Mundo ficciónIniciar sesiónA manhã parecia tão tranquila que quase me deixou desconfiada. Lorenzo já estava sentado no tapete da sala de brinquedos quando entrei, com a coluna ereta, a expressão séria e a concentração absoluta de um pequeno engenheiro. Ele alinhava carrinhos com precisão e quase nem respirava entre uma posição e outra. Quando me aproximei e desejei bom dia, ele apenas empurrou um dos carrinhos na minha direção — um gesto simples, mas cheio de significado para quem falava pouco. Era a maneira dele de dizer que eu podia me aproximar.
Sentei ao lado dele, deixando espaço suficiente para que não se sentisse pressionado. Montei alguns blocos ao meu redor, fingindo foco enquanto observava discretamente a maneira como ele reagia à minha presença. A cada movimentação minha, ele lançava um olhar rápido, quase como se estivesse checando se eu realmente ficaria ali. E eu ficaria. Todas as vezes que ele precisasse. A calmaria durou até os passos de Dante preencherem o corredor. Eu já era capaz de reconhecê-los: firmes, precisos, responsáveis por fazer o chão parecer obedecer. Quando ele surgiu na porta, a sala de brinquedos — tão ampla, tão iluminada — pareceu ficar menor. Ele tinha as mangas da camisa dobradas, a gravata afrouxada e o cabelo um pouco desalinhado, como se tivesse passado as mãos por ele depois de uma reunião tensa. Havia algo perigosamente impecável naquele homem. — Estão trabalhando duro, percebo — comentou com ironia leve, mas marcante. Tentei agir com naturalidade. — Coordenação motora é essencial — respondi, como se fosse especialista em qualquer coisa. A sobrancelha dele arqueou — um movimento que me desmontava mais do que qualquer palavra. — Coordenação motora… — repetiu. — Está indo melhor que ontem? — Ainda não tropecei — murmurei, sorrindo com timidez. — Isso já é uma vitória pessoal. Ele se aproximou dois passos. Bastaram dois para alterar a temperatura da sala. — É bom manter-se de pé. Eu posso não estar por perto para segurar você da próxima vez. A frase caiu sobre mim como um toque, mesmo que ele não tivesse chegado tão perto. E antes que eu formulasse uma resposta, Lorenzo lançou o carrinho pela pista recém-montada. O brinquedo completou o looping e cruzou a linha imaginária de chegada, fazendo o menino bater palmas de alegria. A expressão de Dante mudou instantaneamente. Por um breve segundo, ele não era o CEO rígido — era apenas um pai encantado com um progresso simples, mas importante. — Bom trabalho, campeão — disse, com uma suavidade surpreendente. Quando Lorenzo estendeu um carrinho para ele, Dante se ajoelhou sem pensar, aceitando a brincadeira com um zelo que não combinava com a imagem pública dele. O contraste entre o homem de aço e o pai gentil me atingiu de um jeito estranho e bonito. Observei demais. E ele percebeu. O olhar dele encontrou o meu, direto, consciente. Eu desviei tão rápido que quase perdi o equilíbrio. — Isso é inveja, Laena? — perguntou com um tom que misturava provocação e algo mais fundo. — Quer montar a pista comigo? — Eu? Não. Sou péssima com qualquer peça que exija coordenação. Pequena, média ou grande — respondi, buscando humor para disfarçar meu nervosismo. Ele inclinou a cabeça, analisando cada nuance do meu rosto. — Gosto quando você fala demais. Meu coração deu um salto. Ele percebeu o efeito e tentou corrigir: — Quero dizer… Lorenzo gosta. O estrago já estava feito. Enquanto eu tentava recuperar a compostura, Lorenzo soltou outro carrinho. O brinquedo bateu levemente no meu joelho. Ao pegá-lo para devolver ao menino, meus dedos tocaram os de Dante. O toque foi rápido, discreto, mas suficientemente firme para transmitir uma descarga silenciosa que subiu pelo meu braço. O olhar dele encontrou o meu de novo, e naquele instante não havia ironia nem distância — havia uma intensidade crua, como se ambos tivéssemos sentido algo e não soubéssemos nomear. Helena surgiu na porta. — Senhor Valverde, sua reunião das dez e trinta já começou. Ele demorou meio segundo a mais para se afastar, como se estivesse retornando de uma linha que não planejava cruzar. — Certo — murmurou. E antes de sair, voltou-se para mim. — Continue assim, Laena. — Assim como? — perguntei, sem disfarçar o nervosismo. O olhar dele percorreu meu rosto — dos olhos até minha boca — antes de voltar para cima. — Instigante. Ele saiu. E deixou para trás uma combustão lenta dentro de mim. *** O resto da manhã fluiu com mais naturalidade. Lorenzo parecia mais à vontade, mais disposto a participar. Brincamos com blocos, carrinhos e livros interativos. Eu já começava a aprender seus sinais silenciosos — o movimento preciso pelas costas da mão quando queria que eu continuasse, a inclinação leve do queixo quando algo o deixava curioso. No café da manhã, comigo e com a governanta, veio o próximo desastre. Ao tentar pegar um pote de bolachas novinho, a superfície lisa da mesa — brilhante e perfeitamente polida — transformou o recipiente numa pista de patinação. Ele deslizou, eu tentei segurar, segurei tarde demais e derrubei algumas bolachas. — Técnica interessante — ouvi atrás de mim. Virei lentamente. Dante estava ali, braços cruzados, expressão controlada demais para esconder a diversão. — Escorregou — declarei, consciente do óbvio. — Percebi. Mas Lorenzo parece reagir bem ao caos controlado. Continue. A palavra “continue” sempre tinha outro significado quando vinha dele. Ou talvez eu estivesse começando a perceber que tudo em Dante Valverde tinha significados escondidos. *** Mais tarde, durante o lanche, inventei de fazer minha “mágica da maçã flutuante”. Joguei a maçã para cima com confiança… mas a gravidade decidiu participar. A fruta bateu no lustre, quicou inesperadamente e caiu direto dentro da jarra de suco. O impacto fez o líquido respingar em várias direções, atingindo a mesa, meu braço e — inevitavelmente — a camisa branca de Dante, que havia aparecido silenciosamente atrás de mim. Meu coração congelou, meus olhos arregalaram e meu cérebro não encontrou palavras. Dante olhou para a camisa, depois para mim, com uma expressão que misturava resignação e incredulidade. — Evite jarras — disse simplesmente, e saiu. Lorenzo deu uma risadinha curta, um som raro e precioso, que me fez sentir que, se eu tivesse arruinado cinco camisas do Dante para ouvir aquilo, teria valido a pena. *** A tarde seguiu com uma leveza inesperada. Lorenzo me puxava pela mão de vez em quando, me guiando para mostrar carrinhos ou peças específicas. Às vezes ele tentava encaixar um bloco no meu dedo, como se fosse brincadeira. Outras vezes se aproximava sem fazer ruído, apenas para ficar ao meu lado. E quase todas as vezes que eu levantava a cabeça, percebia Dante observando de algum canto do corredor. Sempre discreto. Sempre silencioso. Sempre com uma expressão impossível de decifrar. Aquilo não era apenas supervisão. Não era apenas zelo. Havia algo mais profundo, mais instintivo — algo que ele não planejava e claramente não sabia lidar. E eu, muito menos. *** O FIM DO DIA — VERSÃO CORRIGIDA (LAENA DORME NA MANSÃO) Quando o final da tarde chegou, Helena se aproximou carregando uma pequena chave dourada presa a um chaveiro com a letra “L”. — Este é o seu quarto, senhorita Souza — explicou. — Fica no corredor leste, próximo ao quarto de Lorenzo. O senhor Valverde pediu que estivesse pronto para sua estadia. Meu coração bateu diferente. Aquilo era mais real do que qualquer contrato. — Muito obrigada, dona Helena. Eu… não sabia que já estava tudo preparado. — Lorenzo dorme melhor sabendo que você está por perto — disse ela, em um tom inesperadamente afetuoso. Segui pelo corredor indicado e entrei no quarto. O ambiente era amplo, iluminado e arrumado com uma delicadeza que eu não esperava. A cama perfeitamente posta, a janela deixando entrar a luz suave do entardecer, e um pequeno vaso de flores sobre a mesa sugeriam que alguém realmente quis tornar aquele espaço acolhedor para mim. Enquanto guardava minhas poucas roupas no armário, ouvi passos suaves. Ao olhar para trás, vi Lorenzo parado na porta, segurando o carrinho azul contra o peito. — Oi, campeão… — murmurei, me abaixando. — Quer ver o quarto comigo? Ele entrou sem hesitar. Caminhou ao redor da cama, como se estivesse avaliando o espaço para garantir que eu estaria segura ali. Então, com a mesma delicadeza com que alguém oferece algo precioso, colocou o carrinho azul sobre a minha cama. Meus olhos arderam. — Eu posso ficar com ele? — perguntei com a voz baixa. Lorenzo assentiu, simples e profundo, e saiu do quarto com passos pequenos — deixando o carrinho como uma espécie de assinatura silenciosa de aceitação. Mais tarde, enquanto eu arrumava o travesseiro, ouvi passos firmes no corredor. Dante. Ele parou diante da minha porta. Não entrou, não bateu, não anunciou presença. Apenas ficou ali por alguns segundos, como se confirmasse que eu estava instalada, vivendo sob o mesmo teto, parte da casa… e parte da rotina dele. Havia algo estranho, quase tenso, naquele silêncio. Depois, ele se afastou. Deitei na cama abraçando o carrinho que Lorenzo me deu. Pela primeira vez em muito tempo, senti que não estava apenas passando por um lugar… eu pertencia a algum. Eu dormia ali agora, na casa deles e vida. E isso mudava tudo.






