Mundo de ficçãoIniciar sessãoCAMILA
Os primeiros dias ali foram silenciosos demais e um pouco solitário. Os funcionários se moviam como sombras, discretos, precisos, quase invisíveis. As vozes eram baixas, os passos medidos. E eu, no meio daquilo tudo, sentia que cada gesto meu era observado, mesmo quando ninguém estava me olhando.
No início, ficava constrangida até pra chamar alguém. A cama parecia grande demais, o closet vazio, mas intimidante.
Demorei dois dias pra parar de pedir “licença” cada vez que atravessava o corredor.
Dona Elisa, por outro lado, não me deixou escapar. No terceiro dia, eu estava sentada no jardim lendo um livro quando ela apareceu com uma xícara de chá e um lenço azul amarrado no pescoço.
— Gosta das flores? — perguntou, sem preâmbulos.
— Gosto, eu cultivava com a minha avó quando ela era viva — respondi, e isso pareceu ser o suficiente pra ela me arrastar até o canteiro.
Daquele dia em diante, era quase um ritual. Ela me esperava com as luvas de jardinagem e me ensinava o nome de cada espécie, rosas inglesas, jasmins, camélias, como se fosse uma aula de paciência e beleza. Eu a ouvia, fascinada. Talvez porque, em meio àquele luxo gelado, Dona Elisa era a única parte viva, humana, que realmente me enxergava.
— Leonardo nunca gostou de flores — Ela comentou um dia, aparando as pontas de uma roseira. — Dizia que elas morriam rápido demais.
— E o que a senhora dizia para ele?
— Que a beleza está justamente nisso. No fato de ser temporária. — Ela me olhou de lado, sorrindo. — Ele nunca entendeu.
Eu sorri também e percebi que ela gostava de falar sobre o neto, não pra elogiá-lo, mas pra tentar decifrá-lo. E, a cada conversa, eu também tentava.
Três dias depois, ela entrou no meu quarto sem bater, com a energia de quem já havia decidido algo.
— Vista-se, querida. Vamos sair.
— Sair? — perguntei, confusa.
— Sim. Me recuso a ver uma moça tão bonita viver de calça preta e blusa simples dentro desta casa.
— Mas eu…
— Sem “mas”. Leonardo me contou que te deu um cartão de crédito ilimitado. — Ela ergueu uma sobrancelha, divertida. — Está esperando o quê pra usá-lo?
— Não gosto de gastar o que não é meu.
— Pois devia aprender — respondeu, com um sorriso astuto. — A vida já tira demais da gente, quando devolve algo, é falta de educação recusar.
Abri a boca para responder, mas Dona Eliza foi mais rápida:
— Nem tente discutir. — Ela levantou uma sobrancelha, num gesto que lembrava demais o neto. — É uma causa perdida.
Acabei cedendo.
Pouco tempo depois, o motorista nos levou até o centro comercial mais elegante da cidade. Eu nunca tinha entrado em um lugar assim, com vitrines reluzentes, atendentes uniformizados, até champanhe nos serviram, tudo impecável.
A sensação era a de estar andando dentro de um sonho, mas Dona Elisa parecia completamente à vontade, caminhava com a segurança de quem dominava o território.
— Primeiro, roupas — decretou. — Depois, sapatos, jóias e, por último, um perfume decente.
— Perfume?
— Sim. Toda mulher precisa de um cheiro que a anuncie antes de entrar e permaneça quando vai embora.
— Eu nunca tinha pensado nisso.
— Não se importe com os preços. — Ela disse, assim que entramos na primeira loja. — Preço é uma invenção pra fazer as pessoas pensarem que merecimento se mede em números.
Eu ri, sem jeito.
— Falar é fácil quando se tem um cartão ilimitado.
— Querida, eu tinha dívidas antes de ter dinheiro — respondeu, com um sorriso leve. — A diferença é que aprendi a não me envergonhar do que preciso.
A primeira loja era o tipo de lugar onde eu teria medo de encostar em qualquer coisa.
— Precisamos de um guarda-roupa inteiro — disse, apontando pra mim. — Algo que diga “nova fase”, sem parecer “fui sequestrada pelo luxo”.
A mulher riu, cúmplice, e começou a separar peças. Camisas de seda, calças bem cortadas, vestidos leves. Dona Elisa me empurrava pro provador como uma general gentil.
— Vista tudo. E não ouse sair com a mesma expressão de quem está indo pra entrevista de emprego.
No espelho, eu mal me reconhecia. As roupas caíam bem, mas era mais do que isso, parecia que eu estava sendo lentamente reposicionada dentro de mim mesma.
Quando saí do provador com um vestido creme simples, Dona Elisa me avaliou com um olhar demorado.
— Aí está — murmurou. — A moça que o meu neto nunca soube que precisava ver.
Senti o rosto corar.
— Ele não…
— Eu sei, querida. — cortou ela, rindo. — Mas ainda assim, vista-se pra lembrar a si mesma de quem é.
Saímos dali com tantas sacolas que o motorista precisou fazer duas viagens até o carro, mas Dona Elisa não parecia satisfeita.
— Agora, sapatos. E, antes que reclame, é um investimento em postura.
A loja de sapatos era um paraíso de vitrines iluminadas. Ela me fez provar saltos, sapatilhas, botas.
— A sociedade inteira ficou escandalizada — Ela acrescentou, rindo. — Mas foi a primeira vez em que me senti viva.
— E Leonardo? — perguntei, curiosa. — Ele sabe dessas histórias?
— Ah, meu neto nasceu com o coração sob contrato — respondeu, com doçura e melancolia. — Ele aprendeu cedo que sentimento demais compromete a imagem.
Enquanto ela falava, eu a observava com uma mistura de carinho e admiração. Era impossível não gostar de Dona Elisa. Ela era o oposto do que eu esperava: leve, espirituosa, com um brilho nos olhos que te fazia esquecer o tempo.
Quando pensei que o passeio tinha acabado, ela puxou meu braço e me arrastou até uma perfumaria. O ar era doce, repleto de notas de flores e especiarias. Uma atendente borrifou algumas fragrâncias no ar, e Dona Elisa observou como se estivesse julgando obras de arte.
— Esse é muito frio — julgou. — Você precisa de algo com calor, mas não com desespero.
— Acho que nunca pensei tanto num perfume.
— Pois devia. Perfume é um aviso, um sussurro. Um segredo que só alguns decifram.
Quando ela encontrou o certo, uma mistura de jasmim e âmbar, virou-se pra mim com um olhar satisfeito.
— Pronto. Agora, sim, você tem cheiro de quem pertence a qualquer lugar onde decida estar.
Eu sorri, emocionada, e tentei agradecer.
— Dona Elisa, eu não sei nem o que dizer…
— Diga que vai aproveitar — interrompeu, pegando uma sacola e me entregando. — O cartão que Leonardo te deu não é um fardo, é um convite. Ele pode não saber dar flores, mas sabe reconhecer quando precisa regar o jardim.
A frase ficou ecoando em mim enquanto voltávamos pro carro e, pela primeira vez, olhei pro cartão de crédito que carregava na bolsa sem sentir culpa. Pensei que talvez, de algum modo, aquilo não fosse apenas sobre dinheiro. Talvez fosse sobre aprender a aceitar o que a vida estava tentando me oferecer mesmo que viesse disfarçado de luxo.
Saímos do shopping com sacolas demais para uma manhã só. Rimos quando o motorista reclamou que o porta-malas já estava cheio.
No caminho de volta, ela me contou histórias do passado, do tempo em que administrava os negócios da família, das viagens, das brigas com o marido, das tentativas frustradas de convencer Leonardo a ser menos controlado.
— Ele era um menino doce — comentou, com um olhar distante. — Mas quando se cresce rodeado de gente esperando seu erro… você se acostuma a não mostrar nada.
— E a senhora acha que ele ainda é assim?
— Acho que ele está cansado de fingir que é de ferro. — Ela pousou a mão sobre a minha. — E talvez você tenha vindo pra lembrá-lo que até o ferro enferruja.
Fiquei em silêncio, sentindo o peso daquelas palavras.
O procedimento foi feito na semana seguinte. As consultas eram meticulosas. O corpo precisava ser preparado antes da inseminação. Exames, remédios, injeções diárias de hormônios.
Certa manhã, quando desci para pegar um novo livro na biblioteca, encontrei Dona Elisa na biblioteca. Ela estava lendo e, sem levantar os olhos, disse:
— Você está pálida, querida.
— Deve ser efeito da medicação — respondi, sentando-me à frente dela.
Ela fechou o livro e me observou por um instante.
— Você está bem?
— Acho que sim.
— É o suficiente, por enquanto. — Ela se inclinou, apoiando a bengala ao lado. — Quando o corpo se cansa, o coração costuma seguir logo atrás. Por isso, não se feche.
— Eu não me fecho — menti.
Ela sorriu de leve, como quem enxerga o que a gente tenta esconder.
— Leonardo faz o mesmo. É de família.
— Ele parece… sempre no controle.
— Parece — disse, com um brilho triste nos olhos. — Mas ninguém controla o que sente pra sempre.
Ficamos em silêncio depois disso, o tipo de silêncio que não é desconfortável, mas cheio de significados que não precisam ser ditos.







