Cicatrizes e segredos

Os dias seguintes estabeleceram uma rotina estranha.

Raia acordava com comida fresca já esperando em sua mesa pão ainda morno, frutas que não deveriam existir naquelas montanhas áridas, água cristalina que tinha gosto de nascente pura. Ela nunca via Kael trazendo essas coisas, mas de alguma forma, sempre apareciam.

Durante o dia, ele a evitava.

Não completamente era impossível evitar alguém quando viviam na mesma fortaleza mas ele mantinha distância calculada. Respondia perguntas com monossílabos. Desaparecia por horas em partes da fortaleza que Raia ainda não explorara.

E todas as noites, sem falta, ela acordava com aquele rugido distante.

O dragão, circulando a fortaleza como um guardião solitário, antes de desaparecer nas profundezas das montanhas.

E todas as noites, Kael não estava lá.

No quarto dia, a inquietação estava corroendo Raia por dentro. Seu tornozelo estava melhor ainda doía, mas ela conseguia andar sem mancar tanto. E a solidão, o silêncio, o mistério de tudo aquilo estava deixando-a louca.

Ela precisava de respostas. Ou pelo menos, de companhia que não fosse tão frustrante.

Encontrou Kael na sala de armas, limpando uma espada com movimentos metódicos. A luz da tarde entrava pelas janelas altas, iluminando as partículas de poeira no ar e as cicatrizes em seus antebraços ela nunca havia notado quantas eram.

- Posso entrar ou você vai fugir novamente?

- Não estou fugindo.

- Não? Porque nos últimos três dias você mal ficou no mesmo cômodo que eu por mais de cinco minutos.

- Estou te dando espaço para se recuperar.

-Meu tornozelo está quase curado Então essa desculpa não funciona mais.

Ele finalmente olhou para ela, aqueles olhos dourados impossíveis a avaliando.

- Quer que eu passe mais tempo com você?

- Quero que você pare de agir como se eu tivesse alguma doença contagiosa Estou entediada. Esta fortaleza é enorme, mas vazia. E você é a única pessoa aqui.

Algo passou pelo rosto de Kael.

- Entediada. Claro.

-O que isso significa?

-Nada Se está entediada, há livros na biblioteca. Ou pode explorar os jardins nos fundos. São selvagens, mas ainda têm algumas flores.

- Não quero ler sozinha ou olhar flores sozinha Quero respostas.

- Sobre?

-Sobre você. Sobre este lugar. Sobre por que você vive aqui sozinho. Sobre as cicatrizes

Kael colocou a espada de lado com cuidado deliberado.

-Algumas histórias não têm finais felizes.

- Eu cresci em um orfanato e fui enviada para ser devorada por um dragão. Você acha que eu procuro finais felizes?

Um quase-sorriso puxou o canto de seus lábios. -Ponto justo.

- Então? Me conte algo. Qualquer coisa. Como você acabou aqui? Você tem medo do dragão? Onde você se esconde ? Nunca te vejo, quando o dragão sobrevoa a fortaleza.

Kael ficou em silêncio por tanto tempo que ela pensou que ele não responderia. Mas então ele suspirou, um som pesado, e se recostou na parede.

-Eu nasci aqui. Nesta fortaleza.

Raia piscou, surpresa.

-Sério?

- Sim. Minha família... governava estas terras. Há muito tempo.

-O que aconteceu com eles?

A mandíbula de Kael se contraiu.

- Morreram. Guerra. Doença. Traição. Escolha sua tragédia.

- Me desculpe

Ele deu de ombros, mas havia rigidez em seus ombros que traía a indiferença fingida.

-Foi há muito tempo.

- Quanto tempo?

-Tempo suficiente para que ninguém mais se lembre do nome da minha família.

Havia dor ali, antiga e profunda como raízes de árvore. Raia reconhecia porque carregava sua própria versão a dor de ser esquecida, de não pertencer a ninguém.

-Então você está sozinho aqui desde então?

- Mais ou menos Às vezes há... visitantes. Mas não ficam muito tempo.

- Por causa do dragão?

Ele congelou imperceptivelmente.

-Sim. Por causa do dragão.

- Você já o viu? De perto?

- Sim.

- E? Como ele é? Você não se mijou de medo? Eu quase, mas aceitei que ele me mataria

Kael a olhou por um longo momento, algo indecifável em seus olhos.

- Perigoso. Solitário. Mal-compreendido.

- Mal-compreendido? É um dragão. Ele devora pessoas.

- As histórias que contam sobre ele são... exageradas.

- Ele não matou as noivas anteriores?

Silêncio. Pesado e desconfortável.

- Não sei o que aconteceu com elas Mas sei que ele não as devorou.

- Como você sabe?

-Porque eu conheço ele Melhor do que qualquer um.

Havia algo na forma como ele disse isso algo próximo demais, íntimo demais que fez um arrepio percorrer a espinha de Raia.

-Você fala como se fossem amigos.

Kael soltou uma risada sem humor.

- Não exatamente. Mas... há um entendimento. Entre nós.

-Que tipo de entendimento? O antigo dragão morreu e você criou o filhote dele e é por isso que ele não te mata?

- O tipo que mantém ambos vivos, não coloque coisas na sua cabeça, Por que tantas perguntas sobre o dragão?

- Porque eu deveria estar morta Ele me poupou. E eu não entendo por quê. Todos dizem que ele é um monstro, mas... ele apenas me olhou e foi embora. Por quê?

A intensidade no olhar de Kael aumentou.

- Talvez ele não seja o monstro que todos pensam.

-Ou talvez ele estivesse esperando por algo. Por alguém específico. As histórias falam sobre noivas sendo oferecidas. Talvez ele realmente queira uma noiva. Uma companheira.

Ela não percebeu como Kael ficou completamente imóvel, como seus dedos se cravaram na madeira do banco onde estava sentado.

- E se for verdade? Se ele estiver esperando por alguém específico?

-Então sinto muito por ele Deve ser solitário. Esperar por algo que talvez nunca venha.

Kael fechou os olhos brevemente, como se suas palavras causassem dor física.

- Sim É muito solitário.

O momento se estendeu entre eles, carregado de algo que Raia não conseguia nomear. Ela queria perguntar mais, queria entender a tristeza que via nos olhos dele, mas antes que pudesse, Kael se levantou bruscamente.

- Está ficando tarde. Você deveria descansar.

- Kael

-Raia,Por favor. Não... não pergunte mais sobre ele. Sobre o dragão. Apenas... deixe estar.

-Por quê?

- Porque algumas verdades machucam mais do que mentiras E você já foi machucada o suficiente.

E então ele se foi, deixando Raia sozinha com mais perguntas do que respostas.

Naquela noite, Raia não conseguia dormir.

As palavras de Kael ecoavam em sua mente. A tristeza em seus olhos quando ela falou sobre solidão. A forma como ele falava sobre o dragão com tanta... familiaridade.

Havia algo que ela estava perdendo. Alguma peça do quebra-cabeça que estava bem na sua frente mas que ela não conseguia ver.

O rugido veio mais cedo que o normal ainda não era meia-noite. Raia se levantou, indo até a janela.

E lá estava ele. O dragão.

Mas desta vez, ele não apenas circulou. Ele pousou em uma das torres, tão perto que Raia podia ver cada escama, cada músculo poderoso. As asas se dobraram contra o corpo massivo, e aqueles olhos enormes, dourados, impossíveis se voltaram diretamente para sua janela.

Para ela.

Raia deveria ter sentido medo. Deveria ter recuado. Mas não o fez.

Em vez disso, colocou a mão contra o vidro frio da janela.

E o dragão inclinou a cabeça, como se... reconhecesse o gesto?

Eles ficaram assim por longos minutos garota e monstro, separados apenas por vidro e impossibilidade.

E então, tão subitamente quanto aparecera, ele alçou voo novamente, desaparecendo na noite.

Raia ficou ali parada, coração acelerado, tentando entender o que acabara de acontecer.

Por que o dragão a olhava daquela forma?

Por que havia algo quase... humano naqueles olhos?

E por que, quando ele voou para longe, ela sentiu aquela pontada familiar no peito a mesma que sentia quando Kael se afastava?

Não. Impossível.

Ela estava cansada. Confusa. Imaginando conexões que não existiam.

Mas quando finalmente voltou para a cama, uma última pergunta a assombrava:

Por que Kael nunca estava lá quando o dragão aparecia? Ele mantia o dragão acorrentado e só soltava a meia noite?

Na manhã seguinte, Raia acordou determinada.

Ela seguiria Kael. Descobriria para onde ele ia todas as noites. Porque havia um mistério aqui, e ela estava cansada de ser mantida no escuro.

Encontrou-o no pátio de treinamento novamente, mas desta vez ele não estava sozinho com espadas.

Havia um livro. Velho, com capa de couro desgastado, aberto em uma página com ilustrações que pareciam... mapas?

-O que é isso?

Kael fechou o livro rapidamente.

- Nada importante.

-Mentira. Você estava estudando aquilo com muita atenção.

Ele suspirou.

- É um registro. Da minha família. Sobre... estas terras.

- Posso ver?

- Não.

- Por que não?

- Porque tem informações que você não precisa saber.

-Por que você faz isso? Por que me mantém à distância o tempo todo? Um momento você está sendo relativamente aberto, no próximo você se fecha completamente!

- Porque é mais seguro assim!

- Seguro para quem?

- Para você! Quanto menos você souber, melhor. Quanto mais cedo você partir, mais segura estará.

- Eu não pedi para ser protegida Eu pedi por honestidade.

-E eu não posso dar isso a você Não completamente. Não ainda.

- Quando então? Quando meu tornozelo estiver completamente curado e eu for embora? Quando for tarde demais?

- Sim, Exatamente então.

Eles ficaram ali parados, a tensão entre eles quase tangível. Raia queria gritar, queria sacudi-lo até que ele parasse de falar em enigmas.

Mas havia dor nos olhos dele. Real e profunda. E ela reconhecia aquele tipo de dor.

A dor de alguém que queria desesperadamente algo mas não podia ter.

- Kael, O que você está escondendo de mim?

Ele a olhou por um longo momento, e Raia viu a guerra acontecendo atrás daqueles olhos dourados. Viu o momento em que ele quase cedeu, quase contou.

Mas então ele desviou o olhar.

- Tudo Eu estou escondendo tudo de você.

E com isso, ele saiu, deixando Raia sozinha no pátio com mais perguntas e uma determinação crescente.

Esta noite.

Esta noite ela descobriria a verdade.

Mesmo que tivesse que segui-lo até o fim do mundo para conseguir.

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