MIRELA
Assim que ele virou as costas e entrou no quarto, eu me permiti sorrir. Não pro Rodrigo. Pra mim mesma. Eu tinha conseguido. Vi o jeito que ele olhou. Vi a mandíbula travada, os olhos escuros queimando de raiva, o jeito que apertou a mão do Rodrigo como se quisesse quebrar os ossos. Ele tava com ciúmes. Não dava mais pra negar. E foi por isso que eu fiz. Porque eu precisava saber se ele me enxergava. Se aquele abraço da noite passada não tinha sido só um lapso. Se o corpo dele colado no meu, a mão quente na minha barriga, não era só instinto. E agora eu tinha certeza. — Seu tio é meio... intenso — disse Rodrigo, rindo sem graça. — Ele é assim mesmo. Protetor. — menti, sem tirar os olhos da porta de vidro que ele tinha acabado de atravessar. Meu coração ainda acelerado. Rodrigo tentou puxar conversa, mas eu não ouvi direito. Meus pensamentos estavam todos em outro lugar. Em outro homem. Em outro toque. O do Thiago. Não sei quando começou isso, talvez antes mesmo de eu entender o que era desejo. Desde pequena, ele sempre foi o tio lindo, o mais engraçado, o mais "diferente". O que quase nunca trazia namorada, mas sempre chegava com histórias de festas e viagens. Ele era o meu herói desajustado, o tipo de adulto que não seguia regra nenhuma, mas ainda assim me fazia sentir segura. Quando ele chegou na casa da Rafaela, eu senti meu corpo todo reagir. O tempo não tinha feito nada com ele. Se bobear, só deixou mais bonito. Mais homem. Mais perigoso. E quando me abraçou... ah, quando me abraçou... Aquele cheiro, aquela firmeza. Não era mais colo de tio. Era abrigo de homem. Era desejo preso na pele. Eu sabia que era errado. Sabia que tinha coisa demais acontecendo dentro da minha cabeça. Mas o que eu podia fazer se meu corpo ignorava todos esses limites? Ver ele com raiva, com ciúmes, com aquela tensão toda... só aumentou minha certeza. Ele me desejava. Rodrigo era só uma peça do jogo. Um blefe. Um espelho que eu coloquei na frente do Thiago só pra ele se ver. E funcionou. — Vou embora — Rodrigo disse, depois de alguns minutos sem minha atenção. Assenti com a cabeça e o acompanhei até a porta. Dei um beijo rápido, sem vontade. E ele percebeu. Claro que percebeu. Mas não falou nada. Fechei a porta atrás dele e encostei a testa ali por alguns segundos, tentando entender o que eu tava fazendo com a minha vida. Com os sentimentos dele. E com os meus. Voltei pra varanda e me joguei na poltrona. O vento frio da manhã já tinha dado lugar ao calor do meio-dia. E dentro de mim, o calor era ainda maior. Olhando pro horizonte da cidade, pensei: Você sentiu, né, tio? Me diz que sentiu... Porque eu tô aqui, me queimando inteira por você. --- Passei o dia inteiro trancada no quarto. Não por drama, mas porque se eu olhasse de novo pra cara do Thiago, eu não sei do que seria capaz. Minha mente tava uma bagunça. Um caos, na real. Era impossível esquecer o jeito que ele me olhou hoje cedo, o ciúmes estampado na cara. Não era coisa de tio. Era coisa de homem. O celular vibrava de tempo em tempo com mensagem do Rodrigo, mas eu nem respondi. Ele veio do Rio pra me ver, pra ficar comigo. Mas ele não sabe que a presença dele hoje, aqui, só serviu pra uma coisa: provocar. E funcionou. O sol já tava se escondendo quando ouvi passos pela casa. A campainha tocou. Adivinhei que ele tinha pedido comida de novo. Fui pro banheiro, lavei o rosto, ajeitei o cabelo num coque frouxo e vesti um vestido soltinho, sem sutiã mesmo. Se ele quer guerra, vai ter. Desci. A mesa da varanda tava posta. Vinho, suco duas taças, luz amarelada vindo de uma luminária pendurada no teto. Ele tava de costas, mexendo nas caixas com comida. Usava uma camiseta preta justa que marcava os ombros largos e a calça de moletom que marcava tudo. Era casual demais pra tanta tensão entre nós. — Achei que você não fosse sair do quarto. — ele falou sem me olhar. — Eu tava sem fome. — E agora? — Agora… eu tô faminta. Ele me olhou por cima do ombro. O olhar dele desceu pelas minhas pernas nuas até parar no decote solto do vestido. Prendeu a respiração por um segundo. Sorriu torto. — Que bom. Pedi comida italiana. Você curte? — Desde que não venha com gelo na alma como seu humor hoje cedo, tá ótimo. Ele riu, mas foi uma risada seca. Sentamos. Por alguns minutos só se ouviam os garfos batendo nis pratos e o som de carros lá embaixo. O vento batia de leve, e o vestido subia nas minhas coxas. Ele notou. Eu sabia que notaria. E eu deixei. — O Rodrigo é um bom garoto — soltei, só pra ver a reação. Ele mastigou devagar, sem olhar pra mim. — Uhum. — Educado, cheiroso, gentil... gosta de conversar, gosta de ler... — Legal — disse curto. Encheu a taça dele de vinho e me ofereceu. — Quer? — Quero. — Estendi a taça e nossos dedos se tocaram por um segundo. Longo o bastante pra arrepiar. — E você gosta dele de verdade? — ele perguntou de repente. Fiquei quieta. Bebi um gole antes de responder. — Gosto da ideia de ser desejada por ele. O olhar dele veio quente, direto. Silencioso, mas feroz. — Você não precisa de moleque pra isso. — E eu preciso de quê, então? A tensão cortava o ar. Os dois sabiam. Mas ninguém falava. Ainda. — De juízo. — ele respondeu firme, mas os olhos disseram outra coisa. Desejo. Confusão. Luta interna. — Eu tenho, sabia? — Não parece. — E você? Tem juízo, Thiago? Ele ficou em silêncio. Apertou a taça com força e encarou o vinho como se ali tivesse as respostas do mundo. Depois soltou: — Se eu tivesse, você não estaria aqui, pequena. Se jogando no meu colo, deitando na mesma cama... Fiquei sem fala por um segundo. Era a primeira vez que ele verbalizava. A primeira fresta real que ele deixava aberta. Me levantei da cadeira e fui até a beira da varanda. O vento fez o vestido dançar no meu corpo e ele deve ter visto mais do que devia. Mas não me importei. — Sabe o que é mais doido? — falei sem olhar pra ele. — Eu me sinto segura perto de você… e ao mesmo tempo, completamente à mercê. — Você não sabe o que tá dizendo. — Sei sim. Sei mais do que você acha. Ele se levantou devagar e veio até mim. Ficou a um palmo de distância. O suficiente pra me deixar tonta com o cheiro dele. Sândalo, pele quente, perigo. — Vai dormir, Mirela. Antes que a gente cruze uma linha que não tem volta. — Já cruzamos, Thiago. Só falta um de nós admitir. Ele fechou os olhos por um segundo, respirando fundo. Quando abriu, os olhos dele estavam em chamas. Mas ele se virou e saiu, sem dizer mais nada. Fiquei ali, com o coração disparado, os lábios trêmulos e a certeza: ele podia fugir agora. Mas a queda... era só questão de tempo.