O dia de ontem foi surpreendentemente leve e bem aproveitado ao lado de Julia. Confessei a ela, entre risos e alguma vergonha, que não estava conseguindo acompanhar seu ritmo acelerado de fala. Ela sorriu e explicou que falava assim quando ficava nervosa - o que de certa forma nos ajudou a relaxar e quebrar o gelo logo de início.
Foi divertido descobrir um pouco de Londres por seus olhos. Ela vivia ali há três anos, com o irmão, e conhecia bem cada esquina. Julia era brasileira e sempre sonhou em estudar fora do país. Falava disso com brilho nos olhos. Com entusiasmo, me apresentou alguns doces típicos do Brasil que tinha guardados na despensa - brigadeiro, paçoca, e um doce de leite macio que quase me fez chorar de alegria. Amei todos, sem exceção. Conversamos até tarde da noite. Era curioso e um pouco assustador pensar que, em apenas um dia, eu havia feito uma amizade tão verdadeira num país totalmente novo. Era como se alguma força estivesse me guiando ao encontro de pessoas certas. Hoje, despertei cedo. Fiz minha oração matinal, pedindo, com o coração apertado, que tudo desse certo na minha apresentação à universidade. Se algo desse errado, eu não saberia o que fazer. Estaria completamente perdida. Esperei durante um ano inteiro para que minha bolsa fosse aceita. E mesmo com todas as dificuldades, não desisti. Tive uma infância reclusa, parte dela vivida dentro de um convento. E depois, quando fomos para a Polônia, estudei em uma escola fraca - resultado das escolhas erradas do meu pai. Um homem assassino, cruel, que me afastou de qualquer chance real de futuro. Quando finalmente recebi a carta de aceitação, quase não acreditei. Achava que minhas chances haviam se esgotado. Mas, como dizem, Deus escreve certo por linhas tortas... e minhas preces foram ouvidas. Tive também a sorte de Julia estudar no mesmo campus que eu. Iríamos juntas para a universidade, o que me aliviava profundamente. Eu mal conhecia as ruas da cidade, e tê-la ao meu lado me dava segurança. Agora, eu faria tudo o que por tantos anos me foi privado. Sou uma mulher de vinte anos que nunca conheceu o mundo. Os cinco anos que vivi na Polônia foram como uma prisão. Luca, meu pai, sempre me manteve trancada em casa como se fosse um soldado sob vigilância. Ele era controlador, exigente, e qualquer tentativa minha de sair resultava em punições severas. Pode até ser pecado dizer que o odiava - Deus me perdoe -, mas essa era a verdade. Luca era uma das piores pessoas que conheci. Um homem que matou por questões de sobrenome, que me trancou como se eu fosse sua propriedade, e que ainda me vendeu, sem o menor remorso, a um homem sessentão. Tudo isso por ganância. Enquanto penteava meus cabelos diante do espelho, observava meu próprio reflexo como se esperasse encontrar respostas. Não era má. Nunca fui. Apesar de tudo que Luca fez comigo, jamais destratei minha família. Mas, mesmo assim, sentia medo. Medo do que viria. Medo de mim mesma. Medo até do que via no espelho. - Já está pronta? - A voz de Julia me tirou dos pensamentos. Ela estava parada na porta, sorrindo como sempre. Parecia ter uma luz própria, um bom humor inabalável, independentemente da hora do dia. - Você está muito bonita. Você é bonita. - Riu de si mesma. - Desculpa, ainda estou nervosa. Apesar de termos praticamente a mesma idade, éramos muito diferentes. Julia era extrovertida, acelerada, espontânea. Eu, mais reservada, introspectiva, discreta. Ela não fazia ideia do que eu tinha passado. Se soubesse, talvez não sorrisse tanto ao meu lado. - Estou pronta. E... obrigada. - respondi com um sorriso contido. Não estava acostumada a receber elogios. Os últimos que ouvi vinham de alguém de quem eu preferia esquecer. Desde os quinze anos, percebi o modo como Oton me observava. Era assustador pensar que um homem como ele pudesse se interessar por mim naquela idade. Ele pagou ao meu pai pela promessa de casamento, como se eu fosse um objeto negociável. Ainda hoje me angustia pensar que ele poderia me procurar... e me levar de volta para a Polônia. Levantei-me, tentando afastar os pensamentos ruins. - Vamos logo. Não quero te atrasar. - Não se preocupe. Moramos perto e os horários são bem flexíveis. - disse, com aquele mesmo sorriso animado. A ansiedade me consumia. Eu queria sair logo do apartamento e ver a cidade com outros olhos. Ontem, cheguei tão nervosa que mal prestei atenção em tudo ao redor. Quando finalmente descemos e meus pés tocaram a calçada, algo mudou dentro de mim. Senti-me... diferente. As ruas de Londres não se pareciam em nada com a Polônia, tampouco com Alessandria. O clima frio me invadiu, despertando um tipo novo de alegria. As pessoas andavam apressadas, com as mãos enfiadas nos bolsos dos casacos pesados, e os prédios altos e modernos refletiam a luz cinzenta do céu. Os carros, em constante movimento, davam ritmo à cidade. Naquele instante, caiu a ficha. Eu estava, de fato, em Londres. E era tudo tão maravilhoso que não consegui conter o riso. Ri como uma boba encantada. - Vamos, o táxi chegou. - chamou Julia, me puxando com gentileza para dentro do carro. Se dependesse de mim, teria ido a pé. Queria observar cada detalhe, absorver tudo. Mas sabia que seria pedir demais. Durante o trajeto, Julia tagarelava animadamente, mas minha atenção estava toda voltada para a janela. Eu observava tudo: as pessoas atravessando as ruas apressadas, os ônibus vermelhos, os cafés aconchegantes nas esquinas. As fotos do G****e jamais conseguiriam capturar a verdadeira beleza daquela cidade. Só os olhos podiam. Estávamos no inverno, o que me fez lembrar da Itália. Mesmo nos tempos difíceis do convento, eu gostava do frio. Algumas tardes, as irmãs abriam as portas do refeitório e colocavam cadeiras de madeira do lado de fora. Nós nos sentávamos enroladas em cobertores, bebendo chocolate quente e vendo o mundo passar. Era uma memória doce... que agora me fazia chorar por dentro. Contive as lágrimas antes que caíssem. Eu não queria ser freira, e sabia disso desde cedo. Mas, mesmo assim, criei laços. Se meu pai não tivesse destruído tudo, talvez minha vida tivesse tomado outro rumo. Talvez eu ainda estivesse em Alessandria, visitando o convento de vez em quando. Mas aquela escolha também era boa. Eu só precisava aceitar que parte do passado teria de ficar no passado. Um passo de cada vez. Quando o táxi estacionou diante da universidade, fiquei sem palavras. O prédio era imenso, com arquitetura imponente. Estudantes caminhavam por todos os lados, e havia um brilho no ar que nenhuma fotografia poderia capturar. - Está pronta para entrar? - perguntou Julia, percebendo meu encantamento. - Se já ficou assim do lado de fora, vai surtar quando entrar. Mas, olha, cuidado com os ingleses charmosos. Quando veem uma mulher bonita como você, eles não perdem tempo. Mas fuja daquele olhar sexy e do sorriso encantador, ou sua vida pode virar de cabeça para baixo. - comentou, quase como um aviso. - Falando assim, até parece que você caiu nesse conto. - brinquei, provocando um sorriso em mim mesma. Mas Julia baixou os olhos e seu sorriso se apagou um pouco. - É... eu já fui burra de cair.Giovanni ManciniUm mês antesEu nunca pedi para estar aqui - respirando, vivendo, assumindo o papel de empresário atrás de uma mesa elegante, rodeado por funcionários que esperam ordens. A verdade é que, se eu pudesse escolher, estaria sete metros debaixo da terra, enterrado ao lado de Polina e do nosso filho. Mas meu padrinho me salvou. Infelizmente.Passei três meses em uma cama, desejando do fundo da alma que a morte me levasse. Cada batida do meu coração era um lembrete cruel de que ainda estava vivo. Mas algo maior me puxou de volta - uma força mais intensa do que a dor: a raiva.Demorei para aceitar que não morreria, mesmo que esse fosse o único desejo que restava em mim. E, como não tive coragem de tirar a própria vida, fui forçado a continuar com o que me restava: lembranças, cicatrizes... e ódio.Os últimos anos foram os maiores professores. Me ensinaram lições que eu gostaria de ter aprendido antes de perder tudo o que realmente importava. Quando o destino está traçado, nad
Alice GiordanoA ansiedade corroía cada parte de mim no meu primeiro dia de aula. Nunca imaginei que um dia estaria feliz por esse motivo - entrar em uma das faculdades mais renomadas de Londres era algo que sequer ousava sonhar anos atrás.Apesar de não vivermos mais no século dezenove ou vinte, meu pai sempre agiu como se ainda estivéssemos naquela época. Falava constantemente sobre arranjar um casamento para mim, como se fôssemos uma família antiquada, onde as mulheres eram obrigadas a aceitar maridos escolhidos pelo patriarca.Odiava quando ele tocava nesse assunto. Durante muito tempo, acreditei que, com os anos, ele mudaria de ideia. Que talvez me amasse o suficiente para me deixar escolher meu próprio caminho. Mas eu estava errada. Luca nunca foi o pai carinhoso que desejei. Ele só se importava com ele mesmo e com as vantagens que poderia extrair de mim. Por tudo o que já vivi, ainda carregava o medo - o medo de cair novamente numa armadilha dele.Antes de sair do quarto, parei
Não sabia se me sentia aliviada ou decepcionada por ter apenas uma aula com o homem em quem esbarrei mais cedo. Agora, sentada no sofá do apartamento, repassando mentalmente cada momento do dia, concluí que talvez isso fosse até uma coisa boa.Eu não vim para Londres para me apaixonar. Vim para estudar. Consegui uma vaga em uma das melhores universidades e, graças à ajuda da Julia e do seu irmão, também conquistei um emprego. Um envolvimento amoroso só complicaria tudo.- Alice, tenho uma proposta pra você. Eu sei que você acabou de chegar, que não tem esse perfil de baladeira, mas essa é uma ótima oportunidade pra conhecer mais lugares. Além do mais... - Julia começou, e eu já sabia onde ela queria chegar. Há dois dias ela falava da tal festa. Só que eu... eu nunca fui de festas. Sempre fui a garota enclausurada, criada longe de tudo. Lugares com muitas pessoas, música alta e cheiro de álcool me causavam desconforto. Além disso, fui criada por freiras. O espírito festeiro nunca fez p
- Estou bem, só... preciso ir ao banheiro - falei, forçando um sorriso que até para mim soou amarelo.Só então notei que Julia não estava mais por perto. Meu impulso era procurá-la, dizer que queria ir embora, mas nem coragem eu tinha de confessar isso a Pierre. O banheiro foi apenas uma desculpa - uma saída estratégica para escapar daquela situação que me deixava cada vez mais desconfortável.Ele assentiu educadamente e apontou a direção. Segui, mas nem cheguei a entrar. O ar ali dentro parecia pesado, abafado... e quando percebi que o corredor do banheiro era próximo da saída, fui atraída por ela como por instinto. Antes de sair, me virei discretamente para ter certeza de que Pierre não estava olhando. Então, respirei fundo e atravessei a porta.O vento frio da noite me atingiu de forma revigorante, como um banho de realidade. O barulho abafado da música lá dentro ainda chegava aos meus ouvidos, mas do lado de fora tudo parecia mais... real. Respirei fundo, tentando encontrar um pou
Giovanni ManciniO nascer do sol em Alessandria sempre me pareceu o mais bonito do mundo. Talvez porque eu nunca tenha visto outro com os mesmos olhos, ou porque em nenhum outro lugar haveria o corpo quente de Polina entre os lençóis ao meu lado.Sua beleza completava a cena de forma quase cinematográfica. Nem a neblina suave da manhã conseguia ofuscar o brilho que emanava dela. Eu a observava como quem contempla um milagre, completamente hipnotizado, preso àquele momento como um tolo apaixonado.E eu era, sim, um tolo. Um bobo completamente rendido por amor. E não tinha vergonha disso. O amor trazia consigo uma estranha mistura de força e fragilidade. Ele nos deixava sensíveis ao menor gesto, nos fazia enxergar beleza nas pequenas coisas - como assistir o dia amanhecer ao lado de quem se ama.Mas algo começou a mudar. O céu, que deveria clarear, escurecia. O sol se apagava. E Polina... Polina desapareceu. De repente, eu estava sozinho na varanda da nossa casa.Levantei-me, alarmado,
- Senhor Giovanni, hoje começa meu aviso prévio. Eu só queria lembrá-lo de...- Não se preocupe, Tônia. Já estou cuidando disso - respondi com calma, interrompendo-a antes que ela ficasse ainda mais aflita com sua aposentadoria.Tônia trabalhava nesta empresa há muitos anos. Começou como secretária e, depois, tornou-se assistente do meu padrinho. Quando assumi os negócios, não quis mudar absolutamente nada. Na verdade, Tônia era a única pessoa em quem eu confiava plenamente. Ela era, de certo modo, como uma mãe.Ela me lembrava a minha mãe. E me tratava como tal, com conselhos firmes e broncas carinhosas. Claro, Tônia não fazia ideia dos meus planos. E era melhor que nunca soubesse. Ela era boa demais, pura demais para aceitar algo tão sombrio quanto o que eu estava fazendo. Sua saída representava, ao mesmo tempo, um alívio e uma perda dolorosa.- Você precisa de alguém jovem, rápida... e inteligente. Não é fácil acompanhar seu ritmo. Muito menos arrumar a sua bagunça - disse com aque
Alice GiordanoEu sabia - com todas as letras - que ainda era imatura. Não entendia muito bem como as coisas funcionavam no mundo real, especialmente na vida de uma mulher adulta. Era fácil culpar meu pai por isso. Mas, sendo honesta comigo mesma, eu também tinha parte nessa responsabilidade.Sempre que alguém se aproximava com intenções diferentes das de uma simples amizade, tudo em mim se retraía. Eu me sentia fora do meu próprio corpo, como se estivesse interpretando um papel que não ensaiei. Minha mente travava, o coração acelerava, e eu simplesmente não sabia o que fazer.Era evidente que, mais cedo ou mais tarde, eu teria que amadurecer e aprender a lidar com esse tipo de situação. Mas saber disso não tornava mais fácil o fato de que, até agora, eu ainda reagia como uma menina assustada em um corpo de mulher.Desde a noite anterior, quando conheci Giovanni Harris, não consegui tirá-lo da cabeça. Cada palavra dita, cada olhar trocado... até mesmo o perfume que ele usava ainda par
Uma semana depoisA semana passou como um vendaval. Mal percebi os dias escorrendo entre os dedos com tantas tarefas da faculdade, do trabalho, e o tempo que passei com Julia. Tudo aconteceu de forma tão intensa que parecia que a rotina havia me engolido por completo.Desde a conversa com Daniel, seu irmão, venho observando Julia com mais atenção, tentando captar qualquer sinal de mudança no comportamento dela. Em tão pouco tempo, criei um carinho enorme por aquela garota. Desde que cheguei, ela me acolheu com uma alegria quase contagiante, me mostrou os encantos de Londres, dividiu seu lar e ainda me arrumou um excelente trabalho de meio período.Nunca tive alguém fora da minha família - além de Sara - que tivesse feito tanto por mim. Por isso, quis retribuir, mesmo que de forma discreta, certificando-me de que o homem com quem Julia estava saindo era realmente alguém com boas intenções.Julia era extremamente comunicativa. Falava de tudo, ria com facilidade, mas quando o assunto era