Eu sempre imaginei que chegar ao fundo do poço seria um processo lento, uma descida gradual onde a vida dá sinais claros de que está prestes a piorar. Em vez disso, naquela manhã, ele chegou na forma da síndica parada diante da minha porta, segurando uma notificação como se exibisse um troféu.
— Laena, querida… — disse sem um traço de doçura. — Ou você arruma um emprego hoje, ou amanhã suas coisas estarão na calçada.
Ela balançou a folha como quem abençoa o próprio ego, e eu devolvi um sorriso educado — minha mãe sempre disse que educação é a única coisa que ninguém pode tirar de nós. Depois de fechar a porta, respirei fundo, tentando reunir coragem no mesmo apartamento que mal conseguia pagar. Pensei na minha família, tão longe dali, em outro estado, levando a vida com simplicidade e dignidade. Eles certamente diriam: "Filha, você sempre dá um jeito." E eu queria acreditar nisso, mesmo quando o mundo parecia insistir no contrário.
Meu reflexo no espelho me encarou com uma sinceridade brutal: cabelo preso num coque torto, olheiras revelando noites mal dormidas e aquela expressão de quem está prestes a fazer algo arriscado porque não há alternativas. Tomei um gole de café fraco — tudo naquela manhã parecia fraco, menos a necessidade de resolver alguma coisa — e abri o celular com a determinação de quem se apoia na última chance possível.
Digitei “urgente — morar no trabalho” e, como se o universo estivesse disposto a me dar um fôlego, um anúncio surgiu imediatamente. Um salário acima da média, moradia inclusa, exigência de sigilo e comprometimento… tudo parecia inatingível e ao mesmo tempo tentador, como se fosse uma porta aberta para uma vida que eu jamais imaginaria para mim. O problema é que portas abertas às vezes escondem precipícios. Mesmo assim, liguei antes que a coragem evaporasse.
— Residência Valverde, bom dia — respondeu uma voz feminina tão perfeita que poderia facilmente pertencer a uma locutora de jornal nacional.
O nome soou familiar, mas só descobri por quê no caminho até o ponto de ônibus. Pesquisar “Valverde” na internet era mergulhar num mar de fotos de eventos sofisticados, premiações importantes, salas de reunião com mesas que provavelmente valiam mais que meu antigo carro. Em quase todas as imagens, lá estava ele: Dante Valverde, o bilionário, o homem de expressão séria, presença impecável e olhar capaz de transformar qualquer ambiente numa sala de interrogatório.
Quando cheguei ao endereço indicado, precisei conferir três vezes se estava no lugar certo. A rua era tão silenciosa e elegante que destoava completamente do restante da cidade. A mansão surgia atrás de um portão de ferro ornamentado, tão imponente que dava a impressão de que o próprio portão avaliava se eu deveria entrar.
A governanta apareceu na porta principal antes que eu tivesse tempo de pensar em fugir. Ela era a personificação da eficiência: postura ereta, uniforme impecável, coque firme e expressão serena, mas difícil de decifrar.
— Senhorita Souza? — perguntou com cortesia.
— Eu mesma — respondi, tentando parecer confiante, ainda que minhas pernas não concordassem.
Ela me conduziu pelo interior da casa, e a cada passo eu me sentia mais deslocada. Lustres de cristal refletiam a luz de um jeito que eu jamais tinha visto fora de revistas; tapetes impecáveis absorviam o som dos nossos passos; quadros enormes observavam silenciosamente, como testemunhas permanentes da riqueza daquela família. Apesar de tudo, mantive meu sorriso educado — eu sempre tentava ser cordial, independentemente do cenário.
— O senhor Valverde prefere entrevistar pessoalmente quem vai cuidar do filho — explicou ela com voz pausada. — Lorenzo aparecerá quando se sentir confortável.
Concordei com um aceno e entrei na sala de brinquedos. Ou melhor: no império de brinquedos. Era um ambiente absurdamente organizado, com prateleiras feitas sob medida, blocos separados por cores, carros alinhados milimetricamente e uma pista de corrida tão grande que mais parecia uma peça de museu infantil.
A mochila azul pendurada num gancho muito alto chamou minha atenção. Até para mim, adulta, seria difícil alcançá-la — quem dirá para uma criança pequena. Ajeitei meu sorriso e murmurei, com simpatia:
— Isso não parece muito justo com você, Lorenzo.
Como boa funcionária em potencial, quis resolver o “problema”. Arrastei um banquinho de madeira para debaixo do gancho, subi com cuidado e estiquei o braço. O móvel rangeu de um jeito preocupado, mas eu tentei manter uma conversa amigável com ele — conversar com objetos sempre foi minha maneira de lidar com o nervosismo.
— Só preciso de mais um pouquinho, tá? — disse baixinho.
Os dedos tocaram a alça da mochila, e eu me preparei para descer triunfante. Só que o banquinho não participou desse plano. Ele cedeu. Eu senti meu corpo despencar, a mochila voou para um lado, e a única certeza que tive foi de que aquele mármore enorme seria meu destino final.
Mas não foi.
Um par de mãos firmes me agarrou pela cintura antes que eu tocasse o chão. O impacto do corpo dele contra o meu me deu a sensação exata de que o tempo havia parado. O perfume dele, discreto mas marcante, se misturou com a adrenalina do momento.
Quando abri os olhos, encontrei um rosto que eu já conhecia das fotos: Dante Valverde.
Nada, absolutamente nada nas fotos fazia justiça ao homem real. Ele tinha ombros largos, um terno perfeitamente alinhado, expressão concentrada e um olhar que parecia calibrado para atravessar qualquer defesa humana. Por um instante, esqueci como se respirava.
— Interessante método de organização, senhorita Souza — comentou ele, analisando a situação com um humor tão discreto que poderia ser imaginação minha.
Cortei um sorriso sem graça.
— Eu queria apenas ajudar… deixá-la mais acessível para o Lorenzo — expliquei, mantendo a educação que minha mãe teria orgulho de ver, mesmo num momento tão embaraçoso.
Antes que eu pudesse recuperar a postura, minha bolsa escorregou do ombro, caiu no chão e espalhou seu conteúdo por todos os lados. Carteira, bloco de notas, chaveiro, uma bolacha quebrada e, porque o universo adora me testar, uma calcinha vermelha rendada pousou bem no centro do tapete caríssimo. Eu me ajoelhei rapidamente para recolher tudo, rogando mentalmente para que o chão se abrisse.
Dante se abaixou também, sem alterar a expressão. Pegou a peça íntima com tranquilidade, colocou de volta na bolsa e fechou o zíper como se fosse completamente natural lidar com o caos que eu representava. A elegância dele só aumentou minha vergonha.
Foi quando percebi um par de olhos infantis me observando da porta. Um menininho pequeno, com cabelos escuros levemente bagunçados e um olhar profundo, tímido, carregando um carrinho azul nas mãos. Lorenzo.
— Oi, campeão — falei com doçura, sem me aproximar de repente para não assustá-lo. — Eu sou a Laena. Tudo bem?
Ele não respondeu, apenas deu um passo tímido para dentro da sala e estendeu o carrinho azul na minha direção. Aquele pequeno gesto, tão sincero, aqueceu meu peito de um jeito inesperado.
— Obrigada — murmurei, sorrindo para ele. — É lindo.
Dante se levantou e chamou o filho com um tom surpreendentemente suave.
— Lorenzo, esta é a Laena. Ela veio conhecer você.
O menino segurou o carrinho com mais firmeza e me observou em silêncio. Parecia medir cada movimento meu, como se tentasse entender se eu representava risco ou conforto. Eu mantive meu sorriso gentil, sem apressá-lo. Sabia que crianças tímidas precisavam de tempo para confiar.
Dante então voltou sua atenção para mim, retomando sua postura firme.
— Três regras, senhorita Souza — anunciou. — A primeira: nunca minta para mim. A segunda: nunca faça Lorenzo sentir que é um problema. A terceira…
Ele deu um passo à frente, aproximando-se só o suficiente para que eu percebesse a intensidade do olhar dele.
— Não tropece em mim de novo.
Meu coração acelerou mais do que eu gostaria de admitir.
— E… se eu tropeçar? — perguntei sem pensar, ainda mantendo a cortesia no tom — mesmo que acompanhada de nervosismo.
O olhar dele desceu brevemente para minha boca antes de retornar aos meus olhos, firme e carregado de algo que eu não sabia nomear.
— Então descobrirá que minha paciência tem limites — respondeu, sem elevar a voz, mas deixando claro que havia muito mais por trás daquelas palavras.
Ele se afastou, recuperando o controle impecável da postura.
— Começamos amanhã às sete — finalizou. — Se tiver coragem.
Quando Dante deixou a sala, a mansão pareceu recuperar o ar que havia perdido. Permaneci ali, segurando o carrinho azul que Lorenzo me entregara, tentando entender como a minha manhã tinha se transformado em tudo aquilo: uma entrevista memorável, uma quase queda fatal, um encontro com um homem que poderia facilmente ser uma tempestade disfarçada de CEO e um gesto doce de uma criança que, de algum modo, já tocava o meu coração.
Eu tinha conseguido um emprego. E era claro que minha vida estava prestes a mudar — talvez mais do que eu imaginava.