Essa menina vai ser um problema

Abigail está parada na calçada, em frente a um prédio comercial de vinte e cinco andares, buscando coragem para entrar. A movimentação intensa de pessoas vestidas formalmente aumenta sua ansiedade. Com um jeans desbotado, camisa rosa com desenho de flores, tênis surrado e uma mochila nas costas, ela se sente deslocada. Mas precisa enfrentar esse momento. Faz quatro anos que fugiu, e desde então vive com trabalhos temporários, evita registros e troca de cidade sempre que pode para escapar de Alex e Regina. Agora, aos vinte anos, sabe que não pode fugir para sempre e que precisa de ajuda e estabilidade. E é naquele prédio que está a pessoa que ela acredita ter o poder mudar sua vida.

— Coragem, Abigail. Não dá mais para fugir — sussurra para si mesma.

Na mão, ela segura um papel com o nome "Marcos Alvarenga", escrito com a caligrafia que acredita ser de seu pai. Anos antes, ouviu sua mãe e o padrasto mencionarem "Marcos", então quando ela encontrou aquele papel entre as coisas da mãe guardou-o como se sua vida dependesse daquilo. Pesquisou, cruzou informações e agora está convencida (ou quase) de que ali é o escritório dele.

Decidida, atravessa a rua. Ela tenta empurrar a enorme porta de vidro, mas sem sucesso até que um homem bem vestido a ajuda e ela agradece envergonhada. Dentro, impressiona-se com o saguão sofisticado, a recepção com duas atendentes fica à frente de uma parede com várias placas onde uma delas diz “Alvarenga e Marino”. Ela sabia que era por ali que deveria começar.

Uma das atendentes que estava ao telefone termina a ligação e faz sinal para Abigail se aproximar. Com um olhar de desprezo, pergunta o que ela deseja.

— Eu gostaria de falar com o doutor Marcos Alvarenga — diz Abigail, quase sussurrando.

— O doutor atende apenas com hora marcada e não atende pessoas comuns — responde com frieza, analisando Abigail de cima a baixo.

— Mas é urgente — Abigail insiste.

— Você já teve sua resposta — diz a atendente, ríspida.

Sem saber o que fazer, Abigail senta numa poltrona. O estômago revirando, a cabeça doendo. Seus olhos se enchem de lágrimas.

— Aqui não, agora não. Você não chegou até aqui para chorar na frente de toda essa gente  — murmura para si mesma.

Olha novamente para a recepção e vê a atendente apontando para ela enquanto fala com um segurança. Precisa sair dali e é nesse momento que um grupo de homens passa conversando. Um deles é chamado de "Marcos", Abigail sente que essa pode ser sua única chance e se levanta apressada.

— Marcos Alvarenga? — diz, antes de desmaiar.

Um dos homens a segura antes de cair enquanto o segurança se aproxima, e eles a levam para uma sala ao lado dos elevadores. Um bombeiro é chamado e examina Abigail dizendo que foi apenas um mal-estar.

— Onde estou? — Abigail pergunta, tentando se situar.

— Pode ficar deitada — o bombeiro responde. — Você teve um mal-estar.

— Me desculpe — diz ela, envergonhada.

— Não precisa. Isso pode acontecer com qualquer um. Você se alimentou bem hoje?

Abigail hesita. Não havia comido. Estava com pouco dinheiro, economizando, e a ansiedade também abou tirando o seu apetite.

— Ainda não comi nada hoje — responde.

— Isso explica muita coisa. São quase duas da tarde você não pode ficar sem comer por tanto tempo. Só não me diga que é alguma dieta maluca? — o bombeiro pergunta.

— Não é dieta. – ela tenta sorri -  Eu só não tive fome mesmo. — Abigail tenta se justificar.

— Ela vai ficar bem. Só precisa se alimentar — diz o bombeiro, virando-se para Marcos.

— Eu vou cuidar disso — Marcos responde.

— Pode se sentar com calma, senhorita — diz o bombeiro.

— Obrigada — Abigail responde com um sorriso tímido.

Após o bombeiro sair, o silêncio toma conta da sala, Abigail continua sentada e nervosa, sem coragem de encarar os dois homens. Eles esperam que ela diga algo.

— Quem é você? — pergunta um deles.

Foi então que ela tentou se levantar rapidamente, mas tudo gira e eles correm para ajudá-la. O toque inesperado de Sérgio em seu braço faz com que um arrepio percorra sua espinha — não pelo calor humano, mas pela tensão que emana dele, como se qualquer aproximação fosse perigosa.

— Você é surda? — Sérgio pergunta, irritado, mas há algo por trás do tom seco.

Sérgio! — Marcos o repreende, em tom firme. Sérgio recua um passo, mas seu olhar continua preso nela.

— Me desculpem... Eu sou Abigail — ela diz após respirar fundo.

— E o que você quer com meu amigo? — pergunta Sérgio, a voz carregada de desconfiança, como se tentasse decifrá-la sem tirar os olhos de seus gestos.

O medo paralisa Abigail. Sua respiração acelera, ela sente o peito apertar e os olhos marejarem. Mas mesmo naquela pressão, ela encara brevemente os olhos de Sérgio — castanhos intensos, inquisidores, e estranhamente tristes. Era como se ele quisesse afastá-la antes mesmo de conhecê-la.

— Dá um tempo, Sérgio. Ela precisa comer antes de qualquer coisa. — Marcos interrompe.

— Você não existe, Marcos — resmunga Sérgio, desviando o olhar, como se estivesse irritado consigo mesmo por se importar.

O nome faz Abigail tremer ainda mais. Ela não pode chorar naquele momento.

— Vamos à cafeteria — Marcos propõe.

— Não precisa obrigada — diz Abigail, lembrando-se do pouco dinheiro que tem.

— Minha sala, então — Marcos insiste, ajudando-a a levantar.

Abigail percebeu que não adiantaria se negar a acompanhá-los e ir embora, eles não permitiriam e também ela já tinha ido longe de mais para simplesmente desistir. No caminho para o elevador, Marcos liga para alguém:

— Susi, leve um lanche para minha sala, por favor.

O silêncio no elevador era ensurdecedor. Abigail se encolheu num canto, tentando controlar a respiração enquanto sentia o pânico crescer. O espaço pequeno e fechado, a companhia de dois homens desconhecidos, a ansiedade. Uma lágrima escapa e ela a seca discretamente. Marcos a observa com curiosidade, mas é Sérgio quem percebe primeiro o gesto, e por um instante, sua expressão endurecida cede. O olhar de Sérgio, embora parecesse frio, se demorava nela como se procurasse rachaduras invisíveis. Ele desvia o olhar, rápido, como se não quisesse que ela notasse. Mesmo com medo, Abigail não conseguiu ignorar a maneira como Sérgio a observava. Havia raiva nos olhos dele, mas também algo que ela não soube nomear — talvez dúvida, talvez dor. E por mais que ela se odiasse por isso, aquela intensidade a prendia. Como se ele enxergasse partes dela que ninguém mais via.

Ao saírem do elevador, Abigail quase corre para enfim respirar aliviada.

— Última sala do corredor — diz Marcos.

Abigail assente e segue rápido enquanto Sérgio cochicha:

— Resolveu pular a cerca depois de velho meu amigo?

— Você enlouqueceu? — Marcos responde irritado. — Eu amo a Luiza e ela é só uma menina.

— Então o que ela quer aqui?

— Se eu soubesse, não estaríamos tendo essa conversa.

— Ela pode ser sua filha já pensou? Mas acho que é bonita demais pra isso — provoca Sérgio.

— Cala a boca, Sérgio. – diz Marcos impaciente - Vamos pra sua sala, vou deixar ela se alimentar primeiro e depois resolvo isso — ele diz encerrando a conversa.

Mas mesmo enquanto diz isso, Sérgio ainda está pensando na expressão vulnerável de Abigail. Bonita demais, sim — mas também quebrada demais para estar fingindo.

Abigail entra na sala e quase tromba com uma moça que lhe indica um canto com uma bandeja. Ela se senta, observa o lanche e enquanto comia, flashes do passado voltavam sem permissão: a voz áspera de Regina gritando, o toque repulsivo de Alex que ela sempre tentava evitar, o som da porta se trancando. Engoliu em seco, não era fome, era sobrevivência. Sempre foi.

Ela balança a cabeça na tentativa de espantar as memórias ruins deixando o passado de lado e focando apenas no presente. Enquanto pensava se ainda dava tempo de fugir. Apesar de Marcos não parecer ser tão ruim, tinha Sérgio, o que ele tinha de bonito, também tinha de perigoso. O tipo de homem que poderia destruí-la com palavras antes mesmo de levantar a mão. E mesmo assim, uma parte de si sentia que ele a observava mais do que deixava transparecer. Como se tentasse encontrar falhas, ou como se estivesse... protegendo algo contra a própria vontade. Ela afasta o pensamento. Não veio ali para isso. E não seria um par de olhos intensos que a faria vacilar.

 Quando está quase terminando o lanche Marcos abre a porta fazendo com que ela se assuste.

— Desculpe, não quis assustá-la — ele diz.

— Tudo bem, eu estava distraída — responde Abigail, virada de costas.

Marcos se senta no sofá à frente dela e a observa em silêncio.

— Está melhor? — pergunta, vendo a bandeja quase vazia.

— Sim estava delicioso. Obrigada — diz ela, tímida.

— Que bom. Então pode me dizer quem é você e por que me procurou?

Abigail sente um frio na barriga, chegou o momento. Ela respira fundo, encara Marcos e observa seu rosto.

— Eu... pensei tanto nesse momento, mas parece que todas as palavras sumiram. – ela respira fundo – eu sou filha de uma antiga amiga sua, na verdade acredito que vocês eram mais que amigos. — Marcos franze a testa. — O nome dela é Regina Carvalho.

— Ela quer dinheiro? É isso? — Marcos se levanta abruptamente. — Foi por isso que te mandou aqui?

Ele se aproxima, apoiando-se na mesa, o rosto muito perto do dela, Abigail sente pânico.

— Não. Ela nem sabe que estou aqui. Eu te procurei porque acredito que o senhor possa ser meu pai — ela diz, enfim, sentindo o peso daquelas palavras irem embora.

O rosto de Marcos empalideceu e ele deu um passo para trás como se tivesse sido atingido. Levou a mão à boca, os olhos fixos nela, mas longe ao mesmo tempo. Aquele nome — Regina — parecia ter aberto uma porta que ele lutava a anos para manter fechada.

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