O Homem do Quarto Andar
O Homem do Quarto Andar
Por: Momede
Capítulo 1

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                                                          ....

Após vinte dias de férias em Paris, finalmente pisei em solo brasileiro. Eu estava cansada, porém extremamente feliz e ansiosa para rever minha família e os amigos. O calor sufocante do verão já podia ser sentido logo no portão de desembarque, e não demorou para que eu avistasse minha mãe com o rosto ansioso e com os olhos lacrimejados a minha espera.

Assim que dona Suely me viu, veio com passos largos e rápidos em minha direção. Nós nos abraçamos demoradamente com abraços saudosos, enquanto era quase devorada por muitos beijos maternos de amor. O sorriso de ambas era de orelha a orelha, e por mais que as férias em Paris tivessem sido incríveis, era bom estar de volta, sendo recebida pela pessoa que mais me amava na vida.

De mãos dadas, mamãe e eu fomos caminhando até o carro estacionado na frente do aeroporto, onde o movimento de turistas era intenso. Enquanto eu colocava as bolsas de viagem no porta-malas, tirei meu casaco de gola alta que havia me acompanhado desde a saída da Europa, pois com a temperatura chegando a quase quarenta graus, a vestimenta já não era mais necessária.

Durante o percurso de volta para casa, o trânsito estava relativamente bom para uma quarta-feira ensolarada. O céu azul sem nuvens brancas fazia-me sentir novamente uma verdadeira brasileira, ao mesmo tempo que o ar condicionado do carro fazia-me esquecer o calor intenso e úmido da cidade.

Eu contava a minha mãe, animadamente, sobre os lugares dos quais havia visitado. Ela, por sua vez, ouvia tudo atentamente com muita curiosidade em saber dos mínimos detalhes. Mesmo que eu estivesse ansiosa para também mostrar-lhe as quase mil fotos que havia tirado nos vinte dias de férias, o que parecia agora ter sido uma verdadeira loucura, eu precisaria esperar chegar em casa para desfazer as malas, rever os familiares, distribuir os presentes. Assim, então, eu separaria as fotos que iriam para a revelação e as que escolheria, cuidadosamente, para postar nas redes sociais para que amigos distantes e colegas de trabalho pudessem ver. Isso tudo, pensando também em como organizar um lindo álbum físico de todos os registros que havia feito.

Comecei falando sobre o Louvre e sua famosa Gioconda, a Mona Lisa. Se de um lado, foi frustrante ver de perto o seu tamanho original, por outro há a magnitude de sua beleza incomparável e a forma de conquistar admiradores do mundo inteiro com um sorriso completamente enigmático.

— Mãe, ela é linda, e o museu é imenso! Eu precisaria de pelo menos mais vinte dias só para conhecer todas as obras de arte disponíveis! - exclamei, cheia de boas recordações.

Ela olhou-me sorrindo como se a ideia de viajar por mais vinte dias fosse completamente fora de cogitação, já que a saudade e o dinheiro sucumbiriam rapidamente.

Fingi não reparar em sua reação que era engraçada por si só. Mesmo que eu tivesse pago pela primeira viagem internacional e me preparado ao longo do ano com professora particular de francês e curso básico de fotografia para registrar cada momento, sabia que a impossibilidade de prolongar as férias era real, afinal o trabalho no hospital me aguardava novamente.

Falei sobre o Palácio de Versalhes com seus lindos e enormes jardins verdes.

— É incrível pisar num lugar onde reis e rainhas viveram em séculos passados. Caminhar pelos jardins que eram tomados por intrigas e adultério. – disse, lembrando-me de todas as séries de televisão que tinha assistido e livros que tinha lido.

Mamãe não aguentou e explodiu em uma gargalhada. Porém, sem interromper-me, deixou que eu continuasse a tagarelar.

Contei sobre a caminhada nas margens do rio Sena e a visita à casa de Monet para ver suas Ninfeias. De repente, parei de falar como se o pensamento quisesse dominar as palavras que saiam de minha boca. Olhei para o lado de fora da janela, onde a paisagem estava em constante movimento, recordando especialmente esse passeio.

— Mãe... - disse vagarosamente.

— Sim, filha. - ela me respondeu ainda com o sorriso cobrindo o rosto.

— Você sabia que existe uma história, afirmando que Monet não usava cores pretas para pintar suas Ninfeias? Mas que, semanas antes de morrer, ele teria sonhado com sua própria morte, e isso o deixou apavorado, e, assim, teria usado pela primeira vez na vida a tinta preta para retratar seus quadros? Uma forma de premonição...

Minha mãe me olhou como se não soubesse exatamente do que eu falava.

— Parece que esse quadro vale quatrocentos milhões de libras e se chama Ninfeias Negras. No entanto, ele nunca foi encontrado.

E como quase em um estalo, voltei de meu devaneio para a tagarelice dos passeios que fizera à Torre Eiffel.

— Acho que foi o ponto alto da viagem. São trezentos metros de altura e você pode jantar dentro da Torre, caso queira. Não é incrível? – indaguei, sentindo meu coração cheio de emoção.

— E você jantou? - perguntou dona Suely, já sabendo a resposta.

— Sim. Dizem que somente os turistas bregas e cafonas pagam caro por esse jantar.

Começamos a gargalhar simultaneamente.

Falei das fotos sensacionais tiradas em cima do Arco do Triunfo e como a vista de Paris era mais bonita, encantadora e romântica diante dos diversos ângulos, além da importância e da representatividade das chamas que nunca se apagam. Percebi, então, que além de contar sobre a viagem, também estava dando uma rápida aula sobre os lugares turístico à mamãe, que parecia tão entretida a ouvir o quanto eu tinha para contar.

Foram mais ou menos quarenta minutos falando sem parar sobre os presentes comprados e a andança na famosa avenida Champs-Élysées, os vinhedos que eu havia visitado e sobre o quanto o outono de setembro na capital francesa era de tirar o fôlego.

A emocionante visita à Notre-Dame e à Basílica de Sacré Coeur, a agitada e badalada noite de Mouling Rouge, o Jardim das Tulherias e sua história, a Praça da Concórdia, Sainte Chapelle, Campo de Marte, Musée Rodin, Museu Picasso, a Praça da Bastilha, o Palácio de Luxemburgo, o Panteão e a belíssima Ponte de Alexandre III.

Ufa! Eu mal conseguia respirar. Quando percebi, havíamos chegado ao portão de casa.

Mamãe adentrara cuidadosamente com o carro na ampla garagem que estava totalmente vazia, deixando-me intrigada, pois eu sabia que meus tios e meus primos nos aguardavam chegar.

A minha boca estava seca, e eu estava sedenta, praticamente suplicando por um copo de água estupidamente gelado. Também pudera, os minutos passaram tão depressa no caminho de volta, que mal havia percebido quão entretida estava ao tagarelar.

Fora do carro, mamãe ajudou-me com as malas e, antes que pudéssemos subir a escada caracol que dava direto para a porta de madeira nos fundos da cozinha, fui abraçada com ternura novamente.

— Ah, minha filha, seja bem-vinda! - retribuí o abraço, suspirando por, finalmente, estarmos juntas e em casa.

Mamãe e eu dividíamos uma bela e confortável residência de dois andares e, por eu ser filha única, dona Suely insistia em deixar claro que não havia a menor pressa para que eu tomasse minha liberdade e independência pelas mãos, já que meu pai fora embora há muitos anos, quando eu ainda mal engatinhava, casando-se novamente.

Entretanto, evitávamos falar, sempre que podíamos, sobre o assunto, pois quando ele vinha à tona, o incômodo pairava sobre ambas. No entanto, acabei sendo criada por uma mãe solteira e dois tios maravilhosos.

Um deles era o tio Jorge, casado com Tia Lia, e o outro era o Tio Maurício, casado com Tia Virgínia. Ambos irmãos de minha mãe.

Cada tio teve três filhos, quase que na mesma época em que nasci. Os meus amados primos Mateus, Pietro e Isabela, filhos do Tio Jorge com Tia Lia; Miguel, Adriana e Flávia, formavam os trigêmeos do Tio Maurício com Tia Virgínia.

A casa por muito tempo viveu cheia de crianças, brinquedos e festas de aniversário. Todos crescendo, praticamente, com pouquíssima diferença de idade.

A minha infância sempre foi confortável e não me faltou absolutamente nada enquanto crescia. Por ser filha de professora universitária, a atenção era voltada diariamente para os estudos.

Minha mãe, por sua vez, trabalhava sessenta horas semanais e fazia questão de tirar comigo todas as lições escolares diariamente, além de estimular constantemente a leitura de livros.

As coisas fluíram muito bem na adolescência. Eu não me metia em confusão, não bebia ou fumava e nunca andava com pessoas que poderiam me trazer algum tipo de problema.

Quando terminei o Ensino Médio, ainda flertava com uma carreira na Medicina, uma escolha que havia feito antes mesmo de terminar o Ensino Médio, embora meus tios logo se propusessem a pagar primeiramente o Curso de Enfermagem tendo em vista que estudar Medicina era monetariamente exorbitante.

Na época, mamãe também quis ajudar a sua maneira e decidiu que iria pegar um empréstimo no banco em que era correntista, há mais de vinte anos, para que eu realizasse meu objetivo acadêmico. Obviamente, a proibi de tal sacrifício, sendo totalmente contra essa decisão que fez com que ela desistisse da ideia com muita contrariedade.

No entanto, eu estava disposta a mergulhar no mundo da saúde e por isso tentei ingressar na faculdade federal. Certamente, parecia que a vida tinha outros planos para mim e após um período intenso de três incansáveis vestibulares, não consegui ser aprovada.

Meio frustrada, acabei cedendo às investidas de minha família para cursar o Técnico de Enfermagem na melhor instituição particular da cidade, haja vista que era mais acessível que o curso de Medicina.

Levei mais três anos até me formar e, durante o curso, não demorei para conseguir um estágio. Minhas notas eram as mais altas da sala, e o bom índice de presença nas aulas teóricas me fez ser selecionada, pelo diretor da instituição de ensino, para o processo de admissão anual de novos estagiários do hospital privado de convênio.

Em um piscar de olhos, comecei a fazer parte do quadro do Hospital Pediátrico do Sagrado Divino que mantinha uma parceria com a instituição em que eu estudava.

O estágio, no entanto, não era remunerado, e a diretoria aproveitava, através de avaliações dos enfermeiros supervisores, os alunos que apresentavam excelente progresso na prática e o desempenho necessário para adquirir o sonhado diploma. Porém, não era todo mundo que aguentava a pressão das quatro horas mínimas de plantão que tínhamos que realizar diariamente. Alguns desistiram quando viram sangue, e outros quando precisaram aplicar injeção. Por mais estranho que pareça, é na prática que vemos realmente o quanto estamos dispostos a ingressar na profissão.

Após oito meses, completei a carga horária com cem por cento de aproveitamento que o curso exigia para conseguir o diploma. Quando o estágio finalmente acabou, fui chamada para uma reunião com o RH do hospital sobre a proposta de ser efetivada.

Com o diploma na mão, embora nunca tenha pensado em começar minha carreira no mundo infantil, aceitei aos vinte e cinco anos, e feliz da vida, o emprego na emergência pediátrica que era referência em todo o bairro.

Não foi difícil para que eu me acostumasse com os plantões que agora eram de doze horas por trinta e seis, ou seja, doze horas de trabalho e trinta e seis horas de folga e, diga-se de passagem, com escalas sempre muito agitadas. Eu me recordo perfeitamente das duas ocasiões que me marcaram profundamente, sendo que na primeira vez eu tinha menos de um mês como técnica efetiva.

Era férias de janeiro. As escolas estavam em recesso e parecia que todas as crianças da cidade estavam viajando. Não havia ninguém com febre, tosse, nariz escorrendo ou qualquer coisa do tipo.

A sala de espera estava vazia, e o plantão encontrava-se calmo e silencioso.

Era madrugada, em torno de duas e meia, quando entrei na cafeteria procurando por um expresso puro para aguentar até as sete horas, horário em que os plantonistas da enfermaria são trocados, quando repentinamente fui chamada às pressas por uma outra técnica.

Eu me encaminhei até o corredor de triagem, onde o médico de plantão socorria uma criança. A mãe trazia no colo o seu bebê que estava engasgado. A menina, aparentemente com dois meses de idade, encontrava-se arroxeada. Na hora, a adrenalina tomou conta de mim e não pude em hipótese alguma recuar, pois precisávamos agir rapidamente. Na maioria dos casos, uma ação rápida é o que determina se uma criança morre ou vive, e, no ímpeto da situação, temos que usar nossos reflexos e toda experiência adequada e adquirida para ajudar o paciente.

Tudo é levado à prova e rápido demais. O stress acaba sendo inevitável.

Levamos a criança imediatamente para a sala laranja. Na triagem, essa sala indica que a situação é grave, podendo evoluir para a morte. O atendimento precisa ser imediato.

A recepcionista e um dos seguranças do hospital acudiam e seguravam a mãe que estava em estado de choque.

Fizemos a manobra de Heimlich, procedimento que ajuda a desobstruir o que estava causando o engasgamento, mas a criança continuava mole e roxa, o que indicava que ainda existia uma grande dificuldade para respirar.

Estávamos alguns minutos nesse drama, e a criança não desengasgava. Ela simplesmente não reagia.

Com o tempo encurtando, a falta de oxigenação no cérebro causaria ainda mais danos. Mas, finalmente, a bebê conseguiu expelir o leite materno que o impossibilitava de respirar, e o choro ecoou pela sala, trazendo alívio e sorrisos do médico e dos técnicos presentes. Eu era um deles.

A mãe aguardava na sala de espera por notícias de sua filha, quando fui designada a falar-lhe, então, que estava tudo bem, que a situação estava sob controle, e que o susto maior havia passado.

A mulher pareceu sair do choque, em que seu corpo trêmulo se encontrava, e entrou em uma espécie de transe quando me ouviu dizer que poderia ver a bebê.

Segundos depois, meu tênis foi envolvido por uma poça de líquido fétido e amarelado. A mãe havia urinado e parecia não ter percebido o que tinha acontecido.

Eu não soube distinguir se aquilo era uma reação ao nervoso ou ao alívio sentido.

Casos como esse são muito frequentes em emergências pediátricas. As mães, principalmente as principiantes, geralmente estão exaustas com a rotina que um recém-nascido requer e acabam adormecendo sentadas enquanto amamentam seus filhos.

No entanto, toda teoria aprendida no curso e na especialização não chegam aos pés do que realmente é viver tal situação.

Rapidamente levei a mãe, ainda em transe, para uma sala reservada e a acalmei, enquanto a bebê seguia em observação.

Horas depois, na mesma manhã, o médico responsável, que curiosamente não me lembro o nome, liberou mãe e filha juntamente com o esposo, pai da criança que estivera o tempo inteiro ao lado de ambas.

Quando finalmente a porta se fechou, e eles foram embora, o final do meu plantão já raiava lá fora sentindo todo o meu corpo tenso e dolorido, dando-me entender que a primeira vez jamais seria esquecida, modificando-me como ser humano para sempre.

O segundo caso, porém, foi bem mais sério. A criança de dois anos foi a óbito, e isso gerou uma grande confusão para todos os envolvidos.

A impressa caiu em cima, porque os pais processaram o hospital.

A médica na época, foi demitida, e três enfermeiros do plantão foram afastados.

Eu havia acabado de chegar para trabalhar. Era em torno de seis horas e cinquenta minutos. O clima era de total tensão, e as fisionomias não eram nada boas.

Passei pelo corredor da triagem, onde encaminhamos os pacientes para as salas azul, verde, amarela, laranja e vermelha. Cada sala corresponde ao respectivo grau de agravamento do paciente.

Bernardo dera entrada na emergência por volta da meia noite, ocasião em que eu não me encontrava presente. Chegou com um quadro de bronquiolite, febre alta e fraqueza.

A médica responsável, a Dra. Kelli, o diagnosticou com asma e o encaminhou para exames. Assim que ficaram prontos, e comparados com resultados de exames passados que a mãe fizera questão de levar para a nossa emergência, foi visto que Bernardo, em menos de uma semana, estivera em duas clínicas pediátricas com os mesmos sintomas, sendo medicado e liberado para repousar em casa.

A Dra. Kelli, por sua vez, encaminhou o paciente para a nebulização, devido à falta de ar que apresentava, dando um remédio para conter a febre e prescrevendo corticoide na veia.

Até então tudo bem, porque o corticoide é usado para expandir os brônquios, possibilitando uma melhor oxigenação, mas um minuto depois, Bernardo convulsionou, e a mãe que estava ao seu lado assistiu a tudo, sendo retirada a força da sala.

Levaram Bernardo para a sala vermelha, já que o caso era de extrema urgência, e a Dra. Kelli, logo tomou a frente da situação, conseguindo estabilizar o quadro, para logo depois a criança de dois anos voltar a convulsionar, tendo em seguida uma parada cardiorrespiratória.

O processo de reanimação precisou ser feito imediatamente, e durante quarenta minutos a médica e os demais envolvidos fizeram de tudo para não perder o paciente.

O pai, que também havia visto o filho desfalecer, entrou em pânico e foi levado para a sala de espera, onde a esposa aguardava notícias aos prantos. Os dois choravam desoladamente.

O silêncio pairava no ar quando Bernardo não apresentou mais batimentos cardíacos, indo, assim, a óbito às três horas e doze minutos do dia cinco de abril.

A hipótese de alergia ao corticoide logo foi levantada, mas sem comprovação.

A mãe dissera na época que o filho não era alérgico ao medicamento e logo depois, ainda confusa com tudo o que tinha acontecido, disse que acreditava ser, ou seja, havia uma dúvida no ar.

Foi então que o hospital virou de cabeça para baixo.

Os pais chamaram a polícia, alegando que a equipe matara o seu filho primogênito por negligência. A imprensa, por sua vez, não perdeu tempo e começou a noticiar em programas sensacionalistas de televisão o caso de Bernardo. O rosto do menino estampava as capas de jornais do país inteiro e houve uma grande comoção nacional.

Um processo foi aberto e cabeças rolaram. Uma junta médica levantou a hipótese de Bernardo ter convulsionado devido à alta temperatura da febre que beirava trinta e nove graus.

Pelo sim ou pelo não, depois de um tempo, nunca mais ninguém falou a respeito do ocorrido. Dizem que o hospital desembolsou um milhão de reais para os pais, além de honorários advocatícios e custas processuais.

Como técnica novata, fui proibida de pronunciar uma única palavra sobre os detalhes do ocorrido com quem quer que fosse.

A Dra. Kelli foi demitida, e seu registro cassado. Corre à boca miúda que ela estaria hoje atuando como médica em uma clínica clandestina de aborto no subúrbio da cidade.

Após sete meses de incertezas, os enfermeiros que atenderam Bernardo, naquele dia, voltaram à ativa sem ter seus nomes divulgados aos jornalistas. Apenas os internos do hospital sabiam quem eles realmente eram.

Esses foram os dois principais casos que mais me marcaram no Hospital Pediátrico do Sagrado Divino e mesmo que até hoje ninguém saiba ao certo o que de fato aconteceu com o menino Bernardo, apesar das inúmeras hipóteses cogitadas, o caso acabou perdendo força na mídia, vindo a ser fortemente abafado pela cúpula do hospital.

Após esses episódios, peguei o ritmo da emergência com muita rapidez e agilidade. No entanto, não demorou para que eu resolvesse arrumar outra fonte de renda para complementar o meu contracheque mensal do hospital, expandindo as possibilidades que a área me permitia. Foi então que, através de colegas de trabalho, eu consegui o segundo emprego.

Fui indicada para cuidar do primeiro paciente particular. Eu seria uma espécie de acompanhante de um idoso que requisitava cuidados especiais dentro de casa. Assim, comecei a trabalhar para o Seu Antônio, um senhor de oitenta e nove anos com o quadro de Alzheimer, uma doença neurodegenerativa que evolui em quatro estágios.

No caso dele, a fase da doença se apresentava bastante avançada e, por conta disso, já não conseguia mais se comunicar verbalmente e mal andava ou fazia as devidas refeições sozinho.

Precisei, então, organizar-me para intercalar os plantões da emergência pediátrica com as horas de trabalho destinadas ao meu paciente.

Trabalhava doze horas no hospital e vinte e quatro horas com Seu Antônio, usando o restante do tempo livre que tinha para dormir e estudar.

Não era fácil. Eu mal via a minha família e os meus amigos. Não me lembro de ter aproveitado um dia sequer de folga durante a semana ou usufruir de feriados livres.

Um ano extremamente difícil e estressante começava a cobrar o seu preço.

Por vezes, achei que não conseguiria dar conta de tanta responsabilidade, já que as minhas noites eram tomadas por uma imensa insônia e inquietude, assim como as preocupações que também começavam a refletir na minha alimentação que, por sua vez, estava cada vez mais precária, fazendo-me emagrecer quase dez quilos em dois meses devido à falta constante de apetite.

Sempre que podia, começava uma especialização nova que me proporcionava maior valorização dentro da atividade que exercia, além da visível remuneração vantajosa no final do mês com o trabalho de acompanhante a domicílio.

Após um ano sendo técnica de enfermagem do Seu Antônio, ele precisou ser internado no CTI, pois a deficiência motora progressiva avançou, vindo a falecer uma semana depois, em meados de agosto.

Por mais que eu esperasse algo assim, isso não deixou de ser um grande balde de água fria sobre a minha cabeça.

Perdia, então, o meu primeiro paciente e começava a ficar mais consciente sobre a partida de um enfermo, assim como aceitar o fechamento de um ciclo que me transformava em um ser mais consciente diante da única certeza da vida: a morte.

Durante o tempo que trabalhei para o Seu Antônio, sua filha Marta, a minha contratante, não cansava de me elogiar e não deixou que eu esquecesse o quanto fui importante para todos em sua família durante o período delicado e extenso que cuidei de seu pai, por isso passou a indicar-me para amigas próximas e pessoas conhecidas.

Entretanto, a vida continuava o seu fluxo normal, e eu precisava manter-me em constante movimento.

Assim, a dedicação, o carinho e o comprometimento com os pacientes, que vim a ser responsável durante os anos seguintes, zelavam pelo meu diferencial e por uma reputação sólida dentro da área.

No hospital, os colegas começaram a me pedir opiniões durante os plantões. Às vezes, vinham até a mim para tirarem dúvidas sobre determinados procedimentos e acabei me tornando a técnica referência quando os profissionais novatos chegavam à unidade.

Definitivamente, eu trilhava o caminho do reconhecimento pelo árduo trabalho, e isso somente serviu para que me atualizasse cada vez mais, usando toda a minha energia para investir em pacientes de pós-operatório.

Comecei a trabalhar para o público feminino de classe social privilegiada, ou seja, mulheres ricas que eram tentadas pela vaidade das cirurgias plásticas onde as abdominoplastias, próteses de silicone e lipoaspiração estavam super em alta, exigindo profissionais qualificados para o período de recuperação, que além de serem extremamente importantes para um resultado eficaz do procedimento, significava também uma renda extra de seis a oito meses e com mais tempo flexível.

Dessa forma, o meu trabalho passou a ser bem mais simples, pois eu não precisava passar pelo difícil processo da morte como geralmente acontecia com os idosos da terceira e quarta idade já adoecidos.

Eu acompanhava a minha paciente em consultas médicas regulares, trocava curativos, dava remédio, banhava, penteava o cabelo e, às vezes, precisava fazer a higiene íntima, criando dia após dia vínculos de confiança que me faziam ser cada vez mais reconhecida pelo excelente trabalho que exercia.

O perfeccionismo, que eu mesma me cobrava, ficava evidente sempre que a alta médica era dada ao paciente que, logo em seguida, indicava-me para mais pessoas que necessitavam de cuidados inadiáveis.

Era sempre a irmã de alguém que precisava, a tia de fulano que procurava ou a vizinha que tinha acabado de fazer o seio, o bumbum ou a retirada de uma das costelas.

Enfim, não me faltava ofício.

De fato, o conjunto de coisas que formava esse método de perfeccionismo era o que não me deixava em hipótese alguma falhar durante a atividade.

Eu vivia atenta às necessidades e aos cuidados que meu paciente necessitava, dia e noite ou em tempo integral. Havia quem dissesse que essa era a minha maior qualidade enquanto profissional.

Entretanto, trabalhando incansavelmente e sem tirar férias por um período prolongado, foi que consegui somar uma boa quantia de dinheiro para arrumar as malas e finalmente descansar rumo à Paris.

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