Aylla sentiu o estômago revirar no instante em que seus olhos cruzaram com os de Leonardo. Era inacreditável. O desgraçado estava ali, de pé, no mesmo quintal onde ela havia crescido, cercado pelas memórias da infância, com a cara mais lavada do mundo, como se nada tivesse acontecido. Chegava a ser cômico. Aquele ar angelical, a roupa impecável, o cabelo loiro penteado para trás e os olhos azuis que tanto encantaram um dia... Mas agora, para ela, não passavam de uma máscara. Um disfarce bonito para esconder o monstro que morava por trás.
Leonardo era podre por dentro. Um homem que prometeu o mundo, que jurou amor eterno, e que foi capaz de traí-la com a própria colega de faculdade, alguém que Aylla confiava, que dividia confidências, risos e trabalhos acadêmicos. Se não fosse pelas fotos que chegaram até ela, talvez nunca descobrisse que o noivo com rosto de anjo era, na verdade, um depravado disfarçado. Ela o encarou com repulsa e frieza, sentindo o sangue ferver sob a pele. — Você não me respondeu, Leonardo. O que está fazendo aqui? — disparou, sem rodeios. — Eu não te chamei. E não sou mais nada sua. Leonardo sorriu como se ainda tivesse alguma vantagem, como se aquele teatro de bom moço ainda colasse. — Seus pais me chamaram. Para eles, ainda sou seu noivo, Aylla. — Cale a boca, seu pedaço de merda — ela cuspiu, a raiva transbordando. — Você não é meu noivo! Nós terminamos! Você me traiu com aquela garota ou já se esqueceu? Ele tentou manter a postura, mas a resposta saiu melosa, nojenta, como se quisesse arrancar algum tipo de pena dela. — Aylla, eu já te disse que não me lembro de nada. Eu bebi, ela se jogou em cima de mim… eu sou homem, você sabe… — Ah tá bom! — ela riu amarga. — Não se lembra? Mas sabe muito bem o que a garota fez, não é? Você mente até pra você mesmo! Você me devia respeito, mas nem isso conseguiu entregar. Aylla tremia, possessa. Queria gritar, queria esmurrá-lo, mas teve medo dos pais ouvirem. Ainda assim, a fúria queimava demais para ser contida. Ela queria arrancar o sorriso falso daquela cara nojenta, queria expô-lo, destruí-lo. — Então por que você não contou pra seus pais? — ele provocou. — O que te impede? A pergunta a acertou em cheio. Aylla ficou sem resposta. Queria dizer que era medo, que seus pais a tratavam como se fosse feita de porcelana. Desde criança ouvia que, uma vez noiva, aquele homem seria seu marido, seu futuro, sua vida. Como explicar a eles que o anjo que todos viam era, na verdade, um demônio? Ficou em silêncio. E foi nesse momento que os pais surgiram na porta, alertados pelos gritos abafados. — Está tudo bem? Ouvimos vozes — disse a mãe, Helena. — Está sim, mamãe — Aylla forçou um sorriso. — Leonardo acabou de chegar. O desgraçado se adiantou, exibindo os dentes brancos num sorriso falso de fazer qualquer um vomitar. — Olá, sogrinha! Aylla teve vontade de se enfiar num buraco. Como ele conseguia ser tão falso? Os pais o abraçaram como se fosse o próprio filho. Ela apenas observou, sentindo o coração apertado. Mas sabia que antes de ir embora, teria que contar a verdade. Tinha que acabar com aquele pesadelo. Todos entraram na pequena casa, e logo depois foram ao restaurante da família, onde os pais de Aylla juntaram cada centavo para pagar seus estudos. Ela se ofereceu para ajudar a servir as mesas enquanto Leonardo ficou na casa, deitado, fazendo absolutamente nada. Bufando de raiva, ela saiu e foi ajudar a mãe. — Filha, como está o hospital? Aylla se iluminou. Falar das crianças sempre a fazia esquecer da dor. Os pequenos guerreiros da ala pediátrica eram seus tesouros, mesmo com todas as tristezas. Já havia chorado com pais que perderam seus filhos, segurado mãos até o último suspiro, e mesmo assim nunca conseguiu deixar de se apegar. Diziam que médicos não deviam se envolver. Mas como, se ela era humana? A noite caiu, o restaurante estava para fechar, quando um homem chegou. De capuz preto, calça jeans escura e coturnos. Aylla sentiu um arrepio. Havia algo de estranho nele, mas ainda assim foi até a mesa. — Oi. Quero o cardápio. Ela pensou em dizer que estavam fechando, mas resolveu entregar o cardápio. Ele não parecia alguém comum. Os olhos castanhos profundos a prenderam por um instante. Ele perguntou: — O que você me recomenda? — Nosso café com sanduíche saudável é muito bom — respondeu, tentando manter a compostura. O homem sorriu. Aylla achou o sorriso bonito, e sem saber por quê, pensou em Ayron, o garoto de programa. Ficou ruborizada. Por que diabos estava pensando nele de novo? — Então vou querer isso, moça bonita. Ela corou, virou as costas e levou o pedido. Enquanto limpava as mesas, esperou o prato ficar pronto. Quando entregou, ele comeu devagar, mexendo no celular. Algo nele parecia errado, deslocado. Mas o trabalho a puxava de volta à realidade. Quando ele foi embora, sentiu o olhar dele atravessá-la. A funcionária do caixa reclamou: — Aylla, fecha a porta, por favor. Senão aparece mais gente. Já passou da nossa hora. Ela assentiu, colocou a placa de “Fechado” e voltou a organizar. Pouco depois, sua mãe pediu para levar os lixos para fora. Pegou os sacos e seguiu até a caçamba. Estava escuro, o vento cortante fazia os pelos do corpo arrepiarem. O inverno em Dunwich era cruel. Ouviu passos. Instintivamente se escondeu atrás da lixeira. Achou-se ridícula, mas ficou ali. Espiou. Era o homem de antes. Ele fumava encostado num carro preto. O celular dele tocou. Aylla prendeu a respiração. — Sim, chefe. Já saí do restaurante. Ela congelou. A voz dele era tensa. Depois de alguns segundos, respondeu: — Não, chefe. Ela estava sozinha. Ele não estava junto. Aylla sentiu o coração bater no pescoço. Quem era “ele”? De quem estavam falando? — Eu fiz tudo que o senhor mandou. Posso voltar para Doryon? Doryon. A cidade onde ela vivia. Suas pernas bambearam. O homem desligou e entrou no carro, partindo. Ela demorou alguns segundos para reagir. Jogou o lixo e voltou, pálida. — Você está bem, filha? — perguntou Helena, preocupada. — Só cansada, mamãe. Não podia contar. Pareciam pessoas perigosas. Tinha medo de envolver a família. Seguiu limpando e depois foi para casa. O pai foi buscá-la. Deu boa noite e subiu para o quarto. Tomou banho, a água quente aliviando o frio e a tensão. Ao sair enrolada na toalha, tomou um susto. Leonardo estava sentado na cama. — O que você faz aqui? — Estou te esperando. Vamos dormir juntos. Ela riu, sarcástica. — Leonardo, você está maluco? Eu quero que você suma da casa dos meus pais. Agora. — Aylla, sinto falta do seu corpo... Ele se aproximou. Ela recuou. — Deveria ter pensado nisso antes de me trair. Não me toque! Ele encostou a mão em sua bunda. Ela, instintivamente, lhe deu um tapa. — Seu toque me dá nojo! Leonardo ficou com os olhos arregalados, como se fosse bater nela. Mas se conteve. — O que aconteceu com você? — Eu acordei. Cansei de ser a idiota que te amava. Agora, me deixa em paz. Ele saiu, frustrado. Aylla vestiu o pijama e caiu na cama. Sonhou com Ayron. Acordou molhada. “Eu virei uma safada”, pensou. Na manhã seguinte, na mesa do café, Leonardo agia como se tudo estivesse bem. Os pais riam. Mas Aylla estava decidida. — Pai, mãe... eu não estou mais noiva do Leonardo. E ele veio anunciar isso pra vocês. Com respeito, não é mesmo, Leonardo? Todos ficaram em silêncio. Ela o encarou, firme. Pela primeira vez, não se importava com mais nada além da própria paz. E ela não estava mais disposta a fingir.