Mundo de ficçãoIniciar sessãoRaia passou o resto do dia planejando.
Não era algo complicado ela simplesmente fingiria dormir e então seguiria Kael quando ele inevitavelmente desaparecesse ao anoitecer. Simples. Direto. Exceto que nada envolvendo Kael era simples. Ela o encontrou apenas mais uma vez antes do crepúsculo, na cozinha, preparando o jantar. Raia parou na porta, surpresa. Ela não esperava encontrá-lo fazendo algo tão... doméstico. -Você cozinha? Kael nem se virou da panela que mexia. -Como você acha que sobrevivi aqui sozinho? -Eu não sei. Mágica? O dragão traz comida para você? Dessa vez ele olhou por cima do ombro, uma sobrancelha arqueada. - O dragão tem coisas melhores para fazer do que ser meu criado pessoal. - Como o quê? Circular a fortaleza todas as noites? Ele sabe que a humanos aqui é por isso vem aqui? Kael voltou sua atenção para a comida, mas Raia notou a tensão em seus ombros. - Entre outras coisas. Ela se aproximou, curiosa apesar de si mesma. O que quer que ele estivesse cozinhando cheirava incrivelmente bem ervas, carne, algo que fazia seu estômago roncar. -Isso parece bom - É comestível Sente-se. Estará pronto em breve. Raia obedeceu, observando-o trabalhar. Havia algo hipnótico nos movimentos dele precisos, eficientes, como tudo que ele fazia. Como se cada ação fosse calculada, medida. -Você sempre foi assim? -Assim como? - Tão... controlado. Como se estivesse constantemente se segurando. As mãos de Kael pararam brevemente antes de continuar. - Sim. Por necessidade. - Por que? -Porque quando você perde o controle, pessoas se machucam. Havia peso naquelas palavras. História. Raia queria perguntar mais, mas algo na rigidez de suas costas a fez reconsiderar. O jantar foi servido em silêncio. Kael colocou um prato na frente dela e se sentou do outro lado da mesa o mais longe possível enquanto ainda compartilhavam o mesmo móvel. -Você sempre se senta tão longe? Raia comentou, pegando o garfo. - É mais seguro. - Seguro para quem? Kael finalmente a olhou, e havia algo faminto naqueles olhos dourados. Algo que fez o estômago de Raia revirar de forma que não tinha nada a ver com comida. - Para você Eles comeram em silêncio depois disso. Mas era um silêncio carregado, vibrante de coisas não ditas. Raia podia sentir os olhos dele sobre ela ocasionalmente, sempre desviando quando ela olhava de volta. - Por que você olha para mim assim? -Assim como? - Como se... Como se estivesse memorizando. Como se eu fosse desaparecer. Kael colocou o garfo de lado lentamente. - Talvez você vá. - Eu ainda estou aqui. -Por agora. - Você quer que eu vá embora? . - Não, Mas seria melhor se você fosse. -Melhor para quem? - Para ambos. -Você sempre fala em enigmas ou é só comigo? Um fantasma de sorriso tocou seus lábios. - Principalmente com você. - Por quê? -Porque com você, tudo é mais difícil. Você deveria descansar. Amanhã posso te mostrar a trilha mais segura para descer. Seu tornozelo está quase bom. Lá estava de novo a despedida gentil mas firme. Como se ele estivesse constantemente tentando empurrá-la para longe. - E se eu não quiser ir? as palavras saíram antes que Raia pudesse detê-las. Kael congelou, de costas para ela. -Você não sabe o que está dizendo. - Não? Talvez eu esteja cansada de fugir. Talvez aqui, nesta fortaleza estranha com você e o dragão misterioso, seja o lugar mais seguro que já estive. - Raia, não. -Por que não? — Lá fora não tenho nada. Ninguém. Meu pai me vendeu como gado. O orfanato nunca foi um lar. Eu passei toda minha vida sonhando com liberdade, mas liberdade para quê? Para morrer sozinha em algum lugar? Pelo menos aqui, você me falou que o dragão não me comeria. Ela parou, percebendo o que estava prestes a dizer. Mas era tarde demais. -Aqui o quê? - Aqui eu não estou sozinha Pela primeira vez, eu não estou completamente sozinha. A expressão de Kael se desfez. Toda aquela máscara cuidadosa de indiferença rachando para revelar algo cru por baixo. Dor. Desejo. Desesperança. - Você não entende Eu sou o pior tipo de companhia que você poderia ter. - Deixe eu decidir isso. -Não. Você não pode. Porque se você ficar, se você continuar aqui comigo... ele passou a mão pelos cabelos, frustrado. Vai se arrepender. Vai me odiar. E eu não posso... eu não aguento a ideia de você me odiando. - Por que eu te odiaria? -Porque você não sabe quem eu realmente sou, O que eu sou. - Então me mostre Mostre-me quem você é. Eu não vou correr. -Vai ,Todos correm. - Eu não sou todos. Eles ficaram ali parados, a apenas centímetros um do outro, tão perto que Raia podia sentir o calor impossível emanando dele, podia ver as pequenas falhas naqueles olhos dourados perfeitos. Kael ergueu a mão, hesitante, dedos quase tocando seu rosto antes dele se forçar a recuar. - Eu não posso Não ainda. Apenas... me dê mais alguns dias. E então, se você ainda quiser saber... eu te mostrarei tudo. - Promete? - Prometo Mas você pode não gostar do que descobrir. - Deixe eu decidir isso também. Kael a estudou por um longo momento, e então, tão subitamente quanto o momento começara, ele se afastou. - Boa noite, Raia - Boa noite, Kael E então começou a contar. Esperando. Planejando. Esta noite, ela descobriria pelo menos parte da verdade. Duas horas depois, Raia estava escondida nas sombras perto da ala oeste da fortaleza, onde vira Kael desaparecer mais cedo. Seu coração batia alto enquanto esperava, tentando controlar a respiração. Isso era loucura. Se ele a pegasse, se descobrisse que ela estava espionando... Mas ela precisava saber. Passos. Suaves, mas ela os reconhecia agora o ritmo, o peso. Kael. Raia se pressionou contra a parede, observando através da abertura de uma porta entreaberta. Ele passou por ela sem olhar, movendo-se com propósito através do corredor até uma porta que Raia nunca havia notado antes escondida atrás de uma tapeçaria desbotada. Ela esperou até ele desaparecer através dela antes de se mover, seguindo silenciosamente. A porta levava a uma escada. Não para baixo, como ela esperava, mas para cima. Subindo em espiral pela torre mais alta da fortaleza. Raia seguiu, cada degrau cuidadoso, tentando não fazer barulho. Seu tornozelo protestou, mas ela ignorou. A escada parecia interminável, subindo e subindo até que finalmente terminava em outra porta. Entreaberta. Raia se aproximou lentamente, espreitando através da abertura. E seu coração parou. Era um observatório uma sala circular com teto aberto ao céu noturno, cercada por janelas que ofereciam uma vista de 360 graus das montanhas. Mas não era a sala que a fez congelar. Era Kael. Ele estava no centro, ajoelhado no chão, cabeça jogada para trás como em agonia. E seu corpo... Estava brilhando. Não era imaginação. Luz dourada emanava de sua pele, pulsando como batimento cardíaco, concentrando-se principalmente em suas costas, entre as omoplatas. Como se algo dentro dele quisesse sair. Raia assistiu, fascinada e horrorizada, enquanto ele se contorcia, mãos cravadas no chão de pedra com força que rachava a superfície. E então ele gritou um som que era parte humano, parte algo muito mais primitivo. Algo dracônico. A realização atingiu Raia como um raio. Não. Não podia ser. Mas as evidências estavam todas ali, gritando para ela. Os olhos dourados. O calor impossível. A forma como ele falava do dragão. A forma como nunca estava lá quando o dragão aparecia. - Não O som, pequeno como foi, ecoou na câmara. Kael congelou. Lentamente tão lentamente que parecia doloroso - ele virou a cabeça. E quando seus olhos encontraram os dela através da abertura da porta, Raia viu tudo. O reconhecimento. A resignação. O medo. - Raia Eu te disse para não... Mas ela não esperou para ouvir o resto. Raia correu. Desceu as escadas tão rápido quanto suas pernas permitiram, ignorando a dor no tornozelo, ignorando tudo exceto a necessidade desesperada de colocar distância entre ela e aquela verdade impossível. Kael não a seguiu. Pelo menos, o homem não seguiu. Mas quando Raia chegou ao seu quarto e olhou pela janela, ofegante e tremendo, ela viu. O dragão. Alçando voo da torre mais alta, asas abertas contra o luar, aqueles olhos dourados tão familiares, tão impossíveis brilhando na escuridão. Olhando diretamente para ela. E então ele rugiu não de raiva, não de ameaça, mas de algo que soava perigosamente próximo de dor. De perda. Antes de voar para longe, desaparecendo nas profundezas das montanhas, deixando Raia sozinha com uma verdade que reorganizava tudo. Kael era o dragão. O homem que a salvara, que a alimentara, que olhava para ela como se ela fosse algo precioso... Era o mesmo monstro que deveria tê-la matado. E a pior parte? A parte que a assustava mais do que qualquer outra coisa? Ela ainda não queria ir embora. Mesmo sabendo. Mesmo entendendo. Ela ainda queria ficar. E isso a apavorava mais do que qualquer dragão jamais poderia.






