Estávamos acostumados a ficar sem Raul por perto, afinal, ele estava quase sempre trabalhando até tarde, porém, saber que ele não voltaria mais era um sentimento diferente e aos poucos íamos nos adequando a essa nova ideia.
As semanas seguintes se desenrolaram sem nenhum contato dele. Depois de perder horas de sono pensando em como conseguiria manter uma casa e cuidar de dois adolescentes, reuni coragem para fazer as contas. Com a calculadora na mão, ajustando as despesas domésticas, percebi que aquela era a única área em que teríamos mudanças mais radicais. Uma vez que todas as outras coisas importantes, como criar os filhos, há muito tempo eu já fazia sozinha. A rotina ia voltando a se estabelecer. A prova disso foi mais uma discussão na mesa do café da manhã com Júnior sobre uma advertência. Outra vez eu estava sendo chamada na escola.
— É a sexta ocorrência neste ano. Se continuar nesse ritmo, vão te expulsar antes das férias, meu filho — ele estava no último ano do ensino médio e logo iria para a faculdade, mas, como a diretora havia me lembrado das últimas cinco vezes em que estive lá, as circunstâncias não eram muito favoráveis para isso acontecer.
— Não fiz nada! — ele disse com a boca cheia mastigando um pedaço de pão. — Juro. Não sei por que te mandaram esse e-mail.
— Você chegou ao estágio final de delinquência juvenil — Maytê descia as escadas vestida como integrante de uma banda punk dos anos 80. — Duvido que alguma faculdade aceite alguém com uma média de trinta advertências por ano. Você está fadado a viver ofuscado pelo meu brilho e pela minha fama, querido.
— Muito engraçado — Júnior jogou-lhe uma uva. Ela pegou com agilidade e enfiou na boca. — Ainda mais vindo de alguém que toca em uma banda de pop rock. Isso é o maior símbolo do fracasso de toda uma geração, querida.
— Parem com isso — agarrei Maytê pela cintura e a afastei do irmão antes que um acidente doméstico potencialmente fatal acontecesse.
— Mãe, teve alguma notícia dele? — Júnior perguntou, e eu neguei com a cabeça, igual nas outras três vezes em que ele já havia me feito a mesma pergunta.
A única coisa que me incomodava no sumiço de Raul era o fato dele não se importar com os filhos porque, para mim, ele já estava imprevisivelmente superado. Estranho, pensei.
— Ótimo! Agora podemos, por favor, trocar de canal e esquecer essa história de que temos um pai? — Maytê sugeriu tão naturalmente como se estivesse propondo um passeio no parque em um domingo ensolarado. — Não merecemos sofrer por quem não deseja estar com a gente.
— May, as coisas não funcionam assim e você sabe disso — ser obrigada a defender Raul não era um item da minha lista de afazeres, mas ele havia me colocado em uma posição muito delicada. — Independentemente do que aconteceu entre nós dois, ele ainda é o pai de vocês.
— Mãe, ela está certa — agora era a vez de Júnior ter um ataque de franqueza. Meu Deus, que isso não saia do controle. — Ele se foi e está por aí curtindo a liberdade. Precisamos fazer o mesmo.
— Vamos. Tenho prova de Geografia e não posso me atrasar — Maytê puxou Júnior pela mão e, para o meu alívio, encerrou a conversa sem maiores danos.
Eu conhecia todos os detalhes da sala de espera da diretora, assim como cada um dos outros pais que também sempre eram ali chamados. Dessa vez, eu era a única folheando revistas velhas. Isso me deixou um pouco apreensiva, já que Júnior sempre aprontava com os amigos, e agora ele havia agido por conta própria e sozinho.
Enquanto lia uma reportagem sobre um gato que havia salvo a família de um incêndio, e anotava mentalmente sobre a possibilidade de substituir Raul por algum animalzinho, uma moça sentou-se ao meu lado. Ela respirou fundo e fechou os olhos. Fingi não notar sua presença e continuei concentrada na foto do gatinho bombeiro nos braços da família feliz, mas alguma coisa nela insistia em chamar minha atenção. Comecei a me mexer sutilmente na cadeira para vê- la com o canto do olho.
A moça tinha o cabelo preto com mechas rosas nas pontas, que elegantemente caíam sobre suas costas. As pernas e os braços exibiam várias tatuagens. Com toda delicadeza ainda restante em mim, inclinei o corpo para tentar identificar os desenhos. Uma caveira colorida cobria a coxa direita e, na outra, havia uma espécie de pássaro preto, porém não dava para ter certeza, a menos que eu levantasse e me sentasse na cadeira em frente ou disfarçadamente enfiasse a cabeça entre as pernas dela.
Ela abriu os olhos e me encarou curiosa, inviabilizando minhas opções. Droga! Então voltei para minha posição original e para a história do gato, que agora dormia na cama dos donos e tinha a própria televisão.
— Consegue imaginar? — ela perguntou sem tirar os olhos de mim. — Em um dia você briga com seu gato para ele parar de miar de madrugada e, no outro, ele salva a sua vida.
— Ainda não cheguei nessa parte — menti, envergonhada. Tinha certeza de que ela havia me pegado olhando para as tatuagens. Céus, por que minha sutileza nunca era o bastante?
— Está bem aqui — ela apontou para o subtítulo da reportagem, e vi outra tatuagem: o nome “Lucas”.
— É inacreditável mesmo — respondi e senti meu rosto corar.
Maldição.
O que diabos aquela garota estava fazendo e por que eu não conseguia simplesmente parar de encará-la?
Ela era um absurdo de linda, mas algo além de toda aquela beleza chamava minha atenção. Talvez fosse o jeito despreocupado como sentava na cadeira com as pernas esticadas, fazendo-a parecer sexy. Balancei a cabeça tentando expulsar o pensamento que pairava na minha mente.