Capítulo 3

CAMILA

Acordei com o som da chuva batendo na janela, aquele tipo de chuva fina e constante que parece ter sido feita para irritar quem já acordou cansado. Por um momento, apenas fiquei ali, olhando para o teto, esperando que o mundo parasse de girar tão rápido dentro de mim.

Mas ele não parou e, inevitavelmente, meus pensamentos voltaram para ele.

Leonardo Ferraz.

Eu ainda conseguia sentir o peso do olhar dele, aquele olhar que parece atravessar camadas que ninguém deveria ver. Não era arrogância, era algo mais profundo, como se ele tivesse sido treinado a observar antes de reagir.

E a proposta…

"Preciso de alguém que aceite gerar uma criança."

Eu já tinha ouvido proposta indecente, proposta de emprego suspeito, proposta de empréstimo, mas nada nem remotamente parecido com aquilo.

O homem que me salvou de um beco, e no dia seguinte, me ofereceu… um contrato de nove meses.

Sentei na cama, puxando a manta sobre as pernas. O quarto da pensão era pequeno, com paredes que descascavam nas bordas. Cheirava a café velho e madeira úmida, mas era o que eu podia pagar. Por enquanto.

Meu telefone vibrava na mesinha, com notificações de bancos que eu fingia não ver.

A pasta com meus documentos estava onde eu a tinha deixado: em cima da cadeira, amassada, um pouco molhada.

Eu era supervisora administrativa em um restaurante conhecido da cidade, não era o emprego dos meus sonhos, mas eu era boa. Boa de verdade.  Até o dia em que três caras apareceram na porta do restaurante.

Eu estava no escritório, imprimindo os relatórios da semana quando ouvi gritos no salão. Reconheci um deles na hora. Reconheci aquele andar perigoso, o olhar que mede, como quem decide se a pessoa à frente vai ser um problema ou uma moeda.

Eles queriam o meu irmão. Diego fez dívidas com quem não devia, estava sumido e agora, eles achavam que eu tinha que pagar a dívida.

Tentei contornar a situação, mas segurança já tinha sido acionada, clientes viram, e no dia seguinte, o dono me chamou no escritório com a expressão de quem acha que está fazendo um favor.

— Camila, você é ótima, mas… isso colocou o restaurante em risco.

— Eu não fiz nada.

— Nós sabemos, mas precisamos prezar pela imagem do local.

— Então vocês vão me demitir porque eu fui ameaçada?

— Não é nada pessoal.

Não era nada pessoal. Era sempre assim.

Saí com meus documentos dentro de uma caixa e uma sensação de que o mundo tinha diminuído ao meu redor. Desde então, eu vinha procurando emprego. Deixando currículos. Entrevistas. Silêncios.

E agora, tinha proposta de Leonardo.

Voltei para o presente quando alguém ligou o liquidificador na cozinha comunitária da pensão. Peguei o cartão de Leonardo no bolso da jaqueta.

Eu o virei entre os dedos.

Poder. Determinação. Controle absoluto.

Uma parte de mim sentiu raiva.

Ele tinha tudo e eu sempre tive que lutar por qualquer erro ou acerto.

Mas outra parte… a parte cansada… A parte que já estava no limite… Reconheceu algo naquele homem que eu nunca diria em voz alta:

Ele também estava cansado.

Não do mesmo jeito, mas cansado de outro tipo de dor.

— É só uma conversa — murmurei. — Você pode dizer “não”.

Mas eu sabia que se eu fosse, não seria só “uma conversa”. Quando se chega ao ponto de considerar algo assim, a metade da decisão já está tomada.

Vesti uma calça preta, a minha melhor blusa azul, a que me fazia parecer mais forte, prendi o cabelo num coque simples e saí no vento frio. Peguei o ônibus que fazia a rota até a clínica.

Quando cheguei lá, o mundo parecia… mais silencioso. O prédio da clínica parecia de outro mundo. Vidro, mármore e silêncio. Nada ali parecia feito para alguém como eu.

Fiquei pensando se estava fazendo a coisa certa, mas rapidamente tratei de tirar os pensamentos negativos da cabeça. Eu não tinha outra opção melhor.

Mas eu entrei.

A recepcionista me olhou como quem tenta medir o meu valor em dois segundos, não me deixei intimidar e mantive o queixo erguido.

— Bom dia. Qual seu nome?

— Camila Torres.

Ela digitou alguma coisa no computador e então deu um sorriso falso e me informou:

— Sala 4.

Quando abri a porta da sala, vi que ele já estava lá juntamente com uma mulher e o médico.

Calmo. Quieto. Atento.

Como se estivesse me esperando, como se tivesse certeza de que eu viria.

Leonardo Ferraz era o tipo de homem que fazia o ar da sala mudar quando se movia.

— Achei que não viria — disse ele, levantando-se.

— Eu também — respondi. — Mas a curiosidade venceu o bom senso.

Ele sorriu com metade da boca, como se estivesse acostumado com pessoas dizendo isso.

Ele me indicou a cadeira ao seu lado e envergonhada, me sentei. O médico começou a falar. Eu ouvi palavras como “processo legal”, “acompanhamento psicológico”, “gestação assistida”.

Até que ficamos só nós dois.

— Eu sei que isso soa absurdo — Ele começou a dizer.

— Não — corrigi. — Soa perigoso.

Ele não recuou, nem hesitou.

— Você precisa de segurança e eu posso dar isso.

— E em troca de ser mãe do seu filho?

— Não, você será apenas a barriga de aluguel que vai facilitar a chance da minha avó conhecer o bisneto antes de morrer.

Isso me atingiu. Não pelo dinheiro, não pelo acordo, mas pela humanidade escondida por trás dele.

— Esse filho vai ser amado?

Ele não precisou pensar.

— Mas é claro que sim.

Foi a única resposta que realmente importou.

— E se eu aceitar você vai cumprir com a sua palavra? — perguntei.

Ele me olhou como se a resposta fosse óbvia.

— É por isso que existe o contrato, não que eu não seja um homem de palavra, mas entendo que você mal me conhece e pode ficar em dúvida.

Meu peito apertou.

Eu deveria ter ido embora naquele instante, mas algo dentro de mim me dizia que eu devia ficar.

— Há mais um detalhe que preciso que você saiba.

— O que seria?

— Você vai precisar se mudar para minha casa enquanto estiver carregando meu filho.

— Mas eu não...

— É inegociável.

— Eu acho que isso é loucura.

— Loucura é tentar sobreviver de um jeito que está te matando. — Ele respondeu.

O ar ficou pesado entre nós então saí da sala.

Mas, no corredor, só um pensamento ecoava:

Se eu disser sim, nada na minha vida vai continuar igual.

E o mais assustador de tudo?

Uma parte de mim queria isso.

O ar do lado de fora da clínica estava mais frio do que quando eu cheguei. Respirei fundo, tentando aliviar o peso no peito.

Assim que virei a esquina, dois homens se aproximaram. Eu soube na hora quem eram.

— Olha só quem a gente encontrou — disse o primeiro, com um sorriso torto. — A irmãzinha do Diego.

Meu estômago caiu.

— Eu não tenho nada pra vocês — respondi, firme, mesmo com as mãos tremendo por dentro. — Já disse antes. Eu estou tentando resolver.

— Tentando? — o outro riu baixo, aproximando-se um passo. — O Diego disse isso também. Agora ele tá se escondendo. Isso pega mal, sabe? Faz a gente parecer burro.

Eu dei um passo para trás.

— Eu só preciso de mais um pouco de tempo. 

O primeiro me interrompeu, girando a faca de maneira quase preguiçosa — não para usar, mas para lembrar que estava ali.

— Tempo custa dinheiro, boneca. E vocês não têm nenhum.

— Eu vou conseguir. — As palavras saíram antes de eu conseguir medir. — Eu juro. Estou perto.

O sorriso dos dois desapareceu, eles trocaram um olhar curto, seco.

— A gente vai te dar uma chance. — O tatuado disse, inclinando o rosto, como quem fareja fraqueza. — Última.

— Uma semana — completou o outro, com a faca agora parada.

— Depois disso, a gente vem buscar o que é nosso querendo ou não — o primeiro concluiu, com simplicidade assustadora.

Meu coração parou.

Eles se afastaram da mesma maneira que apareceram, mas eu fiquei ali, imóvel, sentindo a garganta fechar e os olhos arderem.

O ônibus passou e foi embora, mas estava paralisada de medo.

E de repente, a proposta que parecia absurda, impossível, imoral… já não parecia mais tão absurda assim. Não quando a alternativa era ver meu irmão dentro de um caixão.

Engoli o choro que ameaçava subir, peguei o cartão no bolso e disquei para Leonardo.

E, pela primeira vez desde que aquela conversa começou, a pergunta não era mais: Eu faria isso? Mas sim: Porque eu não posso não fazer?

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