Mundo ficciónIniciar sesiónPonto de vista de Lívia
Ela era forte — mais do que eu esperava para uma mulher com aquele tipo físico — e as portas que empurrou rangeram como se fossem de madeira maciça. Achei que ela apenas sairia do caminho para eu passar, mas em vez disso, virou-se e me encarou diretamente nos olhos. — Contratamos seus serviços por conta da política de sigilo entre nossos clientes. Espero que o que fizer ou vir aqui, fique aqui. — A voz dela era firme, quase solene. Engoli seco. E imediatamente comecei a rezar para não encontrar nenhum corpo, nem ter que limpar sangue ou restos humanos. A empresa para a qual trabalho leva o sigilo muito a sério. Em alguns casos, é justamente por isso que pagam tão bem. Graças a Deus, nunca precisei lidar com nada realmente macabro. O caso mais esquisito foi de um homem que se vestia de boneca — e vestia uma boneca igualzinha a ele. Tive que limpar todo o local. Diziam que ele gravava vídeos bizarros, mas eu só vi as roupas, o que já foi o suficiente para me deixar desconfortável. Agora, eu estava mais estável na Advocacia Valadares, pegando apenas uns extras aos fins de semana — sexta e sábado, geralmente quando alguém se mudava ou precisava de faxina urgente. E ali estava eu, mais uma vez, pronta para suar. Peguei meu material e entrei no galpão. Seria um longo fim de tarde. Assim que levantei os olhos, quase deixei o balde cair. Havia caixões. Pelo menos uns dez. Empilhados uns sobre os outros, como beliches do Hotel Transilvânia. Tive que rir sozinha da comparação, tentando me convencer de que o dono da casa provavelmente era dono de uma funerária e usava o espaço como depósito. Victoria me observava, impassível. — O local precisa ser limpo. Tire todas as teias de aranha. Ao fundo há umas caixas empilhadas; se quiser algo delas, pegue. O que não quiser, queime. A ordem não me surpreendeu. Pessoas ricas adoram se livrar de coisas “sem valor” e ainda acham que estão fazendo caridade. Acenei afirmativamente, tentando parecer grata. — Quando terminar, se precisar de ajuda com algo, chame-me. Posso designar um dos homens da casa para carregar o que for necessário — completou, e saiu, me deixando sozinha no galpão. O lugar tinha material de limpeza próprio, então resolvi usar os produtos dali mesmo. Assim economizava os meus, e alguns clientes preferem que se use apenas o que têm em casa, por alergias ou gosto pessoal. Depois de quase duas horas, o suor já escorria pelo meu rosto. O chão era imundo, e mesmo esfregando pela quarta vez, a água ainda saía turva. Mas consegui: todos os caixões estavam limpos e até lustrados, só faltava o canto onde estavam as caixas. Resolvi fazer uma pausa e fui mexer nelas. A primeira tinha livros, pergaminhos e cadernos de anotações. Tudo amarelado, quase se desfazendo. A segunda, mais livros — mas esses eram literários, romances sobre lobos e vampiros. Se eu tivesse tempo, levaria para ler. Mas eu maļ conseguia ver um filme inteiro sem precisar de quatro dias, um filme parecia ser uma saga do tipo Senhor dos Anéis ou Crepúsculo. A terceira e a quarta caixa continham roupas antigas e perucas. Fiquei imaginando se aquilo não era mesmo um depósito de funerária — roupas usadas para preparar corpos. O pensamento me deu um arrepio. Larguei as peças, mesmo as que pareciam bonitas e caras. Fogo nelas! Na quinta caixa, porém, achei algo que me fez parar: joias e lenços finos, alguns parecendo de seda chinesa. As joias eram diversas — colares, brincos, pulseiras — mas um anel, em especial, chamou minha atenção. Tinha uma pedra verde intensa, parecia esmeralda. Sorri ao perceber que combinava com meus olhos. Sem pensar muito, coloquei o anel no bolso do avental. Peguei também algumas outras peças — afinal, Victoria dissera que eu podia levar o que quisesse. As joias poderiam ser úteis: presentear alguém, vender, avaliar... por que não? De resto, decidi doar os livros em bom estado. Estava distraída quando uma voz grave soou atrás de mim: — Humana. Virei-me, confusa. O jeito como ele disse aquilo me fez rir por dentro — quem fala assim sobre outra pessoa...achei no mínimo estranho... Mas ele não sorria. Me encarava sério, imóvel. — Pois não? — perguntei, tentando entender o que queria comigo. — Estou aqui para ajudar — respondeu, com a mesma seriedade. Entendi, devia ser um dos homens designados por Victoria para auxiliar na queima. — Já está tudo separado. Onde fica a caldeira? — perguntei. Ele apenas fez um leve gesto com a cabeça, indicando uma direção. — Me acompanhe. Pegue o que conseguir carregar, eu pego o resto. Peguei uma caixa com roupas e outra praticamente vazia, onde antes estavam as joias e os lenços. Ele levou o restante. Descemos por uma escada até um porão com uma grande caldeira. O lugar parecia cenário de filme de terror. Ri de nervoso. — Pode jogar suas caixas aqui — disse ele, acendendo o fogo. Olhei as caixas uma última vez. — Tem documentos, lenços, roupas, muita coisa bonita e valiosa. Tem certeza que é pra queimar tudo? — A ordem é clara — respondeu, sem emoção. — Queime tudo, exceto o que escolheu para si. Suspirei e obedeci, lançando as caixas no fogo. As chamas subiram rápido. Voltei ao cômodo, finalizei a limpeza e deixei tudo brilhando. Quando o homem voltou, perguntei se havia mais algo a fazer, mas ele se adiantou: — Já está anoitecendo. Você está dispensada. A senhora Victoria a aguarda perto do carro. Olhei o relógio: cinco da tarde. Ainda claro, mas o caminho era longo e deserto. E quase não havia postes de luz. Engoli o medo, tentando sorrir. — O senhor tem razão. Só vou guardar meus materiais e organizar os caixões. Ele acenou e me ajudou — levantava os caixões com uma facilidade absurda, como se fossem de papelão. O que me chamou a atenção, porém, foram os cadeados. Todos os caixões estavam trancados por fora. Ignorei o arrepio na nuca e fui guardar minhas coisas. Victoria já me esperava. Agora, usava um vestido longo carmesim, justo ao corpo, um chapéu menor e os mesmos óculos escuros. Impecável. A mulher parecia saída de um retrato antigo. Sorri, tentando parecer animada. — Serviço terminado! Ela manteve a postura séria, mas falou com um tom mais brando: — Vejo que conseguiu terminar tudo, e ainda antes de escurecer. Um sorriso discreto curvou seus lábios. — Me desculpe por duvidar das suas capacidades. Fez um ótimo trabalho, e em tempo hábil. Obrigada pelo empenho. Fiquei sem reação. — N-não foi nada. Obrigada pela oportunidade. Ela então tirou um envelope e me estendeu. — Deixarei um elogio à sua empresa. E pegue isto. Um acréscimo pela sua dedicação. Peguei o envelope, sem acreditar. Já tinha sido paga pela diária, levei algumas joias — e agora ainda uma gorjeta? Apontei para as coisas que coloquei no banco do carro. — Tem certeza de que posso levar isso tudo? Ela acenou com a mão, como se fosse irrelevante. — Claro. Pode levar. — Obrigada mesmo — respondi, apressada. — Até! E mentalmente o pensamento de que seja um “até nunca mais”. Entrei no meu Celtinha e saí dali o mais rápido que pude. Aquela casa me dava arrepios. Durante o trajeto de volta, o cansaço veio de uma vez. O corpo doía todo. E, pra piorar, peguei um engarrafamento infernal na chegada da cidade. Duas horas e meia de estrada e mais uma hora presa no trânsito. Quando finalmente cheguei à minha quitinete, joguei a bolsa num canto, coloquei as joias sobre a bancada e abri uma garrafa de Coca-Cola gelada. Coloquei música no celular — ou “meu Walkman moderno”, como eu costumava chamá-lo — e deixei o som preencher o silêncio. Lembrei do envelope, que tinha jogado dentro da bolsa sem abrir. Peguei, abri... e quase deixei o copo cair. Notas. Muitas notas. Fui contando, uma a uma, com as mãos tremendo. Cinco mil reais. Cinco mil reais só de gorjeta. Engoli seco, quase me engasgando. O que será que eu vi — ou não vi — para merecer tanto assim? As palavras da Caroline ecoaram na minha cabeça: “Quando a esmola é demais... o santo desconfia.”






