Capítulo 03 - A outra face

Senti os primeiros lampejos de consciência. Em seguida, uma dor abrasadora se espalhou por cada parte da minha cabeça. Meus lábios estavam rachados e ressecados. A língua colava no céu da boca, junto à sensação horrível de ter poeira por todas as minhas vias. Minha mente estava em torpor. Grogue e submersa em uma mistura de dor física e sono incontrolavelmente pesado.

Minhas pálpebras tremiam relutantes em obedecer aos comandos emitidos pelo meu cérebro. Com muito esforço, abri os olhos, mas tive de fechá-los, no mesmo instante. Não parecia ser possível controlar o peso da sonolência que insistiam em mantê-los assim, afogados da inércia de um pesadelo. Os músculos que compunham minha estrutura corporal pareciam moles demais para sustentar todo o meu peso. Podia senti-los dormentes sob a pele.

Que merda é essa? O que estava acontecendo?

Acorda! — Ordenei ao meu corpo com mais intensidade. Insisti um pouco mais para que meus olhos se mantivessem abertos e chacoalhei a cabeça, tentando dispersar o sono.

— Água! — O meu corpo praticamente implorava.

Levando a mão à têmpora, massageando-a e forçando meu corpo a se erguer, sentei sobre a superfície desconfortável que havia embaixo de mim.

Antes mesmo que meu cérebro pudesse processar qualquer tipo de informação, o meu estômago foi atacado por uma sensação de desconforto e náusea. Fui forçada a levar as mãos à altura do abdômen, numa tentativa fracassada de amenizar a dor.

A minha cabeça doía e os tímpanos pareciam ser atacados por marteladas incessantes, fazendo com que o mundo girasse, sem foco em minha visão. Tudo não passava de meros borrões. Pisquei algumas vezes, e aos poucos minha mente trabalhou para que o cérebro processasse informação suficiente, a fim de que soubesse que não estava na segurança da minha casa. Com isso, o desespero contaminou instantaneamente o meu sistema ao constatar o que havia ao meu redor.

Desejei desesperadamente que minha mente despertasse daquele pesadelo, mas nada aconteceu. Ainda estava exatamente no mesmo lugar. Presa em uma cela, sozinha como um rato engaiolado de laboratório.

Estudei o teto alto e branco, me deparando com a lâmpada, cuja luz emitida era fraca e acinzentada, e me causava mal estar. Atônita, analisei, em seguida, as duas paredes de vidro puro, grosso, aparentemente muito resistente. Uma cercava a minha frente, e a outra a lateral, isso me permitia ter contato visual com o largo corredor que ladeava o exterior da cela. As outras duas paredes eram brancas, feitas de concreto, e em uma delas havia apenas uma mísera saída de ar coberta por uma tampa metálica gradeada, grande o bastante para que apenas um gato passasse por ali.

Meu corpo paralisou com a sensação de aprisionamento e impotência.

Não havia janelas à vista.

Nenhuma porta.

Nenhuma saída. Desesperei-me mais ainda.

O que fazer numa situação dessas? Meu coração batia pequeno e doloroso dentro do peito. Parecia estar prestes a explodir. Estava tinha sido sequestrada e presa, e essa realidade não parecia fazer nenhum sentido.

Tratei de engoli o nó que se formou em minha garganta e pulei para fora da cama, a adrenalina falando mais alto ao fincar os dois pés calçados por botas de couro no chão, e corri com urgência em direção do vidro, tropeçando em algo metálico disposto ao lado do pé da cama, assim que achei ter visto uma silhueta quase fora do meu campo de visão.

Bati no vidro algumas vezes, tentando chamar sua atenção.

─ Tire-me daqui! ─ Gritei a plenos pulmões.

Tinha esperanças que o vidro se rompesse e caísse aos meus pés, mas mesmo com toda a violência dos golpes, ele sequer, saiu do lugar.

Embora minha voz soasse seca e rouca, o som ecoava abafadamente através dos vidros. O homem foi capaz de me ouvir, porque ele se moveu cautelosamente, virando-se em minha direção, entrando completamente no meu campo de visão. Pausei por um instante, encarando-o à distância.

O sujeito vestia um sobretudo preto, aberto, cujo comprimento ia até a altura dos joelhos. Blusa marrom de gola redonda e calça preta jeans. Nos pés botas escuras de cano alto. Seus cabelos eram quase raspados, cerrados no couro-cabeludo. A pele era amarronzada num tom quase chocolate. Sobrancelhas finas e alongadas moldavam os olhos castanhos estreitos que se enviesaram ao se fixarem sobre mim.

─ Solte-me! ─ Pedi, e desta vez eu não havia gritado.

Meu corpo congelou instintivamente, quando o homem encarou friamente os meus olhos. Em seguida, levou a ponta do dedo da mão à orelha. Seus lábios se moveram calmante por um breve momento. Ele estava se comunicando com alguém.

O que ele estava falando? Comecei a me exasperar outra vez, porque o homem pareceu ignorar o meu desespero ao virar as costas e sair novamente do meu campo de visão.

─ O-o que? ─ Sussurrei para mim mesmo, incrédula. ─ Não! – Gritei novamente, apavorada, temendo ficar sozinha ali outra vez.

Maldito! Maldito vidro!

Fui capaz de ouvir apenas o som dos seus passos ecoando fracamente pelo chão, enquanto se distanciava cada vez mais de mim.

─ Você não pode me deixar aqui! ─ Gritei revoltada, estapeando o vidro, completamente horrorizada por ele não expressar nenhum pingo de piedade. ─ Pelo menos me diga, o que está acontecendo?

Um estrondo arrastado e abafado pelo vidro preencheu o ambiente de repente. Um silêncio absoluto recaiu sobre o espaço, sucedendo do barulho que revirou o meu estômago.

Nada. Nenhuma resposta.

Como isso aconteceu? Como vim parar neste lugar? Minha mente estava entrando em colapso.

Virei de costas, ficando contra o vidro, levando as mãos às têmporas ao tentar me situar sobre os últimos fatos, mas tudo não passava de meros borrões desconexos. Condenei a minha cabeça por ser tão danificada.

Fui tomada por um mal-estar repentino. O meu estômago deu um nó, revirando-se como um ninho de cobras ao contrair desconfortavelmente, enquanto minha garganta se apertava involuntariamente. Senti um líquido amargo percorrer minhas entranhas, cortando garganta afora, e então me curvei para frente, pressionando o meu braço contra o abdômen ao vomitar o líquido viscoso e amargo.

Levou algum tempo para que a náusea cessasse, mas quando aconteceu, afastei-me da repugnante poça azeda, que se formara no chão e escorei as costas no vidro outra vez. Meu corpo estava fraco e fatigado, então não demorou muito para que minhas pernas começassem a fraquejar, cedendo abatidamente sobre o chão.

Meu corpo estava desidratado e não havia nada que pudesse fazer. O sentimento de impotência me abateu, e não havia ninguém que pudesse me ajudar.

Não fazia a menor ideia de quanto tempo havia ficado inconsciente, e tentar decifrar qualquer coisa estava me desgastando demais. A minha vulnerabilidade estava me destruindo. Encolhi as pernas diante de meu corpo e envolvi meus joelhos com os braços. Os meus instintos se alarmaram ao começar a cogitar sobre o que poderia estar acontecendo.

Tráfico de mulheres?

Quem estiver por trás disso me venderiam para o mercado de prostituição... Eu me crucificava com tantas possibilidades. Como havia me permitido cair em uma dessas...

Estava ferrada! Sempre chegava a essa conclusão.

Eles vão precisar me tirar daqui em algum momento. — Divagava sozinha ao erguer a cabeça, vasculhando com o olhar o lugar que não era muito maior do que um quarto pequeno, enquanto considerava alguma forma de tentar escapar.

Encarei com repulsa e rancor à bandeja bagunçada, que havia sido posta ao lado da minha cama, servida de um copo virado de suco com coloração amarelada viva derramada por cima da bandeja, e sobre um pequeno prato metálico havia uma maçã, e um sanduiche embrulhado em um guardanapo.

─ Malditos ... ─ Gritei enraivecida, empurrando brutalmente a bandeja contra a parede de gesso.

O copo de vidro estilhaçou-se contra a parede, espalhando cacos por todos os cantos. Sobressaltei-me ao ouvir um baque metálico ecoar, onde deduzi ser o final do corredor, e a minha espinha enrijeceu-se imediatamente, forçando-me a ficar de pé o mais rápido que pude, usando o vidro como base de apoio.

Ouvi o ruído distante de passos contra o chão frio, cada vez mais próximo. Alguém estava vindo e o medo me fez estagnar onde estava. Então, uma silhueta masculina entrou em meu campo de visão. À medida que se aproximava, o rosto do desconhecido foi tomando forma, e quando parou diante do vidro, encarou-me diretamente.

Pisquei diversas vezes, incrédula, paralisada e assustada, incapaz de me pronunciar verbalmente, pois as lembranças dos malditos olhos verdes vieram como um soco na minha cabeça.

Filho da puta! — Uma voz na minha cabeça esbravejou furiosamente.

─ Você... ─ sussurrei incrédula.

A armadilha... A nuvem de confusão começou a se desfazer em minha cabeça, tudo estava começando a entrar em foco.

Maldito!

Ele vestia uma camisa preta de lã lisa de mangas compridas e enroladas até a altura do antebraço, o que deixava em evidência a seu porte físico forte. Calça jeans escura, e botas de cano curto.

Os finos lábios do desconhecido curvaram-se em um riso irônico, e os meus sentidos começaram a voltar, e impulsivamente bati com violência no vidro.

─ Solte-me! ─ Ordenei no grito, ainda socando o vidro. – Me tire daqui!

Não fiz questão nenhuma de encará-lo, estava desesperada demais para tentar me acalmar.

─ Pare já com isso! ─ Ralhou em resposta, lançando-me um olhar intimidador.

Não permiti que meu corpo se amedrontasse com a ordem. Eu só queria desesperadamente sair desse lugar. Eles não tinham o direito de me trancafiar, e ele não fazia nada além de assistir ao meu desespero.

─ O que você quer? ─ Inquiri, enquanto as lágrimas escorriam pelas minhas bochechas. ─ O que você quer? ─ esbravejei outra vez, a minha mão deslizando sem esperança pelo vidro. ─ Por favor, me tire daqui! ─ Implorei, pela última vez, quando uma lágrima apavorada escorreu.

A glote dele subiu e desceu, mas seu olhar continuava incisivo.

─ Apenas, cala a boca. ─ Latiu, puxando um pouco a blusa para cima, fazendo questão de exibir à pistola guardada no cós da calça.

Percebi o maxilar do homem se tencionar, e seu olhar pesar ainda mais duramente sobre mim. Engoli em seco, sacodindo a cabeça copiosamente, calando-me imediatamente, surpresa com a atitude perversa dele, e me afastei, dando alguns passos para trás. Seus olhos se estreitaram, ostentando um brilho cruel de vitória. Ele inclinou um pouco a cabeça e sorriu de lado, acenando em concordância, de modo que desse a entender que eu estava fazendo a escolha certa.

─ Quanta ironia... – ele divagou depois de um tempo, exibindo um riso sarcástico antes de abaixando o olhar.

Senti vontade de lhe perguntar qual era a ironia, mas abstive-me com a postura rígida dele.

─ Ernest! ─ Chamou ele, ao homem que eu não tinha reparado que estava logo atrás do desconhecido. ─ Se ela der um passo, não hesite em atirar! ─ Ordenou ao me lançar um olhar intimidante.

Ernest sacou a pistola do seu coldre e a preparou, empunhando-a diante do corpo.

Cretino!

O homem se voltou um pouco para o lado e dirigiu sua atenção para algo que não era eu. Ouvi consecutivos bipes eletrônicos e em seguida, uma parte do vidro começou a se mover, arrastando-se para abrir.

Naquele momento, o meu coração e pulmão pararam. Não tinha reparado, mas o vidro que me mantinha separada dele, ainda que fosse uma prisão, me transmitia à sensação de segurança. Daqui ele não podia me tocar e nem me ferir, mas agora... agora não havia nada. Estava exposta e não tinha meios possíveis para me defender.

Meus olhos alternaram nervosamente entre a pistola e o sujeito que invadia a cela. O meu coração quase pulou boca afora, quando o homem se pôs no meio da porta, avançando pelo espaço.

─ O-o q-que você vai fazer? ─ Indaguei arfante, tentando me afastar enquanto podia da sua aproximação abrupta.

Eu podia sentir os meus olhos esbugalhados e coração aterrorizado, batendo forte e descompassado dentro das costelas. Milhares de coisas vieram a minha mente num só instante. E se ele fosse um estuprador... ou, se essa fosse a parte em que ele me levava para um açougue humano, e retirava todos os meus órgãos para vender no mercado negro?

Oh meu Deus!

O desespero não me permitia racionalizar. Eu só não queria que ele se aproximasse e numa tentativa desesperada de não fazer movimentos bruscos, ergui a mão, esperando que ele ao menos respeitasse isso. O espaço.

Enquanto ele se aproximava, eu recuava com passadas para trás.

─ Tá legal. Eu não tenho o dia inteiro. ─ Protestou impacientemente, o maldito, quando me encurralou no canto, entre uma parede e outra.

─ Pelo visto, essa garota vai ser uma baita dor na bunda. ─ Ouvi outra voz áspera preencher o ambiente do lado de fora. Era Ernest, o seu comparsa.

─ Está tudo sob controle! ─ Declarou o sujeito, muito mais perto de mim agora, e sua voz ecoou gravemente pelos meus tímpanos, e eu precisei me encolher mais contra a parede devido à falta de espaço entre nós.

Vi por cima do ombro do homem, quando Ernest se afastou. O outro suspirou irritadamente, e puxou uma faca, fazendo-me esbugalhar os olhos ao engolir em seco, totalmente apavorada. Porque, ele a pressionou conta a minha bochecha. Pude sentir o metal gélido roçar em minha pele, a lâmina prensando a minha carne, junto com a sensação de pânico que se espalhava da minha espinha por toda extensão do corpo. Naquele momento, tive a convicção de que ele me mataria por estar dificultando as coisas.

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