A entrevista continuava, e o silêncio entre mim e Helena era mais eloquente do que qualquer palavra. Eu estava sentado ali, diante dela, com o gravador em cima da mesa e minha prancheta no colo. Mas minha mente... ela já tinha ido embora. Viajava por memórias que Helena jamais acessaria, vagando por lugares em que só eu podia andar. Ela não me pressionava. Não havia pressa. Talvez ela soubesse que, quando eu falasse, não seria por educação. Seria por necessidade. E esse momento chegou.
— Sua maior motivação pra tudo foi o amor? — ela perguntou, com uma suavidade calculada. — Você tem o seu amor, então? Tudo começou quando eu decidi que não podia mais viver sem saber... onde ela estava. A voz saiu de mim como um sussurro perdido entre dor e saudade. Me mudei pra essa cidade só por isso. Não por sonhos. Não por trabalho. Por ela. 2015 – Um mergulho profundo no passado A cidade era grande, barulhenta, caótica — como todas são — mas eu não ouvia nada disso. O único som que preenchia minha mente era o eco do nome dela: Dara. Eu não conhecia as ruas, os vizinhos, nem os sons da nova rotina. Mas isso não importava. Todas as manhãs, eu saía cedo, andava por horas. Olhava rostos, becos, vitrines. Perguntava em cafés, lojas, postos de gasolina. Cada canto, cada esquina, podia ser uma pista. Era como procurar uma miragem no meio do deserto. Mas mesmo assim, eu não parava. Virei sombra. Dormia pouco, comia menos ainda. Meu corpo protestava, mas minha mente... estava viva. Alimentada por uma mistura tóxica de desespero e fé. Comecei a escrever versos soltos, rabiscos de canções que não terminavam. Letras que falavam de ausência, loucura e espera. Era o que eu conseguia produzir: arte feita da dor. E foi então, quando eu já estava à beira da exaustão, que ela apareceu. Num final de tarde qualquer, quando nada parecia diferente, ela cruzou a rua. Dara. Caminhava com a mesma leveza de antes, o sol beijando os fios do cabelo como se o tempo parasse só pra ela existir. Por um segundo, achei que fosse uma alucinação. Meus olhos arregalaram, e o peito apertou. O coração, antes calado, explodiu em batidas surdas e descompassadas. Congelei. Mas por dentro... era como se todas as músicas do mundo tocassem ao mesmo tempo. Eu só conseguia vê-la. Ela estava ali. Real. Linda. Intocável. A segui. De longe. Sem coragem de me aproximar. Observei os passos, o jeito como ajeitava o casaco, como mexia no celular distraída. Descobri onde morava. Sem pensar duas vezes, aluguei uma casa simples do outro lado da rua. Não era um plano. Era um impulso. Era o que restava do amor: dor, vício, loucura. Dali em diante, minha vida deixou de ser sobre viver — passou a ser sobre olhar. Esperar. E escrever. A casa que aluguei era vazia. Um colchão no chão, um violão encostado na parede, e um caderno sempre aberto na mesa. Mas da janela da sala, eu via a porta de Dara. E isso era tudo que importava. Acordava antes do sol. Fazia café, não por gosto, mas para ocupar as mãos. Sentava na cadeira ao lado da janela. E esperava. Ela saía sempre no mesmo horário. Às vezes com pressa. Às vezes devagar. Cada passo virava verso. Cada ausência, uma estrofe inacabada. Eu escrevia compulsivamente. Não sabia se queria conquistá-la de novo, ou apenas colecionar fragmentos dela em palavras. Era uma rotina muda, mas intensa. E eu preferia sofrer em silêncio do que arriscar o pouco que ainda tinha dela. O som de seus passos, o reflexo no vidro, o riso que escapava ocasionalmente... tudo isso era minha trilha sonora. As pessoas diriam que era obsessão. Eu dizia que era amor puro, bruto, sem forma. Amor que só sabe existir no escuro. Amor que não cabe no peito, então vaza pelos dedos. Numa noite fria, enquanto a cidade dormia, peguei o violão. Meus dedos, hesitantes. A voz, trêmula. Mas eu cantei. Cantei os primeiros versos de Ecos de Nós — uma canção que não era sobre amar, mas sobre sobreviver ao amor que ficou. > “Mesmo que eu grite, mesmo que eu corra Seu nome volta… volta pra me assombrar...” A música nasceu como um desabafo. Um sussurro para mim mesmo. Mas eu sabia, desde o primeiro acorde, que aquela melodia carregava todo o peso do que não foi dito. Do que não foi resolvido. Do que ainda ardia. Escrevi aquela música não para ser ouvido. Mas para não enlouquecer. Era meu único grito possível. E talvez, se um dia ela escutasse, entenderia. Ou talvez não. Mas isso nunca foi o ponto. O ponto era manter viva a parte de mim que ainda a amava. Mesmo que fosse só uma lembrança torta. Uma obsessão silenciosa. As noites eram longas. E nos silêncios entre os acordes, eu falava comigo mesmo. Revisitava cenas, recriava conversas que nunca aconteceram. Me perguntava o que ela pensaria se soubesse. Se visse. Se lesse. Mas ela nunca soube. Nunca olhou pra minha janela. Nunca percebeu o vulto que a observava todos os dias. E isso doía — como uma ausência gritante. Como uma história que só eu escrevia, onde o outro personagem não participava. Mesmo assim, eu não parava. Porque às vezes, amar é insistir no vazio. E o vazio... também responde. Em ecos. Em delírios. Em sonhos onde ela ainda sorria pra mim. Talvez isso fosse amor. Ou talvez só loucura com um nome bonito. De volta à sala de entrevista, olho para Helena. O gravador segue girando, e ela, paciente, me encara. Acho que esperava uma resposta mais prática. Algo como "ela voltou pra mim" ou "eu a esqueci". Mas a verdade é mais suja. Mais íntima. Eu não queria esquecê-la. Nunca quis. — Ela nunca soube que eu estava lá — digo. — Mas todas as manhãs, eu fazia questão de lembrar que ainda existia alguém que amava cada passo dela como se fosse poesia. “Não é sobre final feliz... É sobre não deixar morrer aquilo que me manteve vivo."