A viagem da minha vida
A viagem da minha vida
Por: G.K
Capítulo um

“Pensamos em demasia e sentimos muito pouco”. Charlie Chaplin

Ao acordar, eu não sentia a mínima vontade de me levantar, isso é, se essa vontade não estivesse alguns pontos abaixo de zero. Minha cabeça... Eu ainda não encontrei um termo certo, mas essa aqui latejava, como o som de mil tambores da Sapucaí unidos na missão de fazer com que o início do meu dia fosse uma droga! O amargo na minha boca recordava o gosto ácido dos vários e vários copos de todas as bebidas disponíveis no bar na noite passada. Lembrar-me da noite anterior era um incômodo, no final das contas.

Mentalmente esfregando as têmporas, eu repetia: não pense, não pense, não pense, como se fosse um mantra, feito uma criança que apostava consigo mesma quanto tempo passaria sem pensar. Frustrei-me ao perceber que eu não consegui não pensar.

Olhei para o relógio e vi que já era hora de levantar-me e ir à luta. Eu sabia que o dia seria longo, muito, muito chato e cansativo.

Tomei um banho rápido, bebi um gole de café e comi algumas torradas. Eu estava atrasado, não tinha tempo para comer bem, como sempre fazia. Peguei as chaves de casa e do carro e saí apressadamente, afinal, mesmo sendo o chefe, não gostava de incentivar atrasos, tinha que sempre dar o exemplo aos meus funcionários 

Sorri. Entrei no carro, e aquelas dores chatas na cabeça já estavam ali para me lembrar de como seria torturante mais um dia. Suspirei fundo, pisei no acelerador e saí da garagem chique no bairro dos Jardins.            Cheguei no escritório rapidamente. Todos me cumprimentaram, e os que não faziam isso lançavam sorrisos de bom dia para mim. Olhei para a minha secretária e reparei na roupa dela: curta e colada. Ela se chamava Mônica. Tinha grandes olhos verdes curiosos, e sua maquiagem me fazia lembrar da Amy Winehouse. Ela era novata, tinha apenas três meses na empresa. Contratara-a porque havia gostado do seu humor e do seu estilo. Mônica era diferente, sem aquela frescura que toda mulher tinha com roupas, sapatos, etc.

Ela tinha duas tatuagens no braço, uma na perna, uma nas costas, um piercing no nariz e um na orelha. Seu cabelo era cortado de uma forma estranha, metade raspado e a outra não, e as pontinhas do cabelo preto estavam em um tom de cor-de-rosa, coisa que eu achava completamente estranho pelo fato de ela odiar essa cor, fato que a mesma fizera questão de contar na entrevista.

Mas o que eu mais gostava nela era o sorriso, que era sempre gentil e transmitia sinceridade.

— Cadê o motoboy, Mônica?

— Bom dia para você também. — Sim, ela era atrevida demais, e eu gostava disso. — Ele está no banheiro! Quer que eu vá lá interromper o que ele está fazendo? — Um sorriso brincalhão surgiu em seus lábios, e eu sorri de volta.

— Bom dia! Não, não precisa, peça apenas para ele vir na minha sala quando sair.

— Sim, Senhor, pode deixar! — Ela mandou um beijo no ar e me deu uma piscadinha.

Sorri para ela, um sorriso que somente ela conseguia me fazer dar.

Levantei-me e caminhei pela minha sala. Parei de frente para a janela, que era grande, ia do chão até o teto. Eu nunca tinha parado para apreciar essa vista, e hoje não sei por que parecia como uma obra divina. Eu conseguia ver São Paulo toda dali de cima. Perguntei-me por que nunca tinha reparado. Por que eu nunca havia parado para admirá-la? Talvez a falta de tempo, a correria do dia a dia, ou talvez pelo fato de que nunca me havia me interessado por fazer isso.

Batidas suaves na porta me tiraram dos meus pensamentos. Passos suaves chegaram perto de mim e senti uma respiração ofegante sobre minhas costas.

— Bom dia, Senhor! No que posso ajudá-lo?       

Esse era o José, meu motoboy. escolheu tinha o escolhido porque ele era muito competente e porque o coitado estava desesperado por emprego. A filha estivera doente na época, e ele, quase falido. José tinha trinta e oito anos, era negro, magro, tinha mais ou menos um e noventa de altura, cabelos castanhos e um sorriso dócil. Eu tinha uma grande admiração por ele, pois nunca havia pensado em desistir, apesar da vida difícil. Uma vez ele me dissera que desconhecia a palavra DESISTIR, que nunca fizera parte da vida dele e nunca faria. José era aquele tipo de pessoa que encarava a vida sempre de bom humor, munido de sorrisos e gentilezas, pois achava que era assim que o mundo deveria ser... gentil.

— Bom dia! Preciso que você vá ao banco, José.

Eu sabia cada um dos nomes dos meus funcionários, principalmente os que eu tinha contato mais direto. Achava que isso fazia toda a diferença na empresa, pois quando o chefe sabia seu nome e te tratava com respeito, o trabalho fluía melhor, assim, as demissões eram quase sempre nulas e os funcionários trabalhavam com gosto.

— Pague umas contas para mim — acrescentei —, vá ao cartório, passe na minha mãe e deixe os documentos para ela assinar. Se ela estiver em casa, pede para ela assinar e me traga os papéis aqui; se ela não estiver, deixe com algum empregado e avise que assim que ela chegar, é para assinar e me m****r, preciso deles urgente.

— Algo mais, Senhor? — José torcia os dedos.

Eu sorri de canto. Sabia muito bem o que aquele velho amigo queria, sabia também que ele não iria pedir nada. Ele não era o tipo de pessoa que pedia as coisas, e isso me incomodava um pouco.

— Sim. Quando fizer tudo isso, tire o restante do dia de folga.

— Desculpe, como?

— Tire o restante do dia de folga, escutou bem? — repeti, sorrindo.

— Tem certeza disso, Senhor?

— Claro, José. Hoje é o aniversário da sua filha, não é?  

— Sim, Senhor.

— E você está aí, nervoso e torcendo os dedos, louco para ficar com ela, não é mesmo?

— Sim, mas é que eu...

— Então passe o dia com ela e se divirtam muito, pode ser?

— Claro. — Ele sorria tanto, que pensei que sua arcada dentaria fosse pular para fora e cair aos meus pés. — Obrigado! Muito obrigado, Senhor!

— De nada. Tem um envelope com a Mônica para você. Pegue ele, é um pequeno presente para a sua filha.

— Mas...

— Mas nada, José, ela merece, você merece. Preciso ir, tenho uma reunião com os velhos da diretoria, já sabe, não é? Um bando de homens chatos, grossos, gordos e insuportáveis. Não sei onde papai estava com a cabeça de pôr eles no lugar que eles ocupam, preferia sair com você agora.         

— Se quiser, vai ser muito bem-vindo na minha humilde casa, Senhor!

— Infelizmente não posso, mas obrigado pelo convite, quem sabe mais tarde eu não passe por lá?

Ele sorriu e balançou a cabeça. Sorri de volta. Era por esses momentos que eu gostava de trabalhar nessa empresa, era de ver o ar de felicidade dos meus amigos, aqueles que trabalhavam comigo. Chicken Chess estava no seu melhor momento. Com tantas franquias espalhadas por todo o Brasil, a Chicken Chess agora atendia em Nova York, Los Angeles, Miami e São Francisco. O ambiente de trabalho era excelente. Eu gostava de encorajar meus funcionários, de mimá-los, fazia bem a mim ver eles bem.

Escutei José contente contando para Mônica que ele teria o dia de folga e dos seus planos com a filha de nove anos.

Peguei meu paletó, vesti-o e fui até a sala de reunião. Claro que, como sempre, eu fui o primeiro a chegar. Pensando bem, eu poderia ter tomado café da manhã sossegado. Eu estava literalmente morrendo de fome.

Sentei e esperei longos cinco minutos, longo porque minha mente sempre ia para o passado, relembrava minha infância. Está certo, nunca faltou nada de material para mim, papai havia me dado tudo o que uma criança e um adolescente poderiam querer; mas aquele carinho, aquele amor, aqueles contatos especiais entre pais e filho deixaram muito a desejar.

Lembrava-me de mamãe e papai sempre com pressa, sempre com algo mais importante para fazer do que ficar comigo. Eu crescera cercado de pessoas estranhas, no meio dos empregados, das babás, isolado da família, triste e sozinho. Eu sempre soubera que aquelas atitudes eram para ter o que eu tinha hoje, sempre soubera que eles estiveram trabalhando duro para me dar um futuro digno.

Fui tirado dos pensamentos sendo sacudido bruscamente por um cara gordo. Bufei de raiva.

— Não está me escutando, não é, John?

— Desculpe-me, Senhor Fabrício, estava pensando. — Dei um sorriso amarelo e me remexi no paletó.

— Pensando em alguma garota? — Ele sorriu maliciosamente, segurando a pança, de tanto que ria.

— Não, não, na vida somente. Como o senhor está?

Por que ele tinha que ser sempre nojento e asqueroso? Ele acreditando que eu estava pensando em uma mulher me dava nojo.

— Bem, meu jovem.

O Senhor Fabrício tinha por volta de sessenta anos, era gordo, muito gordo e tinha bigode branco, os quais ele fazia questão de alisar e enrolar as pontas para cima. Usava óculos, tinha grandes olhos azuis, pele muito branca, pela falta de sol, e o pouco cabelo de sua cabeça era branco.

Assim que cumprimentei cada um dos sócios da empresa, nos sentamos e começamos mais uma reunião tediosa. Era muita coisa que eu detestava, não sei por que havia decidido assumir a empresa quando papai morrera. Era tudo um saco. Sempre tivera responsabilidade com ela, e isso estava me deixando muito, mas muito chateado. Deixava de viver para tomar conta da empresa; se bem que trabalhar com a equipe que eu tinha montado me dava orgulho. Porém, às vezes eu parecia uma criança birrenta. Eu cruzava os braços e apenas escutava, no final, balançava a cabeça, concordando com eles.

Nossa empresa era uma grande rede de fast food. Havíamos começado com alguns lanches de galinha e uniformes xadrezes, daí o nome Chicken Chess; mas com o passar do tempo fui pegando nojo, e desde então, começara a ser vegetariano e passara a comer somente coisas saudáveis.

— Isso seria ótimo! — Fabrício gritou, socando a mesa. — É a solução de nossos problemas!

— Muito bem, Senhores, então é isso o que será feito. Obrigado pela reunião, foi ótima, devo dizer que também foi muito esclarecedora. Podem ficar sossegados, que daremos um jeito em tudo e colocarei em prática cada opinião daqui. Agora, se me dão licença, eu tenho umas coisas para resolver.

Levantei-me, ajeitei meu paletó, dei um sorriso cordial e saí. Fui para a minha sala.

Minha cabeça doía muito. Eu precisava de silêncio, aquele tipo de silêncio que não era encontrado por lá, porque eles pareciam mais um bando de maritacas berrando ao meu ouvido.

Sentei-me na minha cadeira, coloquei os pés em cima da mesa e fui me afundando na cadeira. Hum... era confortável, acho que daria para tirar um cochilo antes dos meus outros compromissos.

Um sorriso foi se formando no meu rosto. Talvez com esse cochilo, essa dor chata de cabeça passe. Soltei um longo suspiro.

Estava quase cochilando quando a cadeira quebrou e eu caí. Comecei a rir histericamente e fiquei ali, pensando na vida, em como poderia ter sido diferente; em como as coisas seriam se meus pais tivessem me dado mais atenção; ou em como seria se eu não tivesse assumido este cargo, o mais importante da empresa; em como seria se eu tivesse estudado Artes Cênicas, como queria, em vez de Administração; em como seria diferente se eu tivesse casado, com filhos, morando em uma casa grande com jardim e piscina, é...

Nisso entrou Mônica, me tirando totalmente dos meus pensamentos.

— Está tudo bem, John? — Ela perguntou, agachando-se perto de mim.

— Sim, sim, está.

Eu entortei a cabeça, olhei os pés dela e fui subindo e subindo. Ela provavelmente percebeu, e logo se levantou e me deu a mão.

— Safado você, hein! Vem, eu te ajudo. Se alguém entra aqui e te vê assim, já sabe!

— Sim, eu sei, pânico geral. — Sorri, e logo me levantei com a ajuda dela. — Obrigado — disse, passando a mão no meu paletó, e em seguida, nos cabelos. — Não sei por que todos me tratam assim. Odeio puxa-saco, apesar de ser o chefe.

— E quem gosta? — Ela disse, me dando um daqueles sorrisos que eu gostava tanto e revirando os olhos ao perceber que eu ainda olhava para as suas pernas. — Sua agenda de hoje... — Ela tinha que ter quebrado a magia do momento ao me dar mais trabalho, não é mesmo? — Você tem aquele médico, depois, tem uma reunião, tem que vistoriar uma lanchonete... ela está com suspeita de ratos na cozinha, e como você gosta de tomar conta disso de pertinho...

            — Desmarca a reunião de hoje e passa para amanhã, às onze horas, tudo bem?

Ok. Mais alguma coisa?

— Sim, a lanchonete para depois de amanhã. Depois que fizer isso, tira o resto do dia de folga, ok?

— Tem certeza?      

— Sim, absoluta.

— Obrigada, então.

— De nada.

— Vou fazer compras hoje. — Sorriu.

— Você fazendo compras? Que milagre é esse?

— Sim, namorado novo, vou comprar uns lingeries. — Piscadinha.

— Maldade a sua me falar isso, Mônica.

— Sabe, John, daquelas bem provocantes. — Ela mordeu o lábio, afastou o cabelo e estufou o peito.

Acho que ela tinha perdido a noção do perigo.

— Mônica, Mônica... — Sorri e balancei a cabeça de modo divertido, o sorriso que somente ela conseguia arrancar de mim. — Tenho que ir, senão me atraso. Até amanhã e boas compras. E se quiser, não sei, talvez, assim, se quiser uma opinião masculina... pode me enviar algumas fotos de lingerie, gostaria muitíssimo de te ajudar. — Piscadinha.

— John! — Ela exclamou, balançando a cabeça e sorrindo.

              Peguei as chaves do carro e parti. Estava nervoso, suava frio, estava com medo do que o destino reservava a mim, acho que eu não estava pronto ainda.

Cheguei rápido na clínica, tirei o paletó, dei uma ajeitada no cabelo e, com o coração aos pulos, gritando, entrei.

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