4 Irmãs de Sangue

Úrsula olhava pela janela, as mãos trêmulas repousando no colo, ainda sem acreditar que tinha sido vítima de um romance falso, de um homem que ela pensava ser seu tipo. O carro deslizava pelas ruas elegantes da cidade, enquanto o som abafado do motor preenchia o vazio.

Ela virou o rosto para ele, para o homem que um dia fora "Leonardo ".

— Você sempre faz isso? — a voz saiu ríspida. — Finge um romance, transa com mulheres para conseguir informações?

Ele manteve os olhos na estrada, os dedos firmes no volante.

— Não. Foi a primeira vez.

Úrsula soltou uma risada amarga.

— Primeira vez... — balançou a cabeça, mordendo o lábio. — Então por que saiu comigo tantas vezes? Você podia ter arrancado um fio de cabelo meu logo no primeiro encontro. Eu sou descuidada, e você teve várias oportunidades.

Ele inspirou fundo, hesitou, mas respondeu:

— Porque era legal sair com você.

Ela piscou, surpresa.

— Legal? — O olhar dela era ácido, mas o rosto começava a corar.

Ele se arriscou a olhar para ela, um sorriso leve no canto dos lábios.

— Você é uma mulher... selvagem.

Algo se remexeu no peito dela. Talvez fosse raiva, talvez fosse... outra coisa. Mas ela virou o rosto de novo, fixando o olhar no reflexo escuro da janela. Não queria admitir que aquilo a abalava. Não mais.

Quando o carro entrou por um portão de ferro ornamentado e subiu uma ladeira ladeada por árvores impecáveis, Úrsula não conseguiu conter um arquejo. A casa, ou melhor, a mansão, se erguia à frente como algo saído de um sonho: imponente, cercada por jardins perfeitamente aparados, janelas altas, varandas com colunas. Era grande demais, luxuosa demais... rica demais.

— Puta merda... — murmurou, boquiaberta. — Eu achei que fosse só um cafofo grande, não um palácio.

Ele estacionou, desligou o carro e virou-se para ela.

— Seja o que for... é sua família.

Úrsula engoliu em seco, a boca seca, os dedos fechando a alça da bolsa com força.

---

Dentro da mansão, Isadora Valli estava sentada no sofá da sala, pernas cruzadas, mãos inquietas segurando uma taça de vinho que ela não bebia. A mensagem de Murilo informando que estavam a caminho a deixara tensa. O relógio parecia arrastar os minutos, cada segundo uma pequena tortura.

Luiz não estava ali. Ele tinha ido para uma conferência de empresários, tentando mais uma vez fazer seu negócio deslanchar. Isadora o apoiava, claro, mas sabia que muitas vezes ele apenas acumulava dívidas em seus projetos. Dessa vez, no entanto, parecia estar dando certo, e ela se esforçava para demonstrar otimismo. Pelo menos, o clima entre eles havia melhorado. A briga do mês anterior (as palavras duras trocadas, a mágoa pelo afastamento), já eram coisa do passado. Agora estavam bem de novo.

Mas... este momento era só dela.

Quando Murilo entrou, Úrsula ao lado dele, Isadora levantou-se devagar, o coração batendo forte.

Úrsula... ela.

Por um instante, Isadora congelou. Seus olhos captaram o rosto da mulher: o cabelo preto como tinta, os olhos escuros, a boca cheia, o nariz, eram iguais aos de sua mãe.

Isadora deu um passo à frente, o peito apertado, e quase sussurrou:

— Você... você é... a cara dela.

Úrsula olhou ao redor, nervosa. Ela abriu a boca, mas não saiu som.

Isadora sorriu, um sorriso nervoso, as lágrimas começando a se acumular nos olhos.

— Bem-vinda... irmã.

Úrsula engoliu em seco, os olhos arregalados. Murilo pigarreou, ajustando o colarinho da camisa como se quisesse desaparecer, e murmurou:

— Vou deixar vocês a sós para conversarem...

Antes mesmo de ele terminar a frase, Úrsula ergueu o rosto, dura, a expressão como aço.

— Não.

A palavra cortou o ar como uma lâmina.

— Você me trouxe até aqui, vai me levar de volta. É a minha carona, não vou ficar sozinha em um lugar onde não conheço ninguém.

Murilo ficou em silêncio, uma ruga franzindo sua testa. Pela primeira vez, parecia desconfortável, desarmado. Mas apenas assentiu, aceitando o papel que Úrsula impunha, e se sentou em uma das poltronas luxuosas da sala.

Isadora, no entanto, nem pareceu perceber a tensão.

— Obrigada por trazê-la até aqui, Murilo! — disse, emocionada, o olhar brilhando de gratidão.

Úrsula olhou de soslaio para ele, o nome soando estranho em seus pensamentos. Então era esse o verdadeiro nome de "Leonardo "? Murilo.

Ficou mastigando aquilo, o nome áspero em sua boca como uma pedra.

— De nada — ele respondeu baixinho, sem encarar Úrsula.

Isadora, por sua vez, parecia flutuar. Aproximou-se de Úrsula como se fosse abraçá-la, os olhos marejados, o rosto iluminado por um sorriso que era tanto alívio quanto esperança.

— Eu ainda nem acredito... Você... É tão... Tão...

Úrsula ergueu as mãos, num gesto defensivo, recuando um passo.

— Ei, ei, calma. Eu nem sei o que estou fazendo aqui.

Isadora parou, as mãos ainda meio erguidas, e sorriu, quase rindo de si mesma.

— Desculpa, é só que... Você parece tanto com a mamãe. O mesmo jeito do olhar, o formato da boca... Até o nariz é igual.

Úrsula desviou o olhar, sentindo o estômago se revirar. Aquele jeito meloso de Isadora a deixava desconfortável. Ela era grudenta, calorosa demais, e isso a incomodava. Como alguém podia ser tão... carinhosa?

— A gente nem se conhece direito... — Úrsula murmurou, cruzando os braços. — E, olha, mesmo que sejamos... irmãs ou meia-irmãs ou seja lá o que for... isso não faz de nós melhores amigas de infância, tá?

Isadora piscou, surpresa, e recuou um pouco, como se levasse um leve empurrão invisível.

— Eu sei, eu sei... — Ela suspirou, ajeitando uma mecha do cabelo atrás da orelha. — Só... me desculpa. Eu... Esperei muito por esse momento. Achei que seria diferente.

— Não é.

O silêncio pairou pesado na sala, enquanto Úrsula desviava o olhar, como se não soubesse onde colocar as mãos. Murilo os observava de longe, a boca cerrada, o olhar discreto, mas atento.

Isadora sorriu, mas era um sorriso tremido.

— Bom... Você quer alguma coisa? Um café? Um chá? Ou...

— Um copo d’água, se tiver.

— Claro! — Isadora disse rápido, quase tropeçando nas palavras, e desapareceu para a cozinha, os saltos batendo pelo chão de mármore.

Úrsula ficou ali, respirando fundo, tentando se convencer de que aquilo tudo era real, que a mansão era real, que a mulher grudenta era sua irmã...

Úrsula aguentou o que pôde, mas não passou mais do que uma hora na casa de Isadora. Não conseguia lidar com tanta gentileza, com aquele ambiente limpo e brilhante que parecia de outro mundo.

Isadora, claro, nem percebeu o desconforto da irmã. Quando Úrsula se levantou, dizendo que precisava ir, Isadora a acompanhou até a porta com um sorriso radiante, as mãos entrelaçadas, como se não quisesse soltá-la.

— Você é sempre bem-vinda aqui, Úrsula. Sempre. Essa casa também é sua, sabia? Vamos marcar de conversar na semana que vem com os advogados, temos muito a resolver…

Úrsula quase riu, mas se conteve. Era surreal. Como Isadora podia querer dividir um império inteiro com uma estranha que acabara de conhecer? Ela era uma mulher adulta, mas… tão ingênua.

— Até mais, Isadora — Úrsula disse, sem prometer nada.

Isadora, no entanto, parecia flutuar.

Quando Úrsula entrou no carro com Murilo, largou-se no banco como se a tensão escorresse pelos ossos. Ele ligou o motor, e o silêncio entre eles durou o tempo de dois semáforos, até ela romper:

— Murilo… Então esse é o seu nome de verdade? Ou é mais uma mentira?

Ele sorriu, aquele sorriso torto, cínico, que a desarmava sem pedir permissão. Por um breve momento, ela viu o vislumbre de Leonardo, o homem galante, o sedutor que a havia enredado.

— Foi o nome que minha mãe me deu. Mas, sabe, sempre quis me chamar Leonardo , por causa da tartaruga ninja. Sempre que posso, me apresento assim.

Úrsula revirou os olhos, bufando.

— E você se orgulha de ser um trambiqueiro?

Ele deu uma risada baixa, quase rouca, os olhos fixos na estrada, como se aquilo fosse só uma brincadeira inofensiva.

— Não somos tão diferentes assim, Úrsula... Já viveu em tantos lugares, teve tantos namorados, e para cada um... uma história nova.

Ela virou o rosto, tensa.

— O que você está insinuando?

Murilo deu uma olhada rápida para ela, os lábios se curvando num sorriso quase cruel.

— Como acha que eles se sentiriam se soubessem que todos aqueles testes de gravidez eram falsos? Se soubessem que você sequer pode gerar um bebê, que é esterilizada?

O estômago de Úrsula revirou, o sangue gelou. Ela se virou abruptamente, encarando-o.

— Como você sabe disso?

— É o meu trabalho, Úrsula.

Ele olhou de lado, os olhos ainda brilhando com um toque de provocação.

— Você se daria bem nesse ramo, sabia? Com a sua lábia, a sua presença… É uma arma poderosa.

Ela engoliu em seco, os dedos apertando o couro do banco. Raiva queimava em seu peito, mas de alguma forma, se misturava com outra coisa. Uma faísca, talvez, uma lembrança incômoda da química entre eles, da forma como ele a fazia sentir-se viva — até mesmo quando tudo era uma mentira.

O carro desacelerou perto do prédio dela, as luzes da rua jogando sombras na calçada.

Úrsula ficou um momento em silêncio, mordendo o lábio. Então, inclinou-se um pouco, a voz saindo baixa, quase desafiadora:

— Murilo... Quer fingir que ainda é o Leonardo só mais uma vez? Na minha cama?

Ele virou o rosto para ela, o sorriso crescendo lento, predatório, como se fosse a pergunta que ele esperava.

— Achei que nunca iria perguntar.

Naquela noite, não foi apenas o quarto de Úrsula que pegou fogo.

Em outro ponto da cidade, na mansão Valli, algo também se acendeu dentro de Isadora. Sentada no sofá da sala, com os dedos ainda entrelaçados nos próprios joelhos, ela sentia um calor diferente pulsando no peito. A esperança, uma velha amiga que há muito tempo não visitava, parecia ter voltado a florescer em sua vida.

Por anos, odiara ser filha única. Lembrava de como, ainda criança, perguntava à mãe quando teria um irmãozinho, e a resposta era sempre a mesma: "Não, minha filha. Não posso trair a memória do seu pai. Nunca me envolveria com outro homem, muito menos teria um filho dele."

Agora, imaginava... e se sua mãe tivesse procurado Úrsula naquela época? E se tivesse feito as pazes com o passado, reunido suas filhas? Será que teriam crescido juntas, dividindo segredos, risadas, medos? Será que a solidão que corroía Isadora em tantos dias e noites teria sido mais branda?

Esses pensamentos a envolveram, uma nostalgia misturada com alegria. Não estava mais sozinha. Úrsula era carne do seu sangue, uma ligação inquebrável, mesmo que recém-descoberta.

Luiz, ao entrar na sala e vê-la assim, com os olhos brilhantes, o peito erguido, as mãos trêmulas, parou na porta. Algo mudou nele. Havia anos que não via aquela chama na esposa. Era a mesma energia selvagem, aquela que o deixava sem ar, aquela que o fazia lembrar da primeira vez que a viu.

Tinham sido o primeiro namorado um do outro, sim, mas Luiz sabia que não fora o primeiro homem de Isadora. Ela era uma adolescente desbravadora, cheia de vontades, de desejos. Ele, um garoto quase inocente, quatro anos mais novo, caíra aos pés dela como um filhote perdido.

Lembrava como se fosse ontem: no primeiro encontro, ela o puxou pela mão, o fez tremer na última fileira de poltronas do cinema, e ele, sem entender direito o que acontecia, teve certeza de que estava apaixonado.r

Agora, tantos anos depois, essa mesma energia o envolvia. Só que dessa vez ele não era mais um menino de quase 14 anos. Era um homem. E sabia como corresponder à altura. Sabia como devolver todo aquele prazer à mulher que, de repente, parecia renascer diante dele.

Luiz atravessou a sala devagar, como um lobo se aproximando de sua fêmea. Ela ergueu o olhar, ainda meio perdida nos próprios pensamentos, mas bastou o toque firme das mãos dele em sua cintura, o calor que percorreu seu corpo, para entender o que estava por vir.

E naquela casa, onde a esperança voltava a crescer, a noite também se incendiou.

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App