Acordei antes mesmo do despertador, como se o próprio destino tivesse me cutucado pela nuca e dito: “Levanta, Laena, e tenta não causar um incêndio hoje.”
Olhei para o espelho, coque armado com determinação duvidosa? Ok.
Roupa “apresentável dentro do possível”? Ok.
Expectativa de não passar vergonha? Baixa, porém existente.
Saí para o corredor da mansão, tentando repetir mentalmente: Hoje eu não caio. Hoje eu não tropeço. Hoje eu não passo por vexames.
Ingênua, eu sei.
A governanta me encontrou com seu sorriso profissional.
— Bom dia, senhorita Souza. O senhor Valverde já está no escritório. E Lorenzo acordou há pouco.
Meu estômago apertou — ansiedade, nervosismo e uma pontinha de carinho automático.
Seguimos pelos corredores silenciosos, cada passo meu ecoando como se a mansão analisasse minha presença. Quando entramos na sala de brinquedos, encontrei Lorenzo sentado no tapete, alinhando carrinhos com precisão quase matemática.
Ele não me olhou. Não se encolheu. Não fugiu. Apenas continuou. Aproximei-me devagar.
— Oi, Lorenzo. Posso ficar aqui com você?
Sem levantar a cabeça, ele empurrou um carrinho azul na minha direção. Pequeno gesto, grande significado. Sentei ao lado dele.
— Obrigada. É bonito. Você gosta mais dos azuis?
Ele ergueu os olhos — castanhos, profundos e tristes de um jeito que me desmontou por dentro.
Foi nesse momento que ouvi um pigarro atrás de mim. Virei devagar.
Dante Valverde estava parado na porta.
Terno impecável. Gravata perfeitamente alinhada. Perfume que chegava antes dele. Olhar afiado o bastante para cortar pensamentos pela metade.
O ar da sala pareceu mudar.
— Vejo que ainda está inteira — disse ele, com ironia suave.
— Inteira é uma palavra otimista, mas estou funcional — respondi.
A governanta tossiu para esconder o riso. Dante não riu, mas o olhar denunciou que ele registrou a piada.
— A senhorita começa agora — declarou. — Qualquer problema, me chame.
— Claro.
Ele deu meio passo para sair e voltou apenas para acrescentar:
-Só não caia no meu escritório.
Respirei fundo. Assim como meu desastre anterior, essa frase provavelmente me perseguiria até a aposentadoria.
Antes que eu pudesse reagir, Lorenzo se levantou e colocou na minha mão uma pista de corrida desmontada. Era um convite silencioso, mas direto.
— Você quer montar isso comigo? — perguntei.
O menino assentiu com um gesto discreto, mas profundo. Meu peito aqueceu e então aconteceu.
Lorenzo levantou o rosto, os olhos fixos no pai, e murmurou:
— Papai.
O mundo ao redor simplesmente suspendeu sua existência.
Meu corpo congelou.
Dante também parou, como se aquela palavra tivesse atravessado todas as suas defesas, prendeu a respiração, como se temesse interromper o momento.
O olhar de Dante se transformou — surpresa, dor, esperança e algo vulnerável demais para um homem que costumava parecer indestrutível. Mas, em poucos segundos, ele recolheu tudo e guardou novamente em algum lugar fundo dentro dele.
— Fique com ele — disse num tom mais contido. — Tenho reunião. Não deixe ele comer doce antes do almoço. E…
E antes que completasse a frase, eu me abaixei para pegar uma peça da pista exatamente no mesmo instante em que ele se abaixou para pegar um bloco. Minha testa encontrou o queixo dele com força.
— Ai! — soltei.
A mão de Dante veio imediatamente ao meu rosto, grande, firme e quente.
— Você está bem? — perguntou, a voz grave demais para permanecer indiferente.
Ele estava perto. Perto demais. A proximidade dele roubava qualquer noção de distância aceitável, e de repente fiquei consciente do cheiro marcante que ele exalava, do calor que irradiava, da tensão silenciosa que parecia envolver nós dois como um fio prestes a se romper. O mundo desacelerou, empurrando-nos para dentro daquele instante suspenso. Eu não consegui me mover; ele também permaneceu ali, firme, como se algo o ancorasse exatamente naquele lugar ao meu lado.
Até que um barulho interrompeu tudo.
PLÉC-TUM!
Lorenzo havia jogado um carrinho do topo da estante, observando a queda com curiosidade científica.
Dante afastou a mão devagar, a expressão retomando sua armadura habitual.
O olhar dele recaiu sobre mim — intenso, analítico, cheio de uma curiosidade silenciosa misturada a um calor discreto que ameaçava desmontar meu raciocínio.
— Acho que ele gosta de você — murmurou.
— E eu acho que ele tem talento para acrobacias — respondi, tentando parecer normal.
Ele manteve o olhar por um segundo longo demais.
— Mantenha-se inteira hoje, Laena. Não quero que se machuque no primeiro dia.
E saiu, deixando perfume, silêncio e um coração meu que ainda não tinha entendido o que estava sentindo.
Lorenzo me entregou outra peça da pista, como se dissesse: *Volta pra cá, está tudo bem.*
Sorri.
— Vamos montar isso juntos, campeão.
E ele sorriu de volta — pequeno, tímido, e absolutamente capaz de derreter qualquer pessoa.
Naquele instante, percebi: aquilo era muito mais que um emprego. Era o início de algo grande, delicado e perigoso. Algo que envolveria Lorenzo, claro… mas também o homem que dizia tão pouco e revelava tanto sem perceber.
E eu?
Eu já estava dentro dessa história. Muito mais do que deveria.