Capítulo três - Um nome de Anjo

Capítulo três – Um nome de anjo

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“Eles sabem que o Papai Noel está a caminho

Ele encheu seu trenó de muitos doces e brinquedos

E todas as crianças vão ficar espiando

Para ver se as renas sabem mesmo voar”

(Música: The Christmas Song – Intérprete: Justin Bieber FEAT Usher)

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            Ainda chovia muito quando saímos, o que fez com que o trajeto, para mim, ficasse ainda mais tenso. Eu mal dirigia desde o acidente, não me sentia mais à vontade em um carro, especialmente se fosse à noite. A chuva embaçava mais a visão, fazendo com que meu medo aumentasse.

            O médico pareceu ter percebido isso.

            — Você parece tensa. Está se sentindo bem?

            — Ah, é que... Dificilmente tenho saído à noite. Na verdade, tem quase um ano que não faço isso. Desde que sofri o acidente.

            Percebi que o semblante dele tornou-se mais sério.

            — Desculpa, não queria te lembrar de algo assim.

            — Você foi o médico que me atendeu naquela noite. É meio difícil não me lembrar disso estando em sua companhia.

            — Bem, espero então só te lembrar da parte boa, que foi você ter sobrevivido.

            Balancei a cabeça, pensando no que ele pensaria se eu dissesse que não queria ter sobrevivido. E que, naquele mesmo dia, antes de reencontrá-lo, eu havia tentado dar um fim à minha própria vida.

Para a minha sorte – ou azar, não sei – ele decidiu mudar de assunto.

            — Moramos em bairros vizinhos, mas não nos conhecíamos antes. Digo, tirando o que você contou, do hospital. Você é nova na cidade?

            — Estou aqui há pouco mais de um ano. Mas realmente não saio muito. Moro sozinha, trabalho em casa e digamos que ainda não tenha uma vida social estruturada por aqui. — Nem desestruturada, para falar a verdade. Vida social alguma. Eu não tinha um mísero amigo naquele município. Muito mal alguns vizinhos e conhecidos aos quais cumprimentava nas raras vezes em que saía à rua e os encontrava, nada além disso.

            — Entendo. E no que você trabalha?

            Eu não gostava de perguntas pessoais. Soavam como uma aproximação, algo que eu, definitivamente, não estava procurando. Porém, fui educada o suficiente para responder:

            — Sou tradutora de inglês e espanhol.

            — Interessante. E o que você traduz?

            — Geralmente livros. Às vezes algumas teses, trabalhos acadêmicos, artigos... Mas, principalmente, livros.

            — Deve ser interessante traduzir livros de outras pessoas. Mas... nunca pensou em escrever o seu?

            — Ah, não. Acho que não teria coisas ou ideias interessantes para colocar em uma história.

            — Já eu, acho que todos temos. Bem, não que eu já tenha escrito um livro. No máximo alguns artigos da minha área. Mas... Quem sabe algum dia? Não é algo que eu descarte.

            — Com o trabalho que tem, você deve ter boas histórias para contar.

            — Algumas ruins também. Mas... faz parte da vida.

            Claro... Fazia parte da vida. Era uma filosofia muito fácil de se pregar quando as vidas em questão não eram de pessoas próximas e queridas.

            Ele continuou a falar, alternando entre assuntos mais triviais. A chuva ainda caía forte, mas minha angústia foi aos poucos reduzindo devido à distração da conversa. Ele tinha um tom de voz tranquilo e um jeito simpático que fazia qualquer assunto irrelevante parecer agradável de se conversar. Pelo canto dos olhos, fiz várias vezes a observação mental de que ele era um homem bem bonito, mas isso, nesse momento da minha vida, não tinha qualquer relevância.

            Não demorou muito para chegarmos à minha casa. Ele parou o carro na calçada, o mais próximo possível do meu portão, para que eu me molhasse o mínimo enquanto entrava. E então, sugeriu:

            — Já pega a chave de casa antes de sair do carro para não perder tempo na chuva.

            — Ah, não trouxe a chave. Não se preocupe, o portão não está trancado.

            — Nossa! Sei que moramos em uma cidade tranquila, mas... é bom não abusar. Passou o dia inteiro fora e largou a casa aberta?

            — Na verdade, eu não achei que fosse voltar.

            Quando o olhei e vi o espanto nos olhos dele, cheguei a me arrepender de minha sinceridade. Aquilo, definitivamente, não lhe dizia respeito.

            — Digo... não achei que fosse voltar tão tarde. Obrigada pela carona, doutor.

            Preparei-me para abrir a porta, mas ele colocou a mão sobre a minha, me impedindo de sair. A sensação me remeteu ao dia do acidente, em que tinha segurado a mão dele enquanto implorava para que salvasse o meu bebê. Mas, ao olhá-lo, diferente da sensação de tristeza daquela lembrança, senti novamente paz diante daqueles olhos.

            — Eu me lembro de você, Vanessa. — A frase tinha um tom de confissão.

            E, de fato, foi uma surpresa.

            — Não, é claro que não. Você atende dezenas de pessoas todos os dias. Que motivos teria para se lembrar de alguém que só viu uma vez?

            — Os seus olhos e aquele seu pedido ficaram gravados em mim. Na verdade, eu estou desde que te reencontrei tentando encontrar uma brecha para dizer isso: eu realmente sinto muito pelo seu marido e seu filho.

            Um nó crescente na garganta me tirou a voz por alguns instantes. Ele não tinha o que sentir, não era culpa dele. Mas havia tanta sinceridade naquela frase que me senti subitamente reconfortada.

            — Obrigada, doutor.

            — Meu nome é Gabriel. Não precisa ficar me chamando de doutor.

            Claro, ele só podia, mesmo, ter um nome de anjo.

            — Obrigada, Gabriel.

            Trocamos um rápido sorriso, antes de soltarmos as mãos e eu finalmente sair do carro. Tentando ser rápida para me molhar o mínimo possível, enfiei a mão entre as frestas de madeira do portão e abri o trinco. Dei mais uma rápida olhada para o carro e acenei brevemente, antes de fechar o portão atrás de mim e correr para a varanda coberta. Abri a porta da sala e deixei-me cair sentada no tapete, pouco me importando com o fato de o estar encharcando.

            Ali, sozinha, permiti-me chorar um pouco. Aquele tinha sido um dia bem cheio, e os sentimentos que me acometiam eram tão fortes quanto desconexos.

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