Guardião da montanha

A descida era mais difícil do que Raia imaginara.

A trilha irregular serpenteava pela encosta da montanha em zigue-zague perigoso e a escuridão caía rápido demais. Cada passo era uma aposta pedras soltas rolavam sob seus pés, e o calor que emanava das fissuras na rocha tornava o ar denso, sufocante.

Mas Raia não parou. Não podia parar.

A cada metro que descia, a realidade do que havia acontecido martelava em sua mente. O dragão a poupara. Por quê? Monstros não tinham misericórdia. Todos os contos, todas as histórias sobre as noivas anteriores terminavam da mesma forma: devoradas, queimadas, destruídas.

Então por que ela ainda estava viva? Talvez não fosse o tipo do dragão, seu pai disse que ela estava gorda, por mais que se achasse magra, talvez fosse isso. O dragão preferia pele e osso.

Não importa, disse a si mesma, agarrando-se a uma pedra para se equilibrar Não pense nisso. Continue andando.

Mas seu corpo começava a dar sinais de cansaço. Dois dias trancada na carruagem, sem comida adequada, sem descanso. Suas pernas tremiam, e a garganta ardia de sede.

Apenas mais um pouco. Apenas até chegar ao sopé da montanha. Depois ela encontraria água, comida, alguma vila...

Um barulho.

Raia congelou.

Não era o vento. Não eram rochas caindo. Era... passos?

Ela se virou bruscamente, esquadrinhando a escuridão acima. Nada. Apenas sombras dançando à luz fraca da lua crescente.

Sua imaginação. Tinha que ser. Ela podia está tendo alucinações por conta da falta de comida e altitude.

Continuou descendo, mais rápido agora, o coração acelerado novamente.

E então tropeçou.

Seu pé escorregou em uma pedra solta, e Raia sentiu o mundo virar enquanto perdia o equilíbrio. Ela tentou se agarrar em algo, qualquer coisa, mas suas mãos encontraram apenas ar.

A queda foi brutal. Seu corpo rolou pela encosta, batendo contra pedras, rasgando o vestido branco que a marcara como oferenda. Dor explodiu em seu ombro, seu joelho, suas costelas.

E então, tudo parou.

Raia estava deitada de costas em uma pequena plataforma rochosa, alguns metros abaixo da trilha. A dor latejava por todo o corpo, mas ela estava viva. Ainda viva.

Tentou se levantar e gemeu. Seu tornozelo direito protestou com uma pontada aguda. Torcido. Talvez pior.

Não, não, não...

Ela não podia ficar presa aqui. Não quando estava tão perto de escapar.

Raia forçou-se a sentar os dentes cerrados contra a dor, e examinou o tornozelo. Estava inchando rapidamente, a pele já começando a ficar arroxeada mesmo sob a luz fraca.

-Perfeito Absolutamente perfeito.

Tentou se levantar mesmo assim, apoiando-se na parede rochosa, mas seu corpo simplesmente não cooperou. A dor era demais. O tornozelo cedia a cada tentativa.

Lágrimas de raiva e desespero queimaram seus olhos. Ela as forçou de volta. Não choraria. Não depois de tudo.

- Precisa de ajuda?

Raia gritou.

A voz viera de lugar nenhum grave, masculina, tão próxima que ela podia jurar que alguém estava ao seu lado. Mas quando olhou ao redor, não viu ninguém.

Quem está aí?

Ela pensou que talvez fosse algum guarda, que queria garantir que ela tivesse, se tornando lanche do Dragão.

Silêncio.

E então, uma figura se destacou das sombras acima.

Um homem.

Ele desceu a encosta com facilidade impossível, como se conhecesse cada pedra cada irregularidade Alto, envolto em roupas escuras que se misturavam à noite. Quando finalmente pisou na mesma plataforma que Raia, a luz da lua revelou seu rosto.

Jovem talvez apenas alguns anos mais velho que ela. Cabelos negros caindo desordenados sobre a testa. Traços angulosos, quase severos. E olhos...

Raia piscou, sem ter certeza se estava vendo direito.

Dourados. Como ouro fundido. Como...

Não. Não podia ser.

-Você está machucada

-Fique longe de mim

Raia recuou o máximo que pôde contra a parede rochosa, ignorando a dor que o movimento causou.

-Quem é você?

- Alguém que vive nessas montanhas

ele respondeu, como se fosse óbvio.

- E você é uma idiota por tentar descer no escuro.

A franqueza brutal da declaração a deixou momentaneamente sem palavras.

- Eu não pedi sua opinião

retrucou ela, erguendo o queixo e com maior orgulho, declarou

- E não preciso de ajuda.

Os olhos dourados desceram para seu tornozelo inchado, depois voltaram para seu rosto. Ele não disse nada, mas a mensagem estava clara

-sim, você precisa. Você irar morrer se não receber ajuda.

- Apenas me deixe em paz Vou... vou encontrar meu caminho.

- Você vai morrer antes de chegar ao sopé Essa trilha fica pior mais abaixo. E de noite, sem luz, sem saber para onde ir... Dois dias no máximo. Talvez menos se os lobos encontrarem você primeiro.

Lobos. Claro. Como se o dragão não fosse suficiente.

-Então o que você sugere?

Raia perguntou, odiando o tom de desespero que infiltrou sua voz.

Ele ficou em silêncio por um longo momento, aqueles olhos estranhos e dourados a estudando como se pudesse ver através dela. Havia algo perturbador naquele olhar. Algo que fazia seu estômago revirar, não de medo, mas de... reconhecimento?

Impossível.

-Há uma fortaleza Não muito longe daqui. Você pode ficar lá até seu pé curar. Depois disso, pode ir para onde quiser.

-Uma fortaleza? Aqui nas Montanhas Flamejantes? Por que alguém construiria isso aqui?

- Por que alguém faria muitas coisas

- E você mora nessa fortaleza?

- Sim.

- Sozinho?

-Sim.

Algo na forma como ele disse aquilo soou... solitário. Mas Raia afastou o pensamento. Ela não podia se dar ao luxo de sentir pena de estranhos misteriosos com olhos dourados impossíveis.

- Como sei que posso confiar em você?

Pela primeira vez, algo que poderia ser humor cruzou o rosto dele. Não era exatamente um sorriso mais como a sombra de um.

-Você não sabe Mas suas opções são limitadas. Confiar em mim ou morrer aqui. Escolha.

A brutalidade honesta daquelas palavras era quase refrescante depois de toda a falsidade de seu pai, das freiras de todos que mentiram para ela a vida inteira.

Raia observou o estranho por mais um momento. Ele não se aproximou, não fez nenhum movimento ameaçador. Apenas esperou, paciente como a própria montanha.

Ela odiava admitir, mas ele estava certo. Suas opções eram realmente limitadas.

- Está bem Mas se você tentar qualquer coisa...

-Você vai o quê? Correr?

- Sou uma Bruxa muito poderosa e Eu vou encontrar uma forma de te fazer se arrepender.

Dessa vez, ele realmente esboçou um sorriso. Pequeno, quase imperceptível, mas estava lá.

- Acredito que sim.

Ele se aproximou então, e Raia se enrijeceu, mas tudo que ele fez foi se abaixar ao seu lado, examinando seu tornozelo com eficiência clínica

- Apenas torcido Nada quebrado. Vai doer por alguns dias.

Seus dedos eram surpreendentemente gentis enquanto apalpavam o ferimento, mas havia algo mais calor. Não o calor normal do corpo humano, mas algo mais intenso, quase febril.

Raia franziu a testa, mas antes que pudesse comentar, ele já estava se levantando.

-Pode andar?

- Não

ela admitiu de má vontade.

Sem pedir permissão, ele se abaixou novamente e, em um movimento fluido a ergueu nos braços como se ela não pesasse nada.

-Ei! Eu não disse que você podia...

-Você prefere rastejar?

ele perguntou, já começando a subir a encosta de volta para a trilha.

Raia abriu a boca para discutir, depois a fechou. Ele tinha razão. Novamente. Isso estava começando a irritá-la.

Então ela simplesmente ficou em silêncio, permitindo-se ser carregada por aquele estranho de olhos dourados que aparecera do nada.

O calor que emanava dele era ainda mais perceptível agora envolvendo-a como um casaco invisível contra o frio da noite que começava a cair. Era... reconfortante. Desconfortavelmente reconfortante.

- Qual é o seu nome?

- Kael.

-Só isso? Sem sobrenome?

-Só isso E você?

- Raia, Só Raia. Eu também não tenho sobrenome.

Bem, tecnicamente ela tinha agora. Brathmor. Mas aquele nome deixava um gosto amargo em sua boca. Ela nunca o usaria.

Kael não disse nada, mas algo em sua expressão mudou sutilmente. Como se aquela informação significasse algo para ele.

Eles continuaram em silêncio. Kael navegava pela trilha irregular com certeza absoluta, mesmo na escuridão. Como se seus pés conhecessem cada pedra, cada curva. Como se ele tivesse feito esse caminho mil vezes.

-Você vive aqui há muito tempo?

Raia perguntou, mais para preencher o silêncio desconfortável do que por verdadeira curiosidade.

-Tempo suficiente.

-Isso não é uma resposta. Você está me levando com muita familiaridade, quantas moças torcem o pé na montanha regulamente?

- Não, primeira vez que pego uma moça nos meus braços, geralmente a moças não são idiotas de virem para a montanha ou tentar descer a montanha a noite.

Raia suspirou. Conversar com ele era como arrancar dentes.

Finalmente, depois do que pareceu uma eternidade, a trilha se abriu mais amplo E lá, recortada contra o céu noturno, estava a fortaleza.

Não era o que Raia esperava. Não era uma ruína decadente ou uma estrutura sombria. Era... impressionante. Muros de pedra negra que pareciam ter sido esculpidos diretamente da montanha. Torres que alcançavam o céu como dedos acusadores. Janelas que brilhavam com luz suave.

Alguém vivia ali. Mantinha aquele lugar.

- É bonita

- Era Há muito tempo.

Antes que ela pudesse perguntar o que ele quis dizer, eles já estavam atravessando o portão principal. Ele a carregou através de corredores amplos, passando por salões vazios que deviam ter sido grandiosos um dia.

Agora, havia apenas silêncio. Eco. Solidão.

Kael finalmente a depositou em um quarto grande, surpreendentemente bem mantido, com uma cama enorme coberta por lençóis limpos e uma lareira onde o fogo já ardia baixo.

- Você pode ficar aqui Há água na jarra, comida na mesa. Se precisar de algo, eu estarei... por perto.

- Espere Raia o chamou antes que ele pudesse sair. Por que está fazendo isso? Por que me ajudar?

Kael parou na soleira da porta, de costas para ela. Por um longo momento, ele não respondeu.

E quando finalmente falou, sua voz estava ainda mais baixa, quase um murmúrio.

- Porque alguém precisa.

E então ele saiu, fechando a porta gentilmente atrás de si, deixando Raia sozinha com suas perguntas e a sensação estranha e persistente de que havia algo importante que ela não estava entendendo.

Algo sobre aqueles olhos dourados.

Algo sobre o calor impossível de seu toque.

Algo sobre a forma como ele a olhara não com lascívia, não com pena, mas com algo que parecia perigosamente próximo de... reconhecimento.

Como se ele a conhecesse.

Como se ele estivesse esperando por ela.

Raia balançou a cabeça, afastando os pensamentos. Estava cansada, machucada e sua mente estava pregando peças.

Amanhã. Amanhã ela descobriria mais sobre Kael e sua fortaleza misteriosa.

Amanhã ela continuaria seu plano de fugir.

Mas por hoje, enquanto se deitava naquela cama estranhamente confortável, em uma fortaleza no coração das Montanhas Flamejantes, Raia permitiu-se um momento de alívio.

Ela estava viva. E isso, por enquanto, era suficiente.

Do lado de fora do quarto, Kael pressionou a testa contra a parede fria de pedra, os olhos fechados, uma mão ainda pressionada contra o peito onde a dor pulsava sem parar.

Ela estava aqui. Em sua casa A poucos metros de distância.

E ela não fazia a menor ideia.

Não sabia que ele era o dragão que a poupara. Não sabia sobre o vínculo que agora os prendia. Não sabia que cada momento que ela passava rejeitando aquela conexão os matava um pouco mais.

-Idiota

Mas dessa vez, ele não tinha certeza se estava falando dela ou de si mesmo.

Talvez ambos.

Kael se afastou da parede e começou a andar pelos corredores vazios de sua fortaleza. Ele não dormiria hoje. Não conseguia. Não com ela tão perto.

E enquanto a lua subia no céu, marcando as horas até o amanhecer, uma verdade se instalou em seu peito como uma pedra pesada:

Ele precisava contar a ela.

Eventualmente.

Antes que fosse tarde demais para ambos.

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