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Dez anos antes...
O cheiro de gasolina e carne queimada ainda impregnava o ar quando Matteo Salvatore acordou no hospital.
Ele não gritou. Os gritos haviam ficado presos em sua garganta três dias atrás, quando as chamas consumiram metade de seu rosto e o transformaram naquilo que os médicos chamavam educadamente de "sobrevivente". O que eles realmente queriam dizer, Matteo sabia, era monstro.
Através do olho esquerdo — o único que ainda funcionava perfeitamente — ele enxergou o teto branco do quarto privado. Caro. Isolado. Não por bondade, mas por necessidade. Um homem na sua posição não podia mostrar fraqueza. E despertar gritando, com o rosto derretido como cera, definitivamente era fraqueza.
A porta se abriu sem cerimônia.
Luca Moretti, seu conselheiro mais antigo, entrou com o semblante grave. Aos sessenta anos, Luca tinha sobrevivido a três guerras entre famílias e inúmeras traições. Nada o abalava. Mas quando seus olhos pousaram no rosto de Matteo — ou no que restava dele — algo vacilou em sua expressão controlada.
— Não — Matteo murmurou, sua voz rouca pela fumaça que havia inalado. — Não me olhe assim.
Luca recuperou a compostura instantaneamente, aproximando-se da cama com passos medidos. — O médico disse que você teve sorte.
— Sorte. — Matteo teria rido se não doesse tanto. A pele do lado direito de seu rosto estava coberta por bandagens, mas ele sentia. Sentia cada terminação nervosa morta, cada pedaço de carne que nunca mais seria o que era. — Encontrou quem fez isso?
— Sim. — A palavra saiu como uma sentença de morte.
— Quem?
Luca hesitou. Naquele silêncio, Matteo soube. Soube antes mesmo de ouvir o nome que destruiria o que restava de sua humanidade.
— Vittorio.
Seu irmão.
Matteo fechou o olho que ainda funcionava. Claro. Claro que havia sido Vittorio. O irmão mais novo, sempre na sombra, sempre ressentido por Matteo ter sido o escolhido para liderar a famiglia aos 29 anos. O incêndio no armazém não tinha sido um acidente. Tinha sido uma execução falhada.
"Onde ele está?" A voz de Matteo saiu baixa, perigosa.
"Fugiu para a Sicília. Está sob proteção da famiglia Andretti."
"Então declare guerra."
"Matteo..." Luca começou, mas foi interrompido pelo olhar gélido que o mais jovem lhe lançou.
"Declare. Guerra."
Luca assentiu lentamente. "Há outra coisa." Ele puxou uma cadeira, sentando-se como se precisasse de apoio para o que viria a seguir. "A famiglia está... dividida. Alguns capos questionam se você ainda tem condições de liderar."
"Por causa disso?" Matteo apontou para o próprio rosto com amargura.
"Por causa da instabilidade. Vittorio não agiu sozinho. Temos traidores entre nós, e agora, com você..." Luca escolheu as palavras cuidadosamente. "Incapacitado, eles veem uma oportunidade."
Incapacitado. Que palavra delicada para descrever um monstro.
"Quanto tempo tenho?"
"Até você se recuperar. Mostrar que ainda é forte. Que ainda comanda." Luca fez uma pausa. "E eventualmente, precisará de um herdeiro. Um sucessor legítimo. Isso acalmaria muitos."
Matteo riu, um som áspero e sem humor. "Um herdeiro. E que mulher iria querer me tocar agora?"
Luca não respondeu. Não precisava. Ambos sabiam a resposta.
Nos dias que se seguiram, Matteo recebeu visitas. Homens da famiglia, aliados, até alguns rivais fingindo preocupação. Todos entravam com expressões neutras. Todos saíam com alívio mal disfarçado por não serem eles a carregar aquelas cicatrizes.
As mulheres eram piores.
Giulia, sua noiva há três anos, veio uma única vez. Ela tentou esconder, mas Matteo viu. Viu o tremor em suas mãos, a forma como ela evitava olhar diretamente para ele, como seus olhos se encheram de lágrimas — não de compaixão, mas de horror.
"Eu sinto muito", ela sussurrou antes de praticamente correr para fora do quarto.
O anel de noivado foi devolvido por mensageiro dois dias depois.
Matteo não a culpou. Como poderia? Ele havia se olhado no espelho naquela manhã — contra os conselhos dos médicos — e visto o que ela tinha visto. Metade de seu rosto era um mapa de cicatrizes retorcidas, a pele esticada de forma grotesca, o canto da boca puxado em um sorriso permanente e cruel que não refletia nenhuma alegria.
Ele era uma fera. E feras não mereciam amor.
Mas feras ainda podiam comandar através do medo.
Dois meses depois, quando Matteo deixou o hospital, foi com um plano. Ele usaria máscaras. Esconderia o rosto nas sombras. Tornaria-se ainda mais implacável, ainda mais brutal. Se não podia mais inspirar lealdade através do carisma, inspiraria através do terror absoluto.
E quanto ao herdeiro que a famiglia exigia?
Bem, eventualmente encontraria uma solução. Alguma mulher desesperada o suficiente, com dívidas profundas o suficiente, que não teria escolha senão aceitar o monstro em sua cama.
Amor era para homens com rostos inteiros.
Ele se contentaria com dever.
Matteo Salvatore olhou pela última vez para o homem que havia sido no reflexo embaçado da janela do carro que o levava de volta para seu império.
Aquele homem estava morto.
Em seu lugar, nascia algo muito mais perigoso.







