O vestido azul-escuro desceu pelo corpo de Melody com a leveza de um segredo. Pela primeira vez, ela o vestia para ser vista.Penteou os cabelos com cuidado, optando por fazer uma trança simples. Se olhou no espelho mal reconhecendo o próprio reflexo, embora não tivesse se surpreendido. Já sabia o suficiente: estava diferente. Não por vaidade — por posição. Como se aquela noite exigisse uma versão dela que ainda estava se formando. O pano tocava sua pele como se pedisse silêncio. Como se cada dobra sussurrasse: "não desapareça".Na sala, os talheres tilintavam contra a louça. Ida ajustava a mesa com o cuidado de quem entende que as coisas simples carregam o que há de mais sagrado. Três lugares. Uma vela acesa. Um vaso com flores do jardim, margaridas amarelas que acrescentavam cor a mesa. E o bolo, no centro, esperando a hora certa. O ar cheirava a pão, vinho e coisa antiga — como se a casa também segurasse o fôlego.Melody parou à porta e respirou fundo antes de entrar. O som da resp
A casa estava quieta. Não o silêncio do medo — mas aquele outro, mais raro: o do fim de um dia que deu certo.Rose dormia. Ida recolhia os últimos talheres. Duncan estava na varanda e Melody secava a louça com um gesto automático, como se ainda quisesse prolongar o instante em que tudo parecia simples. O pano úmido deslizava sobre os pratos como um feitiço bobo contra o fim da noite. O calor da cozinha ainda pairava no ar, misturado ao cheiro do bolo e da carne bem temperada. A toalha da mesa ainda estava esticada, com algumas migalhas esquecidas, como testemunhas silenciosas de um raro momento de paz.Foi quando Ida pegou algumas margaridas da jarra. As flores já murchavam um pouco, mas ainda tinham certo charme. Sem cerimônia, ela as colocou entre as páginas de um livro antigo de capa de tecido, meio desbotado nas bordas, era um livro de historias infantis.— Toma. Guarda isso junto da manta da Rose. Vai ser bom pra ela um dia lembrar desse jantar.Melody pegou o livro com as duas
O dia nasceu como os outros. Mas Melody não.Acordou cedo, como sempre. Vestiu-se devagar, prendeu o cabelo como se cada gesto exigisse mais tempo. Lavou o rosto. Olhou no espelho — e não reconheceu a mulher que olhava de volta com tanta nitidez. O reflexo parecia mais sólido, como se houvesse ganhado peso e forma durante a noite. A nitidez dos traços era a mesma, mas o olhar carregava uma pergunta nova. E uma resposta que ainda não sabia nomear.A casa parecia igual. Mas ela via diferente.Atravessou o corredor e encontrou Ida já na cozinha, mexendo o mingau de Rose com a colher de pau. A luz da manhã entrava pelas frestas da janela com um dourado tímido, tingindo a parede com um calor que não alcançava os ossos. Havia cheiro de leite morno no ar, e o rangido ocasional da madeira soava mais alto do que de costume.— Dormiu bem? — perguntou a governanta, sem tirar os olhos da panela.Melody assentiu. Foi até a pia. Lavou as mãos. Pegou a tigela com frutas e começou a cortá-las em silê
O outono se anunciava como quem pede licença, mas já começava a tirar as coisas do lugar. Não era uma estação de chegada ruidosa. Era feita de pequenos sinais, como um convidado que vai empurrando os objetos devagar, rearranjando o ambiente sem que se perceba de imediato.O sol era mais pálido, a luz mais curta, o ar mais fino. A roupa demorava a secar no varal, e a água da bacia onde Melody e Ida lavavam fronhas já não permanecia morna por muito tempo. Havia um frio miúdo que não dava calafrio, mas fazia a pele desejar manga comprida. Ida havia dito, dias atrás, com a certeza de quem prevê o tempo como quem lê uma receita:— Logo o frio chega sem bater.Naquela manhã, as duas estavam lado a lado, torcendo lençóis e estendendo peças no varal. As mãos se moviam com sincronia, o silêncio sendo preenchido apenas pelo estalar úmido dos tecidos. Rose dormia no carrinho improvisado na sombra da varanda, enrolada em uma manta que ainda guardava o cheiro do armário. Tudo parecia no lugar, com
O "nem sob o meu cadáver" de Duncan não era uma figura de linguagem. Era um limite. Um ponto inegociável que havia se solidificado entre eles. Ele mantinha o rosto voltado para o chão, as mãos cerradas ao lado do corpo, enquanto o peso da frase ainda pairava sobre todos como uma proibição escrita em pedra. Ida olhava para ele, incrédula, como quem acabara de ouvir um absurdo dito em plena razão. Melody, a poucos passos, compreendia que havia algo mais naquela recusa. Não era apenas medo. Era pessoal. E grave.Duncan recuou com o cavalo, fazendo o animal dar alguns passos para trás com um leve puxão nas rédeas. Manteve-se montado, os punhos cerrados sob o couro tenso, como se contivesse uma tempestade. A tensão em seus ombros era visível, como se o simples ato de respirar o forçasse a atravessar um campo minado. Segurava-se firme como se a sela fosse o único ponto estável em um mundo que ameaçava ruir ao seu redor. Afastou-se alguns metros, como se precisasse de distância para conter o
O sol já estava mais alto quando Duncan se posicionou na varanda, a expressão impassível e o olhar fixo na trilha poeirenta que levava até sua propriedade. Ao longe, dois cavaleiros se aproximavam. O primeiro, um homem de meia-idade com postura relaxada e um chapéu bem ajustado, tinha mais cara de prefeito de cidade pequena do que de xerife. O segundo, mais jovem, tinha o rosto rígido e os ombros tensionados, visivelmente desconfortável enquanto hesitava em desmontar.Duncan não se mexeu quando eles pararam diante da cerca. Ficou ali, encostado no batente da varanda, os braços cruzados. O vento agitava levemente a aba de seu chapéu, e sua sombra se estendia como uma sentinela até a madeira gasta da escada. Sua presença bastava para manter os dois homens a uma certa distância.— Duncan — disse o homem mais velho, tocando a aba do chapéu com dois dedos. O rapaz ao lado dele ainda não sabia se descia ou não do cavalo, os olhos dançando entre a casa e o companheiro, como se esperasse inst
Duncan permaneceu na varanda até os dois cavaleiros desaparecerem completamente na linha do horizonte. Só então desceu os degraus com um impulso contido, atravessou o quintal num silêncio feroz e foi direto ao poço.A terra ainda guardava o peso dos cascos e a poeira mal tinha assentado quando ele alcançou a tampa. Seus passos, geralmente lentos e deliberados, agora tinham pressa contida — a fúria de um homem que havia sido obrigado a dissimular por tempo demais. O maxilar cerrava, as narinas infladas. O ódio era frio. E concentrado.Sem cerimônia, ergueu a tampa com força, quase arrancando a dobradiça. O som metálico cortou o ar como um trovão. O interior escuro o encarou de volta, e por um instante, ele apenas ficou ali, os olhos se ajustando à escuridão. O cheiro de mofo e umidade subiu, denso, viscoso, como se o poço respirasse de volta.Lá embaixo, Melody estava encolhida, agarrada ao cabo de vassoura atravessado, os dedos entorpecidos. O frio já havia ultrapassado a pele e se in
O aroma do chá se espalhava pela cozinha como um sopro quente num dia de inverno. A chaleira ainda sibilava levemente quando Ida serviu as xícaras com mãos firmes. O vapor subia, formando espirais entre as pessoas em volta da mesa. O ambiente estava aquecido pelo fogo e pela tensão recém-cessada — o tipo de calor que nasce não da tranquilidade, mas da sobrevivência.Melody sentou-se com os cabelos ainda úmidos, vestida com uma roupa de tecido grosso que Ida deixara sobre a cama. As mangas eram longas demais, os ombros um pouco largos, mas traziam o consolo imediato de algo seco e quente. Seus dedos ainda estavam ligeiramente trêmulos ao segurar a xícara, mas ela os escondeu envolvendo o corpo da porcelana com as mãos como se buscasse ali uma desculpa para o gesto.Duncan se sentou à cabeceira, Rose no colo. A menina mordiscava um pedaço de pão enquanto observava todos com seus olhos grandes e curiosos, os cabelos bagunçados colados à testa. Ele parecia calmo, mas o maxilar ainda traba