Narrado por Mariana O sol ainda nem havia surgido quando abri os olhos, sentindo a ardência sutil nas costelas. O lençol estava bagunçado, meu corpo nu sob ele, e a brisa que entrava pela janela me lembrava da madrugada passada. Levei a mão até a lateral do quadril e fechei os olhos por um segundo. Era ali que doía mais. Levantei devagar, caminhando até o espelho do banheiro. E lá estavam: marcas roxas, vermelhidões espalhadas, pequenos hematomas como assinaturas da noite anterior. O espelho devolveu meu reflexo com sinceridade cruel. Meu pescoço, a parte interna das coxas, os punhos... Ele não economizava intensidade. Toquei um dos hematomas com a ponta dos dedos. O corpo reclamou, mas a minha mente… a minha mente se incendiou. Como era possível que aquilo doesse tanto e ao mesmo tempo me lembrasse de tanto prazer? Suspirei fundo, apoiando as mãos na pia. O Rei me consumia. Não havia outra forma de dizer. Ele era como um incêndio dentro de mim. Não deixava espaço pra nada alé
Os dias seguintes à discussão entre Mariana e o Rei se arrastaram como semanas silenciosas e pesadas. Ela havia decidido se afastar. Precisava pensar, respirar, se entender longe dele. Havia muita coisa em jogo. Seu coração estava um caos, sua mente, dividida entre razão e desejo. Não era apenas sobre amor. Era sobre sobrevivência, identidade, e o que ela estava disposta a abrir mão por esse homem.O Rei sentiu o golpe com mais intensidade do que esperava. Mandou flores, caixas com livros que ela adorava, bilhetes com frases sórdidas que ela amava quando saiam de sua boca. Nenhuma resposta. Nenhuma mensagem visualizada. E isso o fez mudar. A frieza retornou ao olhar dele, a brutalidade nas decisões se intensificou. Quem trabalhava com ele notou. Era o Rei de antes de Mariana. Um homem que não hesitava. Um homem sem freios.Mariana, por sua vez, se jogou de cabeça no trabalho. Mas não conseguia dormir. Os hematomas em seu corpo ainda marcavam a noite de entrega e dor que viveram juntos
Narrado por MarianaO enjoo matinal voltou. Três dias seguidos. Três manhãs se arrastando até o banheiro, a boca amarga e o estômago revirando, como se meu corpo estivesse tentando me contar algo que minha mente ainda não queria aceitar. Sentei na beirada da cama com o teste de farmácia entre os dedos trêmulos, o visor ainda com a linha cor-de-rosa me encarando como se gritasse: grávida.Grávida.Encostei as costas na parede, abracei os joelhos e deixei as lágrimas escorrerem silenciosas. Não era tristeza. Não era felicidade. Era medo, era choque. Era o mundo girando mais rápido do que eu podia acompanhar.Depois do tiro. Depois do susto. Depois de ser salva por um vapor que apareceu do nada — como sempre, enviado por ele. Depois de tudo isso, agora isso.Não dava. Não dava pra continuar no hospital como se nada estivesse acontecendo. Não dava pra viver como se eu não estivesse sendo caçada por alguém que queria me calar. Então, sem pensar muito, pedi licença. Arrumei uma mala pequena
Narrado por MarianaO dia começou igual aos outros: a luz fraca entrando pelas frestas das janelas, cortinas grossas mal desenhadas, e o leve eco dos passos dos vapores nos corredores. Eu abri os olhos e senti novamente o peso enorme da casa segura. As paredes me cercavam, mas não havia muralhas de pedra — apenas seguranças, câmeras e portas blindadas. Na prática, era um castelo, mas para mim parecia uma gaiola.Levantei devagar, observando a sala silenciosa. Havia um sofá enorme, uma televisão sempre ligada em canais que falavam de violência e “soluções”, e à frente, duas portas que davam para quartos trancados. Cada manhã, eu fazia o mesmo caminho: passava pelos vapores que me cumprimentavam com acenos contidos — Tavinho, Aline, Tuca. Eles eram leais ao Rei, carregavam armas e promessas de proteção, mas não trocavam uma palavra além da necessidade. A cada vez que eu cravava os olhos em suas fardas escuras, sentia um frio na espinha. Não era hostilidade; era o reconhecimento de que e
Narrado por MarianaEu já devia ter aprendido que paz demais era sinal de que alguma merda estava prestes a acontecer.A noite estava abafada, o plantão corria num ritmo quase entediante no Hospital Geral do Norte, e o café da máquina tinha gosto de arrependimento. Eu me recostava na parede do corredor, revisando prontuários, tentando manter a mente ocupada com algo que não me lembrasse o porquê de eu estar ali — ou melhor, o que eu estava tentando esquecer.Foi quando o rádio interno chiou, seguido por passos apressados e olhares trocados entre os plantonistas. Antes que eu pudesse entender, um dos seguranças do hospital apareceu com olhos arregalados, suando frio.— Dra. Mariana... é melhor a senhora vir comigo.— Aconteceu alguma coisa? — perguntei, já me colocando de pé, instintivamente ajustando o jaleco.Ele hesitou. — Não é... comum. Mas... ele tá pedindo pela senhora.— Ele quem?O segurança engoliu em seco.— O Rei.Eu congelei. O nome soou como um trovão. Eu já tinha ouvido
Narrado por ReiEu nasci no meio da merda.E fui me tornando ela.Não tive escolha. Quando se cresce cercado de morte, você aprende a lidar com ela cedo. Meu pai era apenas mais um nome riscado em uma lista de acertos. Minha mãe virou estatística antes de eu completar sete anos. Depois disso, o mundo me ensinou tudo que eu precisava saber: se você não impõe respeito, você vira alvo.Aos quinze, já tinham me dado apelido. "Reizinho", diziam. Achavam graça. Eu achava útil.Aos vinte e três, já mandava em quatro morros e dois bairros nobres, com sangue na camisa e grana no colchão.Agora... aos trinta, sou o nome sussurrado com medo, o homem que a polícia não encosta e que até os chefes das outras bocas observam com cuidado.O Rei.Mas naquela noite, enquanto o sangue escorria da minha cintura, enquanto sentia o peso da morte quase encostar no meu ombro, eu só conseguia pensar nela.Na médica de boca suja que me encarou como se eu fosse qualquer um.Mariana.Ela me tirou a bala. E levou
Do terraço mais alto da minha casa, eu observava as luzes da cidade como quem observa um império que construiu com as próprias mãos. Lá embaixo, as vielas serpenteavam entre casas coladas, crianças brincando com o que restava de inocência, e os olhares atentos dos meus soldados protegendo as bocas. A guerra não para. Só muda de endereço. O Morro da Rocinha sempre foi meu. Desde o dia que eu coloquei o primeiro vapor armado lá, já era meu por direito. Quem entrava sem permissão, caía sem aviso. Agora o Alemão queria tomar o que é meu? Ele ia engolir o próprio sangue. Mas em meio a toda essa guerra eu não podia deixar de pensar nela. Mariana. A médica que salva vidas e não teme sequer a própria. Um dos caras que seguiu ela, o Menor L, me disse que ela saiu do plantão às três e foi direto pra casa. Chegou de táxi. Nem olhou pro lado. Subiu as escadas do prédio com o jaleco pendurado no braço. Ela mora a uns quinze minutos da base. Perto demais pra estar tão longe da minha mão.
Narrado por MarianaEu costumava amar o silêncio. A calma depois de um plantão pesado. O som abafado das minhas próprias batidas cardíacas enquanto caminhava de volta pra casa. Mas hoje, o silêncio me apavora.Não sei se é só impressão... ou se tem mesmo alguém me observando.Desde aquela noite em que costurei um traficante — o tal "Rei" da Rocinha — algo mudou. Não só dentro de mim, mas ao meu redor também. É como se a sombra dele tivesse me seguido pra casa. Como se os olhos dele nunca tivessem saído de cima de mim.Tentei ignorar. Tentei racionalizar.Mas até isso está falhando.[...]— Mariana, ei! — A voz de Camila, minha colega de plantão, me tirou do transe.— Oi, desculpa. Tô meio aérea hoje.— Percebi. Desde que chegou, tá parecendo que viu um fantasma.Camila era aquela pessoa que, mesmo no meio do caos, encontrava tempo pra rir. Médica também. Dois anos mais nova que eu, mas com uma coragem que eu invejava.— Só não dormi bem — menti.— É aquele caso da bala na cintura, né