Mundo ficciónIniciar sesiónCecília...
As horas haviam passado, mas a raiva em mim era tanta que parecia que eu tinha acabado de brigar com aqueles dois. Meu rosto queimava... que inferno! Eu queria matar o Vitor e aquele almofadinha. Mas, enquanto não podia matá-los, tentava aliviar minha raiva limpando a casa. — Psiu! Psiu! Respirei fundo, sem acreditar. Mas ele é muito corajoso para vir aqui depois do que me fez. Olhei na direção da janela e lá estava o infeliz do Vitor, com uma cesta de frutas e os olhos suplicantes. Cruzei os braços e virei o rosto. Não queria falar com ele. — Ceci... me perdoa, vai? Passei um rabo de olho para ele e, ignorando, fui até a cama — que ficava ali mesmo na sala — peguei a caixa embaixo dela onde estavam o novelo e as agulhas, e comecei a crochetar. — Larga de bobagem, Ceci, vamos fazer as pazes... Bento tá perguntando se ocê quer ir conosco lá no bar do seu Zé, mas acho que ocê não vai querer ir, né? Tá aí com essa cara amarrada — miserável, sabia como me amolecer. Coloquei a linha de volta na caixa e devolvi tudo para o mesmo lugar de onde tirei. Levantei e, em silêncio, fui até a janela; peguei o cesto de frutas, fulminando-o com o olhar. — Diz para o Bento que a gente se encontra lá — fechei a janela na cara dele. E então sorri, sem segurar mais a postura de brava. — Também te amo, Ceci — ele gritou. Apressada, corri até o velho armário e escolhi o vestido que eu mais amava — foi o senhor Joaquim que me deu de presente no ano passado. Calcei minhas botas, penteei o cabelo e coloquei o chapéu. Depois de pronta, fui até a baía e pus a cela no Menino. — Nós vamos ao bar do seu Zé, tá bom? — fiz carinho nele antes de montá-lo. O bar do seu Zé ficava num pequeno povoado a uns três quilômetros da fazenda. O Menino galopava devagar pela estrada de barro; era fim de tarde e o sol fazia seu último show para deixar a lua brilhar nas próximas horas — o céu estava lindo, em tons alaranjados. Um carro passou em alta velocidade, levantando poeira. Engasguei com aquela nuvem enquanto tentava enxergar o carro através do pó deixado para trás. — Filho do cão! — esbravejei, tossindo em seguida. — Tomara que estoure os pneus desse infeliz; ver se pode uma falta de educação dessa, hein, Menino? O Menino, parecendo me entender, relinchou. A pouca distância do bar, o som do vanerão já disputava espaço com o canto insistente das cigarras. Em cima do Menino, eu me deixava levar — os ombros dançando sozinhos no compasso da música que ecoava pelo fim da tarde. Quando chego perto da porteira, o som do acordeon fica ainda mais alto; alguns casais dançam o ritmo do lado de fora do bar. Desço do cavalo e o deixo amarrado junto aos outros cavalos que estão ali. O bar do seu Zé tem o telhado vermelho e as paredes brancas, com janelas grandes de madeira pintadas de azul. A porta larga, também azul, se abre em duas bandas. Como todos ali são meus conhecidos, cumprimento a todos com sorrisos e abraços. — Está linda como sempre, Cecília — diz Rodolfo, o filho do prefeito. O olhar dele me incomoda. Forço um sorriso, faço um leve aceno e me afasto, entrando no bar. O senhor José, com seu bigodão, sentado numa cadeira no palco à esquerda, toca o acordeon. Uma das mãos dele dedilha as teclas com agilidade, enquanto a outra puxa a parte sanfonada do instrumento. Gileno, o neto dele, canta o vanerão. O lugar está cheio, agitado com conversas e risadas que se misturam ao som da música. Avisto Vitor e Bento escorados no balcão de madeira, cada um com seu copo na mão. Aproximo-me de Bento e olho dentro do copo dele. — Está servindo o quê hoje? — pergunto. Ele dá um gole e responde: — Gengibirra. Vai querer também? Olho para as garrafas atrás do balcão, um pouco indecisa. — Vou te acompanhar na gengibirra — faço sinal para o Daniel, o filho do seu Zé, que serve os clientes do outro lado do balcão. — Eu estou bebendo uma batida de coco, está muito boa — diz Vitor, erguendo o copo na minha direção, sem se importar com o fato de eu o ter ignorado. Olho de soslaio e volto minha atenção para Bento. — Não vi os cavalos nem a caminhonete. Vieram como? — pergunto. — É que a gente veio de carona — ele responde. — O patrãozinho trouxe nós. Foi no banheiro — diz Vitor, com aquele tom de deboche que já me sobe o sangue. Então o borra-botas está aqui. — Nesse caso, é melhor eu ir embora — digo, virando de uma vez e batendo de frente com aquele peitoral largo. Tento desviar, mas ele se põe na minha frente. Vou para o outro lado, e ele faz o mesmo. Um sorriso brinca nos lábios dele; já os meus se apertam de raiva. Estou a ponto de sair fogo pelas ventas. — Dá pra me deixar passar? — minha voz sai firme, deixando claro que não estou pra brincadeira. — Por que tem tanta raiva de mim, moça? — a voz grave dele, num tom brando, mostra que está calmo, diferente de mim, que não sei por que estou irritada demais. — Não é da sua conta — passo por ele, quase afundando o chão com meus passos fortes no piso de cimento queimado. Já estou perto da porta quando a Lina me para. — Cecília, está tudo bem? — pergunta, tocando de leve o meu braço. Faço um leve aceno. — Sim, Lina, está tudo bem. Não sabia que estava de volta. Como foi a viagem? — pergunto, tentando disfarçar minha raiva. — Foi maravilhosa! Conheci alguém, mas aqui não dá pra gente conversar. Vai lá em casa amanhã... melhor: eu vou na sua, aproveito e cumprimento a dona Carmen. — Combinado então. Agora eu vou indo, nos vemos amanhã. Dou um abraço nela e saio do bar. Do lado de fora, Rodolfo me aborda. — Já vai tão cedo, Ceci? Mal chegou... está tudo bem? — Não estou me sentindo bem, é melhor ir pra casa. Aproveite por mim — respondo e continuo meu caminho, mas ele vem atrás. — Posso te acompanhar até a fazenda? — Não precisa, senhor Rodolfo. Gosto do silêncio de estar sozinha — dou um leve sorriso e sigo na direção da porteira. Ele atravessa o meu caminho e segura o meu braço. — Nem vai perceber minha presença — insiste. Vontade de socar aquele nariz afilado dele não me falta. — Não precisa, senhor Rodolfo. A Cecília vai comigo — a voz forte de Vitor ecoa atrás de mim. A mão dele se entrelaça na minha. Rodolfo, sentindo o olhar pesado de Vitor, dá um sorriso sem graça e se afasta. Puxo minha mão, cruzo os braços e saio na frente. Em silêncio, desamarro o cavalo. Vitor faz menção de montar, mas o impeço. Com a mão na cintura, olho para aqueles olhos claros dele. — Acha mesmo que vai montar o meu cavalo? Vai voltar do mesmo jeito que veio: com seu novo amigo — cuspo as palavras na cara dele. Ele sopra o ar pela boca, balançando a cabeça em negativa. — Larga desse nervoso, Ceci. Minha amiga é ocê. E o senhor Álvaro é gente boa, se parece muito com o seu Joaquim. Reviro os olhos. — Duvido. E quer saber? Pode voltar pro bar. Seu amigo deve estar sentindo sua falta. — Já estou perdendo a paciência com ocê! É muito cabeça-dura, Cecília! Quando implica, é pior que égua brava! Cê tá doida? Larga dessa bobagem, muié! — ele gesticula, mostrando que está chateado. Ergo o queixo e dou de ombros. — Então vá sozinha! Não vou mais ficar te adulando — diz, me dando as costas. — Por mim, vim sozinha e vou voltar sozinha! — grito. Monto no cavalo, bato os pés e puxo a rédea, dando sinal para o Menino correr. Ele sai galopando rápido de volta pra casa. Nota da autora: A gengibirra é uma bebida tradicional do Sul do Brasil, especialmente no interior do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Feita com gengibre, açúcar mascavo, limão, especiarias e, às vezes, um toque de cachaça, ela passa por uma leve fermentação natural. O resultado é uma bebida dourada, com sabor doce e picante, servida bem gelada nas festas e nos bares de beira de estrada. Dizem que “cura gripe, tristeza e amor mal resolvido”.






