Capítulo 6

Eu ainda estava no meu quarto me arrumando quando ouvi passos no corredor. Passos leves, firmes e contidos, o tipo de andar de quem ainda não sabe se pertence ao lugar, mas tenta não incomodar.

Só podia ser Camila.

Terminei de abotoar a camisa, vesti o paletó e saí do quarto. Quando passei pela escada, vi o vulto dela desaparecendo na direção da sala de café, com cabelo preso, postura ereta, roupas simples, quase discreta demais para aquele cenário. E, ainda assim, havia algo nela que parecia desafiar o ambiente, como se não se deixasse engolir pela grandiosidade do lugar.

Desci os degraus devagar, sem pressa, ouvindo o som das porcelanas, o murmúrio contido de Dona Elisa e o estalar das páginas de um jornal sendo dobrado. Quando entrei na sala, fiquei surpreso ao ver que minha avó já ocupava seu lugar na cabeceira da mesa, Camila estava sentada mais à frente, com as mãos cuidadosamente apoiadas no colo.

— Bom dia — disse, deixando que minha voz preenchesse o ambiente.

— Finalmente acordou, Leonardo — Minha avó falou enquanto dobrava o jornal com um sorriso leve. — Estava prestes a mandar buscar você.

— Achei que prefeririam conversar em paz — respondi, puxando a cadeira ao lado dela. — Bom dia.

Camila se levantou de imediato.

— Bom dia.

— Pode se sentar, querida — disse minha avó, com um gesto suave. — Aqui não há formalidades pela manhã, só café e conversa.

Camila obedeceu, e um brilho breve atravessou os olhos dela, como se aquele pequeno gesto tivesse aliviado o peso da situação.

Dona Elisa, por outro lado, parecia completamente à vontade.

— Então é você a moça corajosa que decidiu embarcar nessa loucura conosco — comentou, servindo mais café na xícara de Camila. — Espero que Leonardo não tenha sido… excessivamente objetivo.

— Ele foi claro — respondeu Camila, com um sorriso discreto. — E justo.

Minha avó riu, satisfeita.

— Claro e justo. Acho que é a primeira vez que ouço essas duas palavras sendo usadas pra descrever o meu neto.

Camila riu também e o som dela preencheu o ambiente de um jeito que me pegou desprevenido. Era leve, sincero, diferente de tudo o que eu estava acostumado a ouvir naquela casa.

Dona Elisa pousou a mão sobre a mesa e olhou diretamente para ela.

— Sabe, minha querida, há algo em você que me agrada. Não sei o quê, exatamente. Talvez o olhar… ou a calma. Essa casa anda precisando disso há muito tempo.

Camila pareceu sem saber o que responder.

— Obrigada, senhora Ferraz.

— Pode me chamar só de Elisa. — disse, firme, mas com doçura. — “Senhora” me faz sentir velha demais.

Camila sorriu, um pouco mais relaxada.

— Tudo bem... Elisa.

Minha avó sorriu de volta, satisfeita, e por um instante o ambiente inteiro pareceu respirar mais leve.

Eu me limitei a observá-las, a mulher que me criou e a mulher que, de algum modo, já começava a alterar o ritmo daquela casa.

— Espero que Leonardo esteja tratando você muito bem.

— Está, sim. — Camila respondeu com uma calma que parecia mais ensaiada do que natural.

Dona Elisa me olhou de soslaio, um daqueles olhares que dizem mais do que qualquer palavra: “Não estrague isso.”

— Camila, meu neto é teimoso, mas tem bom coração — disse minha avó, com um sorriso que escondia uma pontada de provocação. — Espero que não o deixe esquecer disso.

— Vou tentar. — Camila respondeu, educada, mas firme.

A risada leve de Dona Elisa encheu o salão, e por um instante, o ambiente que sempre pareceu frio me pareceu… habitado.

Logo depois do café, pedi que Camila se preparasse porque tínhamos hora marcada na clínica. Era o início oficial de todo o processo.

Durante o trajeto, o carro permaneceu em silêncio. Ela observava a cidade pela janela, e eu a observava de relance: a calma no rosto, a respiração controlada, o olhar distante. Não parecia medo, mas algo mais contido. Uma força silenciosa que me fez lembrar por que, de todas as opções possíveis, eu havia escolhido justamente ela.

— Nervosa? — perguntei.

— Um pouco. — respondeu, olhando o reflexo do vidro. — Acho que qualquer um estaria.

— É só uma consulta.

— Não é todo dia que alguém assina um contrato para mudar de vida.

— Mudar de vida é questão de perspectiva — comentei, quase por reflexo.

Ela riu, de leve.

— Essa é a resposta mais “Leonardo Ferraz” que eu podia esperar.

— E isso é bom ou ruim?

— Ainda não decidi.

Assenti, sem discutir. Aquela simplicidade na forma de enxergar as coisas tinha um efeito estranho sobre mim.

A clínica Shapiro era um reflexo de tudo o que eu prezava: moderna, eficiente e discreta. O doutor responsável já estava nos esperando, e o processo se desenrolou exatamente como planejei. Exames, termos médicos, protocolos de confidencialidade.

Camila manteve a postura o tempo todo. Lia cada cláusula com atenção, fazia perguntas pontuais, e mesmo quando hesitava, não demonstrava medo.

Era estranho… e admirável.

O médico me chamou de lado.

— A saúde dela é excelente. Os exames preliminares são favoráveis. Podemos começar em duas semanas.

Assenti.

Camila observava de longe, sem tentar ouvir, mas com os olhos atentos, como quem capta mais do que deveria. Quando o médico saiu da sala, ficamos sozinhos na sala.

— Parece mais um manual de instruções do que um acordo de confidenciabilidade — comentou.

— É pra garantir que não haja dúvidas.

— E você acha que um papel consegue evitar dúvidas? — perguntou, sem tirar os olhos do documento.

— Evita problemas. — respondi, e ela riu, baixo.

— Então é isso.

— É.

— E se eu mudar de ideia?

— Ainda pode. Até o início do procedimento.

Ela assentiu devagar.

— Você acha que eu vou mudar?

— Não.

— Por quê?

— Porque você me parece alguém que cumpre o que promete.

Ela mordeu o canto do lábio, pensativa.

— E você? Cumpre o que promete?

— Sempre.

Camila sustentou o olhar por um instante, depois assinou o documento. O som da caneta riscando o papel pareceu mais alto do que deveria.

— Pronto — disse. — Agora está feito.

— Sim — respondi, e a palavra saiu mais grave do que imaginei.

Voltamos à mansão no fim da manhã. O sol atravessava o jardim e iluminava o rosto de minha avó, que nos esperava sob o pergolado, um livro no colo e um sorriso calmo nos lábios.

— E então? — perguntou, antes mesmo que eu dissesse qualquer coisa.

— Está tudo certo — respondi.

— Excelente. — Ela se levantou devagar, apoiando-se na bengala. — Camila, minha querida, espero que tenha corrido bem.

— Correu sim, obrigada.

— Ótimo. — Ela tocou o braço de Camila com carinho. — Quero que se sinta em casa, está bem? Essa mansão pode parecer fria no começo, mas é só porque o dono dela insiste em fechar as janelas.

Camila sorriu, e eu virei o rosto para esconder o que seria, talvez, um sorriso meu também.

— Vou tentar aquecer o ambiente, então.

— Já está fazendo isso — respondeu minha avó, e saiu, deixando o seu perfume leve de lavanda no ar.

Ficamos em silêncio por alguns segundos, observando o jardim. Camila mexia no punho da blusa, desconfortável com tanta gentileza.

— Sua avó é… diferente do que eu imaginei.

— Como assim?

— Achei que seria mais… intimidadora.

— Ela é, só escolhe quem quer intimidar.

— Então acho que ela gostou de mim.

— Ela não costuma errar — respondi. — Se gostou, é porque tem motivo.

Camila olhou pra mim, e por um segundo, algo indefinido passou entre nós, não exatamente proximidade, mas um reconhecimento silencioso. Dois estranhos tentando aprender o que significa confiar.

Mais tarde, já sozinho no escritório, guardei o contrato no cofre e fechei a porta com um clique metálico.

Deveria sentir satisfação. O plano estava em andamento, tudo sob controle.

Mas o silêncio que veio depois parecia diferente, cheio demais.

Talvez porque, pela primeira vez em muito tempo, eu tivesse a sensação de que algo verdadeiro estava prestes a acontecer… e que não era eu quem estava no comando.

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App