Jennifer renunciou grande parte da sua vida para cuidar da família e no auge dos seus trinta e poucos anos, quando seu marido pede o divórcio durante um jantar, suas preocupações são: o último episódio da sua série favorita que estava prestes a começar, uma cansativa história sobre alguém que tenta processar uma loja de eletrodomésticos e os filhos adolescentes que acompanhavam atentamente a conversa. Bom, não necessariamente nessa ordem. Enquanto Jennifer e os filhos aprendem a lidar com a nova rotina, um sentimento há muito tempo guardado insiste em voltar a aparecer quando ela conhece Liz, monitora de matemática na escola dos filhos, e se vê possivelmente, na verdade, completamente apaixonada pela moça. Ela agora tenta encontrar uma maneira de viver a descoberta de sua nova identidade ao mesmo tempo que ajusta os papéis de mãe, filha, irmã, amiga, namorada e ex-esposa.
Leer másEra para ser só mais um jantar de sexta-feira. Desses em que a gente pergunta para os filhos se aprenderam algo interessante durante a semana na escola. Eles respondem sem nem usar a dicção, engolem a comida em meio a algumas caretas, só para se livrarem das próximas perguntas e correm para o carro de algum amigo que desesperadamente buzina no portão.
Mas, enquanto servia a salada no prato do meu marido, notei algo errado.
— Aconteceu alguma coisa? — preparei-me para ouvir a longa história do seu cliente mais recente, que tentava processar uma loja do shopping depois de tropeçar no fio de um aparelho sonoro. Encostei os dois cotovelos na mesa e, meio sonolenta, torci para ele chegar logo na parte onde os envolvidos faziam um acordo.
Raul grunhiu uma resposta e continuou brincando com uma folha murcha de alface por algum tempo, antes de dizer com a voz firme:
— Quero me separar de você.
Ufa! Havia me livrado da extensa e cansativa narrativa jurídica sobre o desastrado da loja, mas, droga… o último episódio da minha série favorita começaria em dez minutos. Não estava nos meus planos lidar com um pedido de divórcio naquele momento, ainda mais na frente de dois adolescentes.
Por um momento, fiquei completamente inerte. Pensei que era algum tipo de brincadeira idiota, ele daria uma risada exagerada, jogaria para trás o seu maravilhoso cabelo e apontaria para as câmeras. Porém, infelizmente, Raul não era um engraçadinho como Marcos, marido da minha irmã, Kate.
Durante uma viagem de férias, Marcos fingiu um ataque cardíaco enquanto faziam sexo e gravou a reação da esposa com uma câmera escondida. Ninguém achou aquilo muito engraçado, exceto o próprio Marcos. Ele dizia que ver Kate correndo em desespero e pelada pelo corredor do hotel, pedindo pelo amor de Deus para alguém chamar uma ambulância, era hilário. Marcos não perdia a oportunidade de mostrar o vídeo para qualquer pessoa, incluindo o pastor da igreja que eles frequentavam. Isso levou minha irmã ao limite: ela encurralou o marido no banho com uma faca, ameaçou matá-lo e exibir o vídeo em um telão durante o velório. Marcos levou muito a sério o aviso e apagou o vídeo. Ele ainda tem uma cópia escondida no computador, nunca contei para ninguém, pois, apesar do senso de humor que beira ao sadismo, gosto do meu cunhado. E também odiaria ser obrigada a visitar Kate na prisão.
Ao contrário de Marcos, Raul não gostava de brincadeiras nem tentava ser um comediante desses sem graça. Era só um idiota insensível e capaz de supor que a maneira menos traumatizante de pedir o divórcio seria fazer isso em pleno jantar de sexta-feira, deixando os filhos boquiabertos enquanto algum amigo buzinava do lado de fora.
No dia seguinte, mais rápido que o tempo de espera da pizzaria do bairro, Raul arrumou suas coisas, pois estava indo para um apartamento alugado e entraria em contato quando estivesse com a cabeça fria. Interpretei aquilo como um sinal de uma separação definitiva, afinal, ele nunca estava de cabeça fria.
— Essas malas são minhas — foi o que consegui dizer ao vê-lo descer as escadas. — Não pode levá-las.
— Você odeia essas malas, já disse uma centena de vezes que elas são horríveis e vive querendo jogá-las fora.
Tudo bem, concordo que coerência não era meu ponto forte no momento. Em minha defesa, ele não tinha o direito de pedir que eu fizesse algum sentido enquanto estava indo embora.
— Mesmo assim — falei cheia de coragem — ainda são minhas.
— Está bem, Jennifer — ele se irritou. — Vou levar minhas coisas para casa e devolvo essas malditas malas. Ou posso usar sacos de lixo, se você preferir.
Na verdade, prefiro sim! Pensei em dizer, desafiadoramente. Em vez disso, resolvi perguntar o que eu já sabia.
— É alguém do escritório?
— Como? — ele tentou bancar o confuso para evitar acabar com as chances de um divórcio amigável, mas se entregou com uma reação exagerada, como sempre fazia quando estava mentindo. — Do que você está falando? Você está sendo ridícula, Jennifer.
— É a Patrícia? — estava mesmo sendo ridícula, mas a verdade é que não sabia como agir. Eram minhas primeiras horas de mulher abandonada pelo idiota do marido. Eu precisava saber a verdade ou pelo menos parte dela.
— Escuta, Jennifer, estou infeliz — ele soltou as malas no chão ao lado da porta e segurou meus ombros de jeito passivo-agressivo, fingindo carinho enquanto me apertava com força. — Se você quer realmente saber, é a Patrícia. E também a Raquel, a Mônica, a Gisele e qualquer outra mulher capaz de fazer com que eu me sinta vivo. Não aguento mais essa prisão. Preciso sair enquanto ainda tenho tempo, vou enlouquecer se continuar vivendo com vocês.
Eu poderia xingá-lo, tentar estrangulá-lo ou rasgar sua estúpida camisa, uma que, por sinal, eu havia comprado, lavado e passado. Entretanto, eu já não queria fazer nada. Naquele momento, me dei conta de que a mentira em que estive vivendo todos aqueles anos estava se acabando. E, assustadoramente, fiquei aliviada.
Quando finalmente amanheceu, me arrastei da cama para o sofá e passei o dia desviando das janelas, temendo que Raul aparecesse outra vez. Liz me ligou duas vezes. Olhei a foto dela piscando na tela do celular até desaparecer. Não atendi. Era muito difícil ignorá-la, mas ouvir sua voz me faria desistir de qualquer ideia de afastamento, e eu precisava pensar em como terminar tudo.No final da tarde, fui buscar meus filhos no acampamento da escola. Ainda estava perdida em meus pensamentos, eles iam de Liz para Raul, e levei um susto quando Maytê pulou para dentro do carro antes mesmo de eu estacionar.—
Atendi ao pedido de Suze e esperava na varanda quando um carro desconhecido parou em frente à minha casa. Temi ser Raul e meu corpo travou. O coração disparou no peito e calculei a distância até a casa da Dona Amélia. Estava pronta para correr, até que Suze saltou junto com Roberto. Ele carregava uma caixa de ferramentas. Ela me abraçou. Tentei esconder o rosto, mas ela o segurou entre as duas mãos, analisando o estrago. Aliviada por constatar que eu estava bem, finalmente xingou Raul.— Desgraçado, idiota, vou matá-lo — ela bradava, enquanto Roberto me olhava preocupado, logo depois de me dar um abraço paternal.— — Você está com outro homem? — perguntou com a voz grave, andando até mim, e me encurralou entre a cama e a cômoda.— Não — respondi, sem deixá-lo perceber minha voz trêmula. — Claro que não estou com outro homem, Raul.— Ótimo! — ele voltou ao tom de voz doce, como se estivéssemos negociando a compra de um sofá. — Isso seria muito ruim para nossa família, certo?— Raul, por favor, vá embora — aproveitei seu afastamento e me sentei na cama, mantendo distância e tentando parecer calma — Já é tarde, estou cansada. A gente conversa sobre isso depois.Inesperadamente, ele me puxou pelo braço e me empurrou contra a cômoda. O hálito carregado de álcool e o cheiro forte do corpo dele me deixaram enjoada.— Eu vou ficar, Jennifer. Você não pode fazer isso comigo — ele gritava, alternando entre raiva e um choro falso. — Não pode me deixar sozinho.— Me solta, você está me machucando — tentei permanecer serena, mas a verdade era que não sabia como sairia daquela situação. — Você está bêbado e vCapítulo 24 - A dor
— Jennifer? — ele perguntou sonolento, enquanto eu jogava minha bolsa no chão e vestia, às presas, meu vestido antes que ele abrisse os olhos.— Raul, sai da minha cama agora.— Eu voltei — Raul respondeu com a maior naturalidade e... cara de pau.— Como assim, “voltou”? O que você quer dizer com isso?— Voltei para casa, Jennifer — falou sem nenhum pingo de humildade. Com certeza, estava esperando uma recepção mais calorosa.— Ai, meu Deus! Isso não pode estar acontecendo — falei para mim mesma enquanto andava pelo quarto, tentando aumentar ao máximo a distância entre nós.— Olha, errei, eu sei. Mas estou arrependido. O meu lugar é aqui, com você — ele argumentou, cansado. Sua aparência estava deplorável: barba por fazer, os olhos vermelhos e os cabelos loiros, antes divinamente cuidados, agora desgrenhados e sem vida.— Que direito você acha que tem para simplesmente aparecer aqui, depois de meses sumido, e agir como se nada tivesse acontecido? As coisas não são tão simples assim.—
Depois do incomum almoço, Liz não teve como me livrar das perguntas místicas de uma Aurora empenhada em descobrir o máximo sobre mim e minha possível vida pregressa. Enquanto isso, Liz se afundava na poltrona ao meu lado e, carinhosamente segurava minha mão, dando risadas ao ouvir as teorias da avó.— Não sei se acredito que a Jennifer foi a Duquesa de Devonshire, vó — Liz disse, após Aurora anotar todos os detalhes da minha vida em um caderno e me dar o resultado de alguma ligação maluca que ela havia encontrado.— Isso é porque não podemos ter certeza de nada. Devemos estudar as possibilidades e nunca descartar o desconhecido. Certezas cimentam a mente— Aurora concluiu vagamente, enquanto eu pensava se poderia tatuar aquela frase. — Agora, se me dão licença, vou colocar os animais para dentro. A tempestade está chegando.— Vem, quero te mostrar um lugar — Liz me me puxou pela mão com delicadeza, como sempre fazia.Caminhamos por dois minutos até chegarmos a orla de um lago atrás da
No sábado, Júnior e Maytê foram a um acampamento da escola e eu dirigi até a casa da avó de Liz. Ela havia me mandado o endereço mais cedo e avisou que me esperaria lá. Era um sítio a poucos quilômetros de Brasília.Quando enfim cheguei, Liz estava me esperando no portão com uma pequena matilha correndo alegremente à sua volta.— Pode estacionar o carro em qualquer lugar, menos embaixo da mangueira. As mangas estão caindo e minha avó não se responsabiliza pelos possíveis incidentes — ela apontou a enorme árvore ao lado da casa. O rosa do seu cabelo havia sido substituído pelo azul. E, para variar, ela estava linda.Desci do carro e uma criatura élfica surgiu na minha direção com os braços abertos.— É um grandioso prazer recebê-la em nosso lar, Jennifer — ela me envolveu em um sufocante abraço.— Já chega! Ela não está conseguindo respirar — Liz correu em meu socorro.— Eu sou Aurora — a avó de Liz se apresentou. E, olhando de perto, entendi o que Suze quis dizer com “excêntrica”. Ela
Último capítulo