Mundo de ficçãoIniciar sessãoRaia acordou com luz do sol atravessando as janelas altas.
Por um momento um momento precioso e breve ela não se lembrou de onde estava. Não se lembrou do pai que a traíra, do dragão que a poupara, do estranho de olhos dourados que a carregara pela montanha. Então a dor no tornozelo latejou, puxando-a de volta à realidade cruel. Ela gemeu, sentando-se na cama. O quarto era ainda mais impressionante à luz do dia. Paredes de pedra polida, tapeçarias desbotadas mas ainda belas penduradas nas paredes, móveis de madeira escura que deviam ter custado fortunas. Era o quarto de alguém importante. Ou que tinha sido importante. A comida que Kael mencionara estava de fato sobre a mesa pão fresco, queijo, frutas secas, uma jarra de água cristalina. O estômago de Raia roncou violentamente. Ela não comia adequadamente há dias. Esquecendo a dor momentaneamente, arrastou-se até a mesa e devorou tudo com mãos trêmulas. Cada mordida era uma revelação. Real. Fresco. Delicioso. Quando terminou, a culpa veio. Ela não deveria estar confortável aqui. Não deveria aceitar a ajuda de um estranho tão facilmente. Mas seu corpo traíra suas convicções, e agora, com o estômago cheio pela primeira vez em dias, era difícil manter a guarda completamente erguida. Raia olhou para a porta. Fechada, mas não trancada. Testou abriu facilmente. Ele não a prendera. Isso era... surpreendente. Apoiando-se na parede, ela conseguiu mancar até o corredor. Vazio. Silencioso. Apenas o som distante de vento soprando através das torres. - Kael? . Nenhuma resposta. Raia franziu a testa. Ele dissera que estaria "por perto". Onde estava? Começou a explorar, mancando de sala em sala. A fortaleza era enorme muito grande para uma pessoa só. Salões de banquete com mesas longas cobertas por camadas de poeira. Bibliotecas com estantes vazias, apenas alguns livros solitários restando. Uma sala de armas onde espadas e armaduras enferrujadas pendiam das paredes como fantasmas de batalhas esquecidas. Tudo tinha um ar de abandono. De glória passada que ninguém mais se importava em preservar. Exceto pelo quarto onde ela dormira. E, descobriu, alguns outros cômodos que pareciam habitados. Uma cozinha surpreendentemente funcional. Um estúdio com materiais de escrita. Um quarto presumivelmente de Kael cuja porta estava fechada. Mas nenhum sinal do próprio homem. -Onde diabos você está? Foi quando ouviu. Um som baixo, rítmico. Metal contra pedra. Seguiu o som até encontrar uma escada estreita que levava para baixo. Hesitou. Descer com um tornozelo machucado não era inteligente. Mas a curiosidade e algo mais, algo que puxava em seu peito de forma inexplicável a empurrou para frente. A escada terminava em um pátio interno, aberto ao céu. E lá estava Kael. Sem camisa. Raia congelou no último degrau, as palavras morrendo em sua garganta. Ele treinava movimentos fluidos, mortais, com uma espada que refletia a luz do sol. Músculos ondulavam sob pele bronzeada, coberta por uma fina camada de suor. Cicatrizes tantas cicatrizes marcavam seu torso e costas como um mapa de violência sobrevivida. Mas não era isso que a fazia parar de respirar. Era a intensidade. A precisão. A forma como ele se movia como se lutasse contra inimigos invisíveis, cada golpe carregado com raiva contida, frustração, algo que beirava o desespero. Como alguém que precisava desesperadamente descarregar algo que o consumia por dentro. - Vai ficar aí parada me encarando ou tem algo a dizer? - Eu não estava encarando. - Estava E você deveria estar descansando. Seu tornozelo... - Está bem, Eu só... queria explorar. Kael arqueou uma sobrancelha, claramente não acreditando, mas não discutiu. Em vez disso, cravou a espada no chão e pegou uma camisa que estava jogada sobre um banco próximo. Raia tentou e falhou não observar a forma como os músculos de seus ombros se moviam enquanto ele vestia a peça. - Encontrou algo interessante? . &Muitos salões vazios. Muita solidão Este lugar é enorme. Por que você vive aqui sozinho? Algo passou pelo rosto de Kael. Dor? Arrependimento? Foi rápido demais para identificar. - Não é exatamente uma escolha. - Explique. -Não. Você é bastante curiosa A recusa abrupta a irritou. -Por que não? Eu estou presa aqui até meu pé curar. A menor coisa que você pode fazer é... - Presa? A porta do seu quarto não tem tranca. O portão da fortaleza está aberto. Você pode sair quando quiser. Ninguém está te prendendo. - Exceto meu tornozelo torcido e o fato de que lá fora há lobos, uma montanha traiçoeira, e um dragão que por algum motivo não me comeu mas pode mudar de ideia. -O dragão não vai te machucar - Como você sabe? Kael ficou completamente imóvel. Por um momento, Raia pensou que ele fosse responder. Seus lábios se separaram, aqueles olhos dourados tão estranhos, tão impossíveis brilhando com algo intenso. Mas então ele desviou o olhar. -Eu só sei. Confie em mim. -Confiar em você? Eu mal te conheço. Você aparece do nada, me traz para sua fortaleza misteriosa, se recusa a responder perguntas básicas, e espera que eu simplesmente confie? -Sim Porque diferente de todos que te trouxeram até aqui, eu não estou mentindo para você. Não te prometi nada que não possa cumprir. Não te usei como moeda de troca. As palavras atingiram como flechas. Ele estava certo, e ela odiava isso. - Então me diga a verdade Por que você realmente me ajudou? E não me venha com 'porque alguém precisava'. Pessoas não fazem isso. Não sem motivo. Kael a encarou por um longo momento. Havia algo em seus olhos algo faminto, desesperado, mas contido com imenso esforço. -Você não acreditaria se eu contasse - Tente. -Não. Ainda não. A frustração explodiu no peito de Raia. - Por que não? - Porque você vai correr E você não pode. Ainda não. Você vai se matar lá fora. - Então me dê um motivo para ficar além do medo! - EU NÃO POSSO! Kael explodiu, a voz ecoando pelas paredes de pedra. Raia recuou um passo, chocada. Era a primeira vez que ele elevava a voz. A primeira vez que aquela máscara de indiferença rachava completamente. Kael passou a mão pelos cabelos, frustrado, e quando falou novamente, sua voz estava mais controlada, mas pesada de emoção reprimida. - Eu não posso porque se eu te contar agora, você vai me odiar. Vai me temer. E eu... Eu preciso que você fique. Apenas por mais alguns dias. Até seu tornozelo curar. Até você estar forte o suficiente. E então, se ainda quiser ir, eu não vou te impedir. -Mentira -Verdade Eu juro por tudo que tenho. Quando você estiver curada, se quiser partir, eu mesmo te levarei até o sopé da montanha. Te darei suprimentos. Dinheiro. Tudo que precisar para começar de novo. - Por quê? Por que você se importa? A mandíbula de Kael se contraiu. - Porque eu me importo. E isso vai ter que ser suficiente. Por enquanto. Eles ficaram ali parados, a apenas alguns passos de distância, o sol nascente banhando o pátio em luz dourada. Havia algo no ar algo não dito, pesado, importante que Raia não conseguia nomear. E então o momento se quebrou. Kael se afastou, pegando a espada do chão. Você deveria voltar para dentro. O sol do meio-dia aqui é brutal. E você precisa descansar. -Para de me dizer o que fazer Algo que quase era um sorriso puxou o canto dos lábios de Kael. -Faça-me parar. - Ainda sou uma bruxa poderosa, lembra? Dessa vez, ele realmente sorriu. Pequeno, rápido, mas real. E isso transformou completamente seu rosto fazendo-o parecer mais jovem, menos atormentado, quase... bonito. Raia sentiu algo estranho mexer em seu peito e rapidamente o ignorou. - Uma bruxa poderosa que não consegue descer uma montanha sem torcer o tornozelo ele provocou suavemente. - Cale a boca. Kael riu um som baixo, rouco, como se ele não estivesse acostumado a rir. -Venha. Vou te levar de volta. -Eu posso caminhar sozinha. observando-a mancar pateticamente em direção às escadas. Raia o fuzilou com o olhar, mas aceitou seu braço quando ele ofereceu. O calor impossível de seu corpo a envolveu novamente reconfortante de uma forma que deveria ser impossível vindo de alguém que ela mal conhecia. Enquanto ele a ajudava a subir as escadas, Raia não pôde deixar de notar como Kael se movia com ela paciente, gentil, atento a cada hesitação. Tão diferente da frieza que ele projetava. -Kael? - Hm? - Obrigada. Por me ajudar. Mesmo que você seja um idiota misterioso. Ele parou, olhando para ela com aqueles olhos dourados impossíveis. - Você é bem-vinda. Mesmo sendo uma bruxa teimosa. E lá estava novamente aquele quase-sorriso que transformava seu rosto. Raia desviou o olhar primeiro, seu coração batendo de forma estranha. Isso era perigoso. Começar a gostar dele era perigoso. Ela não podia se dar ao luxo de se apegar a ninguém. Não quando sua liberdade ainda a esperava lá fora. Mas enquanto Kael a guiava de volta ao quarto, sua presença sólida e calorosa ao seu lado, Raia não pôde evitar pensar que talvez apenas talvez ficar por alguns dias não seria tão ruim assim. Apenas até seu tornozelo curar. Apenas até ela ser forte o suficiente para seguir em frente. Naquela noite, Raia acordou com um rugido. Distante, ecoando através das montanhas, fazendo as próprias pedras da fortaleza vibrarem. O dragão. Ela se sentou na cama, o coração disparado, e esperou. Esperou pelo som de chamas, de destruição, de morte. Mas nada veio. Apenas aquele rugido solitário longo, melancólico, como um lamento e então silêncio. Raia se levantou, mancando até a janela. A lua cheia banhava as montanhas em prata, e lá no céu, ela o viu. Uma silhueta enorme, asas abertas contra o luar, circulando as torres da fortaleza. O dragão. Mas ele não atacou. Não desceu. Apenas circulou, uma vez, duas, e então voou para longe, desaparecendo nas profundezas da cadeia montanhosa. Estranho. Foi quando Raia percebeu. Ela estava sozinha no quarto, mas podia sentir com certeza absoluta que Kael não estava na fortaleza. Como ela sabia disso? Por que tinha tanta certeza? E por que, observando o dragão desaparecer na noite, ela sentiu uma pontada inexplicável em seu peito? Como se algo importante tivesse se afastado. Como se ela devesse tê-lo seguido. Raia balançou a cabeça, afastando os pensamentos ridículos, e voltou para a cama. Mas o sono demorou a vir. E quando finalmente adormeceu, sonhou com olhos dourados e chamas que não queimavam apenas aqueciam, envolvendo-a em calor impossível que parecia chamar por seu nome.






