A mesa de jantar era grande demais para dois. A porcelana branca e os talheres brilhando sob a luz amarelada pendente no teto. Tudo impecável, como sempre. O aroma do peixe grelhado preenchia o ar, mas o silêncio era o verdadeiro tempero daquela noite.
Luiz cortava o alimento com precisão, mastigava lentamente, como se aquele ato metódico pudesse adiar o inevitável. Isadora apenas mexia no prato, sem fome, o olhar fixo em algum ponto invisível à frente. Ele havia voltado naquela manhã, de mala na mão e um sorriso forçado no rosto. "Podemos tentar de novo", foi o que ele disse, antes mesmo de ela responder. Agora, sentados à mesa, o ar parecia pesado demais para ser respirado. Isadora foi direta, como sempre fora. A faca e o garfo pousados de lado, ela ergueu os olhos e disparou: — Dormiu com outra mulher enquanto estava fora? O som do garfo dele caindo no prato ecoou pela sala. Luiz engasgou, limpando a boca com o guardanapo, os olhos arregalados. — Isadora, pelo amor de Deus... não! — disse, quase ofendido. — Como pode pensar isso de mim? Ela deu um sorriso amargo, sem humor. — O que pensar de um homem que sai de casa porque a mulher não conseguiu... dormir com ele? — A voz dela saiu baixa, mas afiada como lâmina. — Tenho culpa de pensar assim, Luiz? Ele suspirou fundo, fechando os olhos por um instante, como se aquilo fosse um mantra contra o desespero. — Para com isso, Isa... por favor. Não é justo. — Ele estendeu a mão sobre a mesa, como se pudesse alcançá-la. — Eu só quero que a gente volte a ser como antes. Ela se afastou levemente, cruzando os braços. A ferida ainda estava aberta, e ele parecia não entender a gravidade do que pedira dela: presença, alegria, desejo, quando ela estava afundada no luto. Após um silêncio incômodo, Luiz pigarreou, tentando quebrar o clima. — E a busca pela sua irmã? Alguma novidade? Isadora respirou fundo, endireitando a postura. — Um dos homens de Breno conseguiu um fio de cabelo dela. Vão fazer o teste de DNA com um cabelo da escova da mamãe. — Disse isso com um tom mecânico, como quem repete uma informação pela centésima vez. — As amostras já foram entregues, só falta o resultado. Luiz arregalou os olhos, surpreso. — Tem fotos da sua possível irmã? — Breno me deixou ver... mas não me deu nada. Também não consegui encontrar nenhuma rede social dela. — Isadora mexeu na borda do prato com o garfo, distraída. — Vive nas sombras. Diz ele que vive bem. Luiz inclinou a cabeça, pensativo, o olhar sério. — Não tem medo de ela ser uma mulher perigosa? Isadora parou por um segundo, pensando. Depois, deu um leve sorriso, mas havia um amargor escondido ali. — Acho que já convivo com gente perigosa o bastante, não acha? Luiz baixou os olhos, voltando para o prato, sem resposta. --- Úrsula estava sentada no sofá da sua sala, as pernas cruzadas, mexendo no celular como se fosse um amuleto. A tela acendia e apagava, refletindo na penumbra do apartamento, e os minutos pareciam horas enquanto ela atualizava as redes, olhava os aplicativos, até mesmo as mensagens antigas, como se, por algum truque, uma nova notificação fosse aparecer. Ela detestava a ideia de admitir aquilo para si mesma — mas estava esperando uma mensagem de Leonardo . Ele havia sumido há uma semana. Nenhum telefonema, nenhuma mensagem. Como se tivesse evaporado. Era o tipo de coisa que ela costumava fazer com os outros, dar o fora, sumir, deixar alguém esperando e ansioso. E agora, o jogo parecia ter virado. Úrsula bufou, largando o celular no sofá, tentando ignorar a irritação. — Idiota... — murmurou, cruzando os braços, o peito inflando de uma raiva tão conhecida, mas que não conseguia apagar aquela pontinha de esperança. Foi então que o celular vibrou. O coração de Úrsula deu um salto antes mesmo que seus olhos pudessem conferir o remetente. Tentou conter o sorriso, mas não conseguiu. Era ele. Leonardo . "Me encontra hoje à noite? 20h. No mesmo café." Úrsula ficou ali parada, encarando a mensagem, os dedos hesitando sobre a tela. Não havia emojis, nenhuma explicação, só aquela pergunta simples. Mas bastava. — Babaca... — murmurou, mas já estava pegando a bolsa para sair. Úrsula chegou ao café antes do horário marcado. Passou os dedos pelos cabelos, ajeitou a blusa e tentou não parecer ansiosa. Mas quando o viu, sentiu um calafrio. Leonardo estava diferente. Sentado à mesa do canto, ele parecia menos charmoso, como se parte daquela persona sedutora tivesse evaporado. Vestia uma camisa preta simples, sem a gravata usual, e o olhar que ele lançou quando a viu entrar era frio, focado, quase clínico. Não havia um sorriso. Não havia calor. Ela se sentou diante dele, pronta para despejar a raiva acumulada, pronta para perguntar por que ele havia sumido, pronta para chamá-lo de canalha. Mas Leonardo (ou quem quer que fosse) não deu espaço para isso. Ele foi direto. — Meu nome não é Leonardo . Não importa qual seja, na verdade. O que importa é que eu sou um investigador particular. Úrsula ficou paralisada, o cenho franzido. — O quê? Ele continuou, como se recitasse um relatório: — Você foi registrada pelo seu pai semanas após o nascimento. Seu nome completo: Úrsula Costa. Sua mãe? Você não conheceu. Nasceu e cresceu em um cortiço. Não sabe nada de sua mãe, mas ela se envolveu com teu pai em uma relação forçada, informal, ainda quando era menor de idade. Seu nascimento foi um parto domiciliar. Ela te deixou ainda bebê, com dias de nascimento e foi embora. Seu pai dela já era idoso, semi-analfabeto. Tem registros de que ele não sabia sequer assinar o próprio nome. Você ficou sem registro de nascimento até semanas depois de nascida. Sua mãe, de quem nunca soube muita coisa, foi Clara Valli, hoje falecida após lutar contra um câncer. Úrsula ficou muda. Seu corpo estava tenso, a mente girando. — O que você está falando? — A voz dela saiu baixa, trêmula. O homem — o investigador — inclinou-se para frente, a expressão dura. — Sua irmã está te procurando. Quer você perto dela. Quer que sejam uma família. Úrsula piscou, tentando processar a avalanche de informações. Sua mãe... Clara. O nome soava estranho e, ao mesmo tempo, familiar. Tinha memória de ouvir aquele nome em sussurros, mas era um nome tão comum. E as peças... as peças começavam a se encaixar. Seu pai, sempre agressivo, ranzinza, contando aquela história suja de ter "ganhado" sua mãe em uma aposta. A ausência de um nome da mãe na certidão. A infância dura, sem nada que a tornasse oficialmente alguém. Ela tentou manter a postura, cruzando os braços. — E o que eu faço com essa informação? — Perguntou, a voz firme, mas o peito apertado. Queria soar indiferente, mas a mágoa estava ali. Ainda se sentia... traída. Por ele. Leonardo (ou seja lá como se chamava). Aquele homem por quem começava a se sentir atraída, que ouvia suas histórias, que a fazia rir, que a levava a lugares bons, que a fazia sentir que era vista. Agora sabia que nem mesmo o nome dele era real. Ela engoliu em seco. — Você nem é quem disse que era. Como posso acreditar no que está dizendo? Ele a olhou, um pouco mais humano agora, mas ainda sério. — De fato, tudo que lhe disse foi mentira. Mas a verdade é que sua irmã quer você por perto. Quer que sejam uma família. Úrsula desviou o olhar, segurando o celular como se fosse uma âncora. Família. Uma palavra tão distante, tão irreal para ela. Leonardo suspirou, como se já esperasse a desconfiança. Ele abriu a pasta de couro que havia trazido e, com movimentos precisos, deslizou sobre a mesa um pequeno maço de documentos, fotos, laudos. Úrsula olhou de esguelha, mantendo os braços cruzados, mas não conseguiu resistir à curiosidade. Ali estavam certidões, registros antigos, fotos borradas e um laudo de DNA. — Está tudo aí. — Ele disse, a voz ainda baixa, sem emoção. Úrsula pegou os papéis com dedos trêmulos. O olhar se deteve no teste de DNA, seu nome e o nome de Clara Valli impressos no cabeçalho. O resultado era claro: compatibilidade de maternidade. O laudo gritava uma verdade que ela jamais pensou que precisaria ouvir. Clara Valli. O nome parecia uma ficção, mas ali estava, em letras pretas sobre o papel. Ela virou mais algumas folhas. Reconheceu ali a história que Leonardo tinha contado: a certidão de nascimento tardia, os registros do cartório com a assinatura tosca do pai, as fotos de um cortiço, o laudo de óbito de Clara Valli. E, entre os papéis, uma foto antiga de uma mulher de cabelos pretos e olhar suave. Úrsula engoliu em seco, apertando os olhos para não deixar as lágrimas virem. — E quem é minha irmã? — Ela perguntou, a voz rouca, os olhos fixos no laudo. — O nome Valli não diz nada para mim. Leonardo se inclinou um pouco, o olhar mais suave agora, mas ainda estudando cada reação dela. — Se quiser, posso levá-la até ela agora. Ela gostaria que fosse assim, mas essa parte... só quando você se sentir confortável. Úrsula ficou um tempo em silêncio, mordendo o lábio inferior, os olhos ainda sobre os papéis, sentindo as peças do quebra-cabeça forçadamente se encaixarem. Respirou fundo, fechou a pasta e empurrou levemente para o lado. — Pode me levar até ela. — Disse, encarando-o com firmeza. — Mas saiba que, se isso for alguma piada de mau gosto... eu tenho uma arma de choque na bolsa. Não vou hesitar em usar. Um leve sorriso puxou o canto da boca de Leonardo , mas ele apenas assentiu, levantando-se devagar. — Sem piadas de mau gosto, Úrsula. Prometo. Ela se levantou também, jogando a bolsa no ombro, e seguiu atrás dele. O peito ainda estava apertado, a cabeça rodando. Mas agora havia algo novo no ar. Expectativa.