POV: Ayra Blake
O cheiro de sangue ainda estava em mim quando atravessei a floresta naquela noite.
O vestido cerimonial, outrora branco, agora era só uma mancha de terra e vergonha, rasgando-se nos galhos baixos a cada passo.
Minhas pernas doíam. Meus pulmões queimavam. Mas eu não parei.
Corri.
Lutei contra as lágrimas.
Contra o instinto de voltar.
Porque, por mais que doesse, parte de mim ainda o desejava. Ainda sentia o vínculo incompleto ardendo sob a pele.
Mas eu sabia: se voltasse, ele acabaria de me destruir.
Foi quando tropecei. Um tronco escondido sob as folhas me derrubou, e meu corpo bateu no chão com força. Gritei. De raiva. De dor. De solidão.
Ali, no meio do nada, eu chorei.
Não por Kael.
Chorei por mim.
Pelo que sonhei. Pelo que perdi. Pela mulher que eu nunca mais seria.
Horas depois, sem forças, encontrei abrigo numa cabana abandonada entre as montanhas.
Me arrastei até lá como uma loba ferida, sangrando orgulho e promessas partidas.
Naquela noite, a febre veio.
E com ela... as dores no ventre.
No início, pensei que fosse o rompimento do vínculo.
Mas quando a dor se intensificou e meu olfato mudou, eu lembrei do motivo pelo qual estava feliz naquela manhã.
Eu estava grávida, de Kael. eu pretendia contar pra ele depois da cerimônia de união, mas ele me rejeitou.
Pensar nisso me fez querer chorar novamente.
Mas, dessa vez... eu não o fiz.
Eu sorri.
Porque agora, eu tinha algo dele que ninguém poderia tirar.
Algo mais forte que a marca.
Mais puro que a rejeição.
Um filho.
E ele cresceria longe da podridão daquela alcateia.
Longe de Reina. Longe do Conselho.
Longe de Kael.
Mas um dia...
um dia, ele voltaria.
E os olhos de Kael encontrariam os dele.
E quando isso acontecesse, eu estaria ao lado do meu filho, não como súdita,
mas como a loba que sobreviveu à morte do vínculo.
Como a rainha renascida do próprio sangue.
Foram meses escondida na floresta. Vivendo de caça, água de riachos e noites de febre.
Meus sentidos ficavam mais aguçados, mas meu corpo também enfraquecia.
A barriga crescia.
E com ela, minha raiva.
Falava com meu filho todas as noites.
Dizia que ele não precisava do pai.
Que seria forte como eu.
Que herdaria a luz que Kael se recusou a enxergar.
Foi numa noite coberta por neblina que fui encontrada.
Não por inimigos.
Mas por lobos renegados.
Eles me cercaram. Dentes à mostra. Olhos brilhantes na escuridão.
Mas eu não temi. A fúria que carregava queimava mais do que qualquer ameaça.
— Quem é você? Perguntou o maior deles. Um lobo cinzento, com uma cicatriz no focinho.
— Alguém que não será mais ignorada. Respondi, erguendo o queixo.
E ali, em meio ao frio e à lama, conquistei o primeiro olhar de respeito desde minha queda.
Foi assim que conheci a Alcateia das Sombras.
Lobos exilados, traídos, quebrados. Como eu.
E entre eles… encontrei força.
Contei minha história ao líder. Aruk Blackwell.
Um Alfa silencioso, calculista, de olhos frios como o céu antes da tempestade.
Ele não fez perguntas demais. Apenas ofereceu abrigo.
E quando meu filho nasceu, em meio à chuva, com trovões gritando entre as montanhas, eles o acolheram como um dos seus.
Eu o chamei de Lucian.
Luz na escuridão.
E jurei, naquela noite, que faria qualquer coisa para protegê-lo.
Mesmo que tivesse que derramar sangue.
Mesmo que fosse o de Kael.
Cinco anos depois...
— Você está bem? Perguntou Aruk, sua voz baixa, os olhos azuis me estudando com atenção.
Ele sempre soube quando algo me pesava. Como se enxergasse além da pele.
— Mesmo que eu não esteja... eu tenho que estar. Pelo bem de Lucian. Respondi, sem olhar para ele.
O menino brincava não muito longe. Era a cara do pai. Mas carregava a doçura que Kael nunca teve.
Aruk se aproximou e pousou a mão no meu ombro, firme e quente.
— Sabe que pode contar comigo, não sabe?
Encarei seus olhos por um instante, sentindo o conforto ali. Mas desviei o olhar para as frutas em minhas mãos.
— Eu não quero te arrastar para isso. Sussurrei.
Porque, no fundo, eu sabia: o passado não tinha terminado conosco.
Ele apenas estava esperando o momento certo para nos encontrar de novo.
E quando isso acontecesse...
Queimaria.