POV: Ayra
— Eu não quero te arrastar para isso. Repeti, com a voz mais baixa, apertando as frutas como se quisesse esmagar a culpa junto com elas. Aruk soltou um suspiro lento, mas não retirou a mão do meu ombro. Seu toque era firme, protetor, e... reconfortante. — Você já está arrastando, Ayra. Desde o dia em que nos encontramos naquela noite. Você estava ferida e com fogo nos olhos. Seus lábios se curvaram num meio sorriso. — E quer saber? Eu não me arrependo. Meus olhos se fecharam por um instante. Era difícil confiar. Aruk nunca tentou me tocar de forma imprópria, nunca exigiu explicações além do necessário. Ele era Alfa, mas respeitava meu espaço como se soubesse que a dor do abandono ainda queimava. Lucian corria pelo campo aberto do outro lado da clareira, rindo alto, cercado por dois filhotes de lobos que o seguiam como sombras animadas. Seu cabelo castanho-claro voava ao vento, os olhos cor de âmbar refletindo o brilho da lua. Exatamente como os de Kael. E toda vez que eu os encarava, algo se partia e se reconstruía dentro de mim ao mesmo tempo. Lucian era minha luz. Meu motivo. Meu legado. — Ele está crescendo rápido. Murmurei, tentando afastar o aperto no peito. — É o sangue real. Disse Aruk, com um olhar enigmático. — Os filhos de Alfas amadurecem mais rápido. E ele não será qualquer lobo. Eu sinto isso. Assenti, sem palavras. Lucian não sabia a verdade ainda. Não sabia que era filho de um rei. Que o homem que o gerou me lançou ao chão diante de todo um conselho, como se eu fosse pó nos sapatos dele. Mas um dia saberia. E quando esse dia chegasse, não haveria espaço para lágrimas. Apenas para poder. Naquela noite, fui até o rio. O mesmo onde lavei meu corpo pela primeira vez, depois da rejeição. Era onde me sentia mais limpa, não fisicamente, mas na alma. A água gelada trazia silêncio, e o silêncio trazia clareza. Me ajoelhei à beira, olhando meu reflexo trêmulo na superfície. Não era mais a mesma mulher. O rosto ainda era meu, mas os olhos estavam diferentes. Mais escuros. Mais firmes. Vi cicatrizes. Marcas invisíveis que o mundo jamais entenderia. E pela primeira vez em anos... senti orgulho. Eu sobrevivi. Não apenas por mim. Mas por Lucian. — Você está mais forte, disse uma voz às minhas costas. Aruk. Não me virei. Continuei olhando a água. — Não tive escolha. Ele se aproximou devagar, parando ao meu lado. — Escolhas são uma ilusão. A dor nos força a agir. A sobreviver. — Você fala como quem sabe disso. — Sei. Sua voz carregava sombra, mas também verdade. — Minha antiga alcateia me expulsou por proteger uma Ômega. Eles disseram que me tornei fraco por me apaixonar. Ela foi morta. E eu, exilado. Senti um nó na garganta. Olhei para ele pela primeira vez naquela noite. Aruk era diferente de Kael. Onde Kael era fogo e brutalidade, Aruk era rocha e sombra. — Eu sinto muito. — Eu não. Seus olhos encontraram os meus. — Porque conhecê-la me tornou mais forte. Mais... livre. Engoli em seco. O ar entre nós estava carregado de algo que eu não queria nomear. Algo que crescia lentamente há anos, mas que me recusei a reconhecer. — Não se apaixone por mim, Aruk. Sussurrei. — Eu ainda sou cheia de espinhos. Ele sorriu, mas era um sorriso triste. — Eu não me apaixono por flores. Me apaixono por tempestades. Dias depois, o mundo mudou. Estávamos treinando os mais jovens, quando uma das batedoras voltou com os olhos arregalados e a respiração cortada. — Eles estão perto. A alcateia do norte. Eles patrulham as fronteiras como se estivessem procurando... alguém. Meu sangue gelou. Kael. — Tinha um homem com olhos âmbar. Alto. Alfa. Cheiro de madeira e cinzas. Meu coração parou por um segundo. Ele me procurava. Por quê? Ele me rejeitou. Me destruiu. Me obrigou a reconstruir tudo do nada. E agora ele ousava pisar neste lado da floresta? — Ayra? Aruk tocou meu braço. — O que vamos fazer? Levantei o queixo. — Vamos nos preparar. — Para quê? — Para mostrar a ele que a loba que ele rejeitou agora lidera sombras. Que o filho que ele ignorou carrega o sangue de uma rainha. Olhei para Lucian, correndo entre os outros. Ele ainda era uma criança, mas seus olhos brilhavam como brasas. Ele já sentia. Já sabia que algo estava se aproximando. E quando o passado batesse à nossa porta, não seríamos mais vítimas. Seríamos o destino. Kael queria caçar fantasmas? Pois bem. Ele encontraria uma matilha inteira disposta a lembrá-lo de tudo o que perdeu. E de tudo que jamais terá de volta.