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debaixo da pele parte 1

A noite escorria pelas janelas da casa como um líquido espesso. Lá fora, a lua cheia filtrava-se por entre os galhos nus das árvores, desenhando sombras em constante movimento nas paredes do cômodo. O ar parecia conter algo não dito, uma presença antiga. O relógio da sala não ticava. O mundo, ali dentro, havia suspendido a respiração.

Lucky tocava suavemente o piano. As notas flutuavam no ar, frágeis, quase hesitantes. A melodia tinha algo de incompleto, como uma lembrança que tenta se formar, mas escapa. Helena estava sentada no chão, encostada na lateral do sofá, os joelhos dobrados, os braços envoltos ao corpo como se buscasse proteção de algo invisível.

Sentia cada nota como um sussurro — não de Lucky, mas de alguém que morava em algum canto escuro de si mesma. A música se chamava Of the Past. Ele não precisou dizer. Ela sabia. Era como se já tivesse ouvido aquilo antes, em algum sonho esquecido ou na infância enevoada por traumas. A melodia era familiar... dolorosamente familiar.

— Você compôs pra ela, não foi? — Helena perguntou. A voz saiu delicada, quase imperceptível, como um fio de seda prestes a se romper.

Lucky não respondeu de imediato. Continuou com os dedos repousando sobre as teclas, sem pressioná-las. Apenas sentia. Então assentiu, os olhos fixos na madeira escura do piano.

— Mas hoje... — murmurou ele, com a voz arranhada pelo que não se diz — hoje eu só consigo tocar pra você.

Helena desviou os olhos. Aquilo era demais. As palavras eram um convite e um alerta ao mesmo tempo. Ela sentia o peso de algo crescendo dentro de si. Ternura, sim. Mas também perigo. Como se estivesse dançando na borda de um penhasco.

E havia algo mais. Um eco do que ela mesma havia enterrado.

A última nota pairou no ar como um fantasma. Depois disso, o silêncio se instalou entre eles, denso, confortável e ao mesmo tempo ameaçador.

Lucky se levantou. Estava descalço, os passos quase sem som no chão de madeira. Ele estendeu a mão para ela, que hesitou antes de aceitar. Os dedos dele estavam frios. Ou seriam os dela?

— Quero te mostrar uma coisa — disse ele, com um tom que oscilava entre mistério e intimidade.

Ela o seguiu por corredores que pareciam crescer com os passos dele. A casa era grande, antiga, cheia de portas e sombras. À medida que avançavam, Helena tinha a impressão de que os cômodos surgiam conforme Lucky os desejava. Como se a casa fosse viva. Como se fosse uma extensão da mente dele.

Pararam diante de uma porta de madeira escura, envelhecida, com manchas que lembravam marcas de mãos. Lucky pousou a palma sobre a superfície como quem cumprimenta um velho amigo.

— Aqui é onde guardo os recortes do tempo — disse ele, sorrindo de canto. Mas não era um sorriso feliz. Era melancólico. Saudoso. Ou talvez... cúmplice?

Ao abrir a porta, o ar ali dentro parecia diferente, mais frio. A luz amarelada do teto iluminava dezenas, talvez centenas de fotos. Algumas organizadas em murais. Outras, jogadas em caixas, empilhadas de forma caótica. Mesas cobertas com papéis, molduras, negativos. Era um santuário para o que havia sido.

Helena entrou devagar, o olhar absorvendo tudo ao redor. Roupas antigas. Cabelos fora de moda. Sorrisos congelados no tempo. Pessoas que ela não conhecia — e, ao mesmo tempo, pareciam familiares. Como se cada rosto carregasse um fragmento de algo perdido dentro dela.

— Você é obcecado pelo passado? — ela perguntou, mais para quebrar o silêncio do que por real curiosidade.

— Talvez eu só tenha medo de esquecê-lo — respondeu ele, pegando uma foto ao acaso e olhando-a com ternura.

Helena se aproximou de um dos murais. Passou os dedos por uma sequência de retratos desbotados. E então parou. Seu corpo enrijeceu.

Uma foto, em preto e branco, mostrava duas mulheres sorrindo. Uma delas... uma delas ela reconhecia. Imediatamente. Sem margem para dúvida.

A garganta se fechou. O estômago revirou. Um calor subiu por dentro, mas o rosto dela permaneceu imóvel.

— Você sabe quem é essa? — perguntou, tentando manter a voz firme, apontando para a mulher que não conseguia encarar por mais de dois segundos.

Lucky se aproximou. Olhou com atenção.

— Ela? Era muito próxima da minha mãe. Não sei mais do que isso. Desapareceu há anos.

Helena assentiu. Deu um passo para trás. Por fora, fingia normalidade. Por dentro, era um vendaval.

A mulher da foto... era sua tia. Aquela que desaparecera quando ela ainda era criança. Aquela que a ajudara a criar. Que lhe contava histórias e penteava seus cabelos antes de dormir. Aquela que sumiu sem deixar um bilhete, um rastro, uma explicação.

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