um travesseiro.  Se o erro pode ser medido em graus, creio que essa foi a suposição mais errada de todas as feitas nesta manhã. 

_ É você. _ Ela sorri com as palavras, mas não com o rosto. 

É um começo. Eu, por minha vez, estou boquiaberto. Há pouco menos de uma hora atrás eu desconhecia sua existência e agora figuro em seu livro de desenhos. Nem com a imaginação mais colorida possível (coisa que eu tenho em abundância) eu poderia prever que minha corrida de todos os sábados teria um fim tão extraordinário. 

_ Quando...? _ Balbucio. As palavras ainda me escapam.

_ Hoje, ué, embora eu já devesse ter feito há tempos atrás. 

_ Realmente, dá para notar, é de hoje o desenho. Além dos traços simples e impensados, é só reparar a expressão de dor no rosto representado na folha. Dor e orgulho bobo, simplesmente.

_ Você está triste? – Que pergunta absurda a dela! _ Não é para ficar, não. Correr dói, mas eu sempre aprendo algo novo.

Sei lá se ela está sendo sincera. Algo me diz que ela quer apenas me consolar depois de ter soltado tantas bombas em cima de mim. Não funcionou. 

_ E se um dia você desmaiar de cansaço? _ Minha dúvida tem um “quê” de inconformidade. 

_ Aí, desmaiei.

A resposta dela, por sua vez, é plena e macabramente conformada. Trata-se da conjugação do verbo “desmaiar” no passado, ou uma mera situação hipotética, envolvendo um “desmaio” infinito? 

_ Você não tem medo? _ A indignação toma conta e as vogais finais se partem no meio. O ardor veio subindo dos pulmões à laringe e eu desafino de raiva. Não é raiva dela, de jeito nenhum! É raiva de seja lá o que a atormenta.

_ Claro que tenho. Não sou um robô. _ Ela esclarece, franzindo o cenho, e inchando os lábios numa pintura de inocência que não está nem aqui nem ali. A contradição entre seus modos e suas palavras, e sua honestidade tão maravilhosamente não elaborada, me acertam com a força de um soco na mandíbula. O nocaute puxa uma gargalhada de mim. Como me conter? Essa menina, além de tudo, é hilária! Os olhos fixados nos meus não entendem a piada. O sorriso ainda é um sonho distante, quiçá impossível. Ela não se importa. 

_ Deixa eu te contar uma coisa... _ Lá vem ela deslizando mais para cá, lábios triscando minha orelha, de um jeito conspirador que promete, de fato, um segredo de Estado. Ela parece esquecer que estamos virtualmente sozinhos no meio de um parque. Nesta manhã insólita, por que não mais uma ironia para a coleção? 

_ A corrida tira tanto de você que, quando chega aquela câimbra... Sabe, aquela câimbra... A dor invade de um jeito tão rápido e violento que o medo sai pela porta dos fundos... cheio de medo. _ Claro, porque é perfeitamente possível o medo ter medo. Também é perfeitamente possível que eu compreenda o que ela diz. _ Sem medo... _ Ela não para de falar. _ ...a gente pode fazer qualquer coisa, especialmente desistir da corrida.

Hoje conheci uma suicida em potencial, temerosa da morte. Quais são as chances?

_ Ainda bem que você é uma atleta profissional, não uma iniciante.

Por mais que eu tente consolá-la, tudo soa extremamente mal pensado, mal feito, mal-acabado. Não sei que mérito há em ser a melhor nesse tipo de corrida. Ela age como se meu recado tivesse passado por cima de sua cabeça. 

_ Vou desenhar seus pés suados da próxima vez. _ Eu também finjo que não a ouvi. 

Algo me diz que preciso falar essas exatas palavras que estão se enfileirando em minha consciência. Por que passei a me importar tanto com uma estranha? Por que estou me fazendo uma pergunta tão óbvia? É lógico que a resposta está na corrida e nos caquinhos. Vai saber quantas pessoas estão por aí juntando caquinhos e ninguém se dá conta? Quando eles aparecem nas notas de rodapé do jornal ou nos boatos pelas mesas de bar, nunca passam disso; um amontoado de frases, uns minutos, nada mais do que uns minutos, de conversa; no máximo um minuto de silêncio antes do futebol, e um velório lotado, se o corredor ou corredora tratar-se de uma celebridade. Mais distantes do que heróis fictícios em faz-de-conta hollywoodianos. Até que, um dia, por um aparente capricho das estrelas, você ouve um deles se esgoelando bem na sua frente, ainda que seus clamores tenham a forma de desenhos em preto e branco. Só quero convencê-la com todas as minhas forças a não desistir. Preciso falar essas próximas palavras. 

_ Sabe... Você já assistiu a alguma corrida sem linha de chegada? _ Aos meus ouvidos, parece que verbalizei um pedaço brilhante de retórica. Sei que estou longe disso. De qualquer jeito, não é de retórica o que ela necessita, é? Seus companheiros de corrida usuais, seus amigos e familiares, devem estar cansados de tanto gastarem argumentos com ela. 

_ A sua... Todo santo sábado. _ Ela é esperta demais, mas eu também posso ser quando me esforço.

_ Minha linha de chegada é a Padaria San José, onde paro todos os sábados para comer pão doce.

Normalmente as pessoas estranham quando falo do meu ritual. Sempre dizem que não adianta nada correr se eu vou ganhar todas as calorias gastas de volta assim que acaba o exercício. Eu acho que todos estão paranoicos e chatos por causa das malditas calorias. Ela, com seus olhos compreensivos, não só me entende como parece concordar comigo. Já te amo, menina estranha; já te amo. 

_ Então, a sua linha de chegada sempre dá em uma medalha de primeiro lugar _ Ela conclui brilhantemente. _ Você come medalhas no café da manhã.

_ Deliciosas medalhas sabor doce de leite... Pois é! _ Por um segundo, cogito convidá-la para dividir um pão doce comigo. Por que não desfrutar do primeiro lugar de todos os sábados em sua companhia? No entanto, o convite morre na garganta antes que eu possa torná-lo real. Minha insistência na corrida, indo na contramão, sobrevive. 

_ Viu só? Toda corrida tem sua linha de chegada! _ Não consigo evitar o sorriso preguiçoso de canto de boca quando ela resolve me assaltar com toda a sua ingenuidade.

_ Até a minha? _ Perguntou com uma vozinha subitamente baixa, tímida. O brilho que surge em seus olhos é novo, mas volátil; ainda não conhecia. Tão surpreendente, causa uma onda de estranheza. Dois sentimentos me puxam pelos braços com se eu estivesse no centro de um cabo-de-guerra: admiração e frustração. O que expulsou o brilho dos seus olhos, menina? Cautelosamente, escolho os verbos e os substantivos a usar, mas com plena sinceridade. Construo com receio e com toda a delicadeza possível minha resposta. 

_ A sua é apenas a mais longa de todas, mas, tenho certeza que também vai ter uma linha de chegada. Do contrário, não seria uma corrida, seria?

_ Pode ser... _ O livro é fechado com um ruído seco e final. Ela não olha para mim, mas digere o que foi dito, enquanto seu dedo indicador traça círculos na capa de couro lentamente. 

_ Sério? _ Ela tenta me dissuadir. 

Algo tão simples, tão ridiculamente otimista nunca deve ter passado por sua cabeça antes e, na possibilidade de ter passado, provavelmente foi removido cirurgicamente pela morbidez de seus pensamentos. 

_ Eu não brincaria com isso. _ Minha resposta a todos os questionamentos é a firmeza. Quero ter fé, por nós dois, de que eu estou certo. Não pode haver espaço para dúvida aqui. E, agora, talvez, eu esteja escorregando um pouco na lama da desonestidade. Como posso garantir uma coisa dessas? Não a conheço direito. Da próxima vez que ela tiver um acesso de tristeza profunda e namorar os cacos do espelho, ela vai sentir que foi traída. Mas violentá-la com o que realmente estou pensando, ou seja, a verdade, tirar dela essa chama de esperança, essa chance de correr mais um dia rumo a uma suposta linha de chegada, não configura uma traição ainda maior? _ Eu não brincaria com isso, Bolt.

Bolt... Juro de pés juntos que o apelido chegou sem pedir licença. Lá vem o raio de inspiração atingindo o mesmo lugar pela segunda vez. Seu Agnaldo, saia da minha cabeça! 

_ O homem mais rápido do mundo? _ Ela pergunta com justificável estranheza.

_ Isso porque ele ainda não te conheceu.

Então, como um encanto desfeito, acontece. Um riso pessimamente abafado sacoleja seu frágil esqueleto, e sequestra toda e qualquer reação de mim. Ela congela, tensa da cabeça aos pés, ciente da raridade de tal acontecimento. O fato de tratarmos algo tão banal quanto uma risadinha como um acontecimento já prova que é, de fato, um acontecimento, dos grandes. Alívio refrescante lava meu corpo, minha alma, e todas as partículas que possam me constituir como aquilo que sou. Orgulho do tamanho de uma lua entope meu coração. Inconscientemente, todo esse tempo, havia gastado palavras e empatia tentando dar qualquer espécie de refúgio para ela e, finalmente, tirei água de pedra. Um “Eureca!” chega arrombando os portões da mente, mas esse eu consigo deixar somente nas ideias. O nível de empolgação é esquisito até para mim, quanto mais para ela. De jeito nenhum vou deixar essa paz, tão frágil e, infelizmente, momentânea, ser detonada por um descuido. Infelizmente, ela já parou de sorrir. O espasmo de alegria foi recebido como um pecado, embora ela pareça mais confusa do que culpada, sem saber o que fazer com o súbito e efêmero júbilo. Qual foi a última vez, me pergunto, que você sentiu o borbulhar da felicidade no peito, ainda que pelos motivos mais idiotas? Faz muito tempo, imagino, se você até esqueceu o que fazer com isso.

4

O pão doce da San José continua tão transbordante de recheio como sempre. Geralmente, eu compro um e vou comendo no caminho de volta pra casa; faz parte do ritual. Hoje, devido a circunstâncias alheias à minha vontade, mais conhecidas como problemas de circulação, sentei num dos bancos adjuntos ao balcão, e o padeiro resolveu puxar papo comigo. Na verdade, ele falava e eu ouvia de boca cheia quase todo o tempo. A curta caminhada do parque até aqui fez meu pé voltar a doer. Foi um erro calçar o tênis novamente, reflito. Suponho que seja uma paga por não ouvir o último aviso da massagista desenhista, a quem passei a chamar de Bolt. Esquecemo-nos de nos apresentar, finalmente entendo. Talvez, porque a forma com a qual nos conhecemos não foi típica e, além do mais, ela não faz parte do grupo de pessoas típicas. Ela bem dissera que eu deveria voltar de meia ou, se tivesse ainda mais bom senso, chamaria um táxi, simplesmente. Eu afirmei com bravata que nada de táxis; precisava do meu pão de sábado. Ela se lembrou da história das medalhas e das linhas de chegadas e aquiesceu. No momento, consolo a dor dos pés com a delícia do doce de leite, numa espécie de quid pro quo absurdamente vulgar. Ao menos, dessa vez, os cadarços do tênis estão frouxos o suficiente para conseguir removê-los sem ajuda e sem demonstrações vergonhosas de minha parte. Meu plano é devorar o pão doce até o fim, lamber os dedos, limpá-los com um guardanapo estrategicamente posicionado à minha frente, tirar o tênis, despedir do padeiro e voltar para casa de meia. Prefiro voltar aos pés suados do que aos pés inchados. Nada pode dar errado nesse projeto.

5

Tudo dá errado nesse projeto. Arrependo-me profundamente de não ter chamado um carro, especialmente sabendo que tenho celular e dinheiro no bolso. O pé inchou, suou, secou toda vez que eu parei para respirar e tirar a meia em meio ao excessivo desconforto, e voltou ao estágio um do processo até que, finalmente, ganhei a rua do meu prédio. No meio do caminho entre o parque e meu “lar, doce lar”, batera um desejo de voltar para aquele gramado desfalcado. Flertara com a ideia por umas centenas de metros, já sabendo que sentia falta da garota, não da grama em si. Adoraria conversar com ela no sábado que vem, assumindo, lógico, que ela estará lá batendo ponto. Ela pode simplesmente desistir de correr de uma hora para outra, e o que poderei fazer? Nada, absolutamente nada. A mera noção substituiu o sabor agradável, pós-pão doce, que ficara descansando dentro da boca, por um amargor frustrante.

O par de tênis pendurado nos ombros, as meias largadas em uma lixeira há umas ruas atrás, finalmente chego em casa; a fachada do prédio incrivelmente envelhecida, incrivelmente carente de uma boa pintura. Parece até a camisa da Bolt. Logo noto algo na paisagem que não havia deixado aqui ao sair para a corrida: um carro de polícia e uma modesta multidão formando um círculo em torno de não sei o quê. Já que nunca fui do tipo que para no caminho por qualquer comoção, vou direto para a portaria, e há algo de errado com o Seu Agnaldo. Por algum motivo, ele não dá ares de pronto a jogar apelidos no ar. Creio que a multidão lá fora guarda a resposta deste enigma. Nada digo, pois, a interrogação provavelmente está escrita em letras garrafais bem na minha testa. Seu Agnaldo, branco como folha de papel, informa.

_ Ela se jogou do terraço… Eu... Eu estava... Aqui aproveitando a manhã e... Ela...

Ele aperta os olhos e retrai o corpo como se estivesse ainda agora ouvindo o desconcertante baque do corpo que cai e choca-se contra o asfalto. Espero jamais saber com exatidão como é. Talvez um trovão cortando os céus e as conversas, ensurdecendo, roubando as reações. Penso em panquecas e em vermelho. Penso em massas disformes as quais poderiam ter sido um ser humano antes do “cabrum”. Não há como dizer onde a pele, músculos, sangue e ossos começam ou terminam. Talvez seja um exagero da minha parte; talvez eu veja muitos filmes. Mas Seu Agnaldo acabou de dizer. Ela caiu... Do terraço de vinte andares. Agora vejo cachos castanhos pegando o vento da queda. A calça de pijama enchendo-se de ar, membros superiores e inferiores finos e de borracha, deixando-se levar ao destino final. 

Espera. Seu Agnaldo acabou de dizer que quem se jogou do teto era uma “ela”. A pessoa, ou o que foi uma pessoa, estirada no asfalto é uma “ela”.

_ Era a menina do 102...

Deve ser a primeira vez que vejo Seu Agnaldo triste por não lembrar o nome de alguém. A combinação de “menina” com “102” se converteu em fissura de átomos para me acertar em cheio um soco violento, nuclear, na barriga, que me fez perder o ar. Minha mente torna-se, prontamente, em terra arrasada pela magnitude desta bomba. A menina do 102, aquela do recado de semanas atrás, é uma conhecida, ou, ao menos, suficientemente conhecida. Seu nome é Marjorie e cursamos quase todo o ginásio, juntos. Brincávamos de polícia e ladrão quando crianças, usando as escadas do prédio; com muita energia, subíamos e descíamos por vinte andares sem nunca cansar. Depois do Ensino Médio não nos falávamos muito, é verdade, mas nunca perdemos o contato totalmente. Não o bastante para eu esquecer que Marjorie nunca punha ketchup na pizza, nunca comia os M&M’s amarelos e nunca assistiu Star Wars, não porque não gostasse, apenas devido a uma bizarra falta de oportunidade.  Aposto que ela ia gostar. Não vai... Certo? A oportunidade de assistir ao filme, bem como todas as oportunidades sobre tudo o que poderia ser jamais chegará: morreu socada na rua lá fora junto com Marjorie do 102. Fim de corrida para você, sem direito à linha de chegada. Como podem existir pessoas que facilmente saem do mundo assim?! É como se a vida tivesse um botão vermelho enorme, escrito “ejetar”. 

Seja por meio de cacos ou de trovões, Bolt, não aperte essa porcaria de botão.

_ Ela estava cansada de tanto correr...

Não é uma explicação, mas é tudo o que posso oferecer ao abaladíssimo Agnaldo. Pego as escadas ao invés do elevador. Movimentos mecânicos conduzem-me até minha sala, onde desabarei no sofá e ficarei encarando uma televisão desligada por horas. O cérebro não consegue mais correlacionar pensamentos, entupido de espuma branca. Quanto aos pés... Que se danem!

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