A noite caíra com uma lentidão doce sobre a marcha. O acampamento estava montado, o fogo crepitava no centro da clareira e o cheiro de carne assada se misturava à poeira quente da estrada. O ar era pesado de cansaço, mas também, de um modo raro, leve de tensão.Melody, encolhida no xale, estava sentada próxima ao carroção, observando o movimento dos homens com olhos atentos. Não de medo, nem de desconfiança — mas de uma cautela educada, daquelas que a vida impõe a quem sabe que o mundo é feito de surpresas nem sempre boas.Bill mexia no caldeirão, resmungando baixinho sobre "homem que reclama de carne macia". Billy, ansioso como sempre, equilibrava duas canecas de café preto como breu nas mãos e olhava na direção dela. A chama da fogueira dançava nos olhos dos homens, criando sombras compridas nas feições marcadas pelo sol e pela poeira.— Quer um pouco, senhorita? — ofereceu, corando até as orelhas, estendendo uma das canecas com um gesto meio desajeitado.Melody sorriu, aceitando co
O dia começara como tantos outros: o sol nascendo preguiçoso sobre a planície, o cheiro de poeira quente e gado no ar, a marcha ritmada dos cascos sobre a terra seca. Melody cavalgava um pouco atrás de Cal, o cavalo manso que Duncan lhe arranjara se movendo com paciência sob seu comando.Bill seguia ao lado do carroção, Billy e Peter guardavam as laterais da boiada. Duncan, como sempre, circulava, atento a cada movimento.O calor subia devagar, trazendo junto as moscas insistentes e o zunido abafado de um mundo inteiro feito de cansaço.Foi perto do meio da manhã que aconteceu.Um estalo surdo cortou o ar.O boi caiu de lado, urrando em dor. O som — agudo e desesperado — reverberou pela coluna.Instantaneamente, os peões se espalharam.Cal e Peter, com gestos largos e assobios firmes, começaram a afastar os animais mais próximos, conduzindo-os adiante com movimentos lentos, quase hipnóticos. Conor e Ralf fecharam as laterais, cantando baixinho, uma música arrastada e monótona que acal
Melody tentou se afastar da margem do lago em silêncio, os passos leves na terra úmida, o coração ainda pesado com as imagens do dia. Queria apenas voltar para o acampamento, misturar-se às sombras, desaparecer um pouco da própria mente.Mas não deu tempo.Duncan a viu.O cavalo estava amarrado a poucos metros. Ele havia acabado de lavar o rosto, os cabelos ainda pingando, quando ergueu os olhos e encontrou a silhueta dela tentando escapar pela borda do mato.A primeira coisa que lhe passou pela cabeça foi a segurança dela.A segunda... foi a raiva. Uma raiva cega, imediata, irracional, atiçada pela exaustão, pelo medo camuflado e por algo mais perigoso que ele ainda não queria nomear.Endireitou o corpo, pegou a camisa jogada sobre a pedra e a vestiu, e falou com voz firme, alta o suficiente para cortá-la no meio do passo:— Srta. Thorne, eu já avisei para não andar sozinha. Seu discernimento foi reduzido pelo sol ao de uma galinha?A frase cortou o ar como um chicote.Melody parou n
O dia havia começado sob um céu pesado, com nuvens arrastadas e um frio cortante que gretava a pele como lixa. A poeira da estrada colava nos rostos, nos braços, nos pensamentos. A marcha da boiada seguia lenta, mas constante, como um organismo vivo que se recusava a parar, mesmo quando tudo em volta parecia exausto.Melody cavalgava ao lado do carroção, em silêncio. Desde o desentendimento com Duncan na noite anterior, mantinha uma distância controlada. Não havia hostilidade, apenas um espaço deliberado. Ela falava pouco, mas observava tudo, absorvendo os movimentos dos homens, os ritmos da marcha, os pequenos sinais que passariam despercebidos para alguém menos atento. Estava ocupada tentando se interessar por outras coisas que não fossem o dilema que carregava dentro de si.Duncan não se aproximava. Mantinha-se à frente, liderando a marcha com a impassibilidade de sempre, mas seus olhos varriam o grupo com mais frequência do que o habitual. Era como se cada passo do cavalo estivess
Melody acordou com os dentes batendo, como se seu próprio corpo tentasse avisá-la que o mundo havia mudado de fase durante a madrugada. Estendeu a mão para fora do cobertor e recolheu num espasmo involuntário. Frio cortante, seco e traiçoeiro.Saiu do carroção encolhida, abraçada a si mesma. O dia ainda não havia começado, mas o campo já estava acordado — e coberto de branco. A geada dominava tudo: a vegetação rasteira, os galhos tortos dos arbustos, até as bordas dos chapéus pendurados. O céu ainda era cinza escuro, e o silêncio carregava aquele tipo de peso que só existe antes da primeira luz. Um silêncio espesso, cheio de presságios.Os peões se reuniam ao redor de uma fogueira baixa, corpos curvados, mãos estendidas em busca de calor. O fogo ardia com dificuldade, lançando mais fumaça que chama, como se lutasse contra o próprio ar gelado. Duncan estava entre eles, sentado num toco de madeira com a postura cansada, as mãos diante do fogo, os olhos vigilantes. Olhava para o gado, de
Ainda era começo da tarde quando Duncan emparelhou o cavalo ao de Billy e disse, sem rodeios:— Vai na frente. Leva o baio. Quero saber como está o açude antes que a gente chegue lá.Billy assentiu com um leve puxar de queixo, virou o cavalo e partiu no trote rápido que logo se tornou galope. O sol estava alto, mas a luz já começava a perder o brilho — o tipo de hora em que as sombras se alongam e os problemas vêm atrás delas.Duncan permaneceu calado por um tempo, os olhos fixos na linha do horizonte. Melody não perguntou nada. Ninguém perguntou nada. O silêncio do patrão era aviso suficiente.O gado marchava em ritmo firme, mas o cansaço da viagem já se acumulava nos ombros dos peões e nas ancas dos bois. Alguns mugidos soavam mais longos, mais lentos. Os cascos levantavam menos poeira.Billy voltou no meio da tarde, galopando com pressa, o rosto suado e sombrio.— Tem água — disse assim que parou, sem desmontar. — Pouca. Rasa. No fundo do leito. Mas tem um coiote morto lá dentro. G
A noite chegou sem avisar. O céu não se acendeu em cores, nem ofereceu um adeus dourado. Apenas escureceu. Rápido. Sem lua. Apenas vento gelado. Como se o mundo tivesse decidido apagar as luzes.O gado continuava em marcha. Por inércia, por costume, por medo. Mas cada passo parecia mais pesado que o anterior. Já haviam deixado o chão pedregoso para trás, mas o gado se movia sem motivação, apenas seguindo a marcha dos bois líderes. Às vezes, um ou outro animal mugia pedindo pela água que nunca chegava. Os cavalos tinham no pescoço uma camada fina de sal, bufavam e também erguiam o focinho de vez em quando, desejando e farejando por água. Os cascos tropeçavam. As pernas falhavam. Um boi caiu e foi puxado de volta à marcha com gritos e varadas.Os vaqueiros não falavam mais. Não havia força para conversa. Apenas comandos secos. Cortes rápidos de voz no escuro:— Direita.— Anda.— Atrás dele.Melody sentia o frio se infiltrando pelos ossos, mais cruel que a fadiga. O cavalo sob ela arfav
O balde de água suja derramou mais uma vez sobre o piso que ela havia acabado de limpar. O líquido imundo escorreu pelas ranhuras das tábuas de madeira, formando pequenas poças que refletiam a pouca luz do fim de tarde. Melody apertou os olhos, cerrando os dentes com força para não praguejar. Não adiantava. Não importava quantas vezes ela esfregasse aquele chão, ele sempre pareceria sujo. Como tudo ali. Como ela mesma.Num suspiro profundo, ela ergueu o balde mais uma vez. O vestido molhado na barra estava pesado, grudento. Seus cabelos platinados, presos em um coque apertado, grudavam na nuca suada. A faixa enrolada ao redor do peito lhe estrangulava a respiração, castigando os seios em um aperto torturante. Mas era necessário. Tudo isso era necessário.A dor nos rins pulsava, irradiando pela coluna, e Melody soube que suas regras estavam para chegar. Talvez fosse melhor assim. Qualquer coisa era melhor do que ter que encarar o que poderia acontecer se deixasse de ser invisível. Melh