Narrado por Ranya Era fim de tarde quando percebi o movimento estranho nos portões principais da mansão. Eu estava no jardim lateral, recolhendo algumas louças da mesa externa, quando dois carros pretos, longos e espelhados demais para serem comuns, entraram lentamente no pátio interno. O motorista de Khaled desceu do primeiro, correu até a porta de trás e a abriu com uma reverência discreta. E então ele apareceu. O pai de Khaled. Eu já tinha ouvido falar dele. Os seguranças sussurravam seu nome com mais medo do que respeito. Diziam que ele era o verdadeiro cérebro da família Rashid — um homem que usava a tradição como arma e o silêncio como sentença de morte. Meu coração disparou só de vê-lo caminhando com aquele ar de realeza, as mãos cruzadas nas costas, o olhar rígido e inexpressivo. Não era comum visitas como aquela. E eu sabia que algo importante estava para
Narrado por RanyaDei um tempo antes de sair do quarto. Precisava parecer natural.Joguei um pouco de água no rosto, prendi o cabelo e fui até a cozinha. A empregada-chefe, Salma, estava organizando os talheres com precisão militar, como sempre. Ela me olhou, desconfiada, mas não disse nada.Peguei uma bandeja, enchi com frutas, suco de romã, iogurte artesanal — tudo o que a senhora Lara costumava gostar — e segui pelo corredor até o quarto dela. Bati com os nós dos dedos, leve o bastante pra parecer formal, firme o suficiente pra ser ouvida.— Senhora Lara? Trouxe seu café da manhã.Ouvi passos. Um arrastar preguiçoso. A porta se abriu devagar.Ela estava com uma camisola fina de seda e um robe jogado por cima. Os olhos pareciam inchados, mas o rosto dela… ainda bonito, ainda frágil.— Obrigada, Ranya — ela murmurou, com a voz baixa. — Pode colocar na mesinha.Fiz o que ela pediu e aproveitei para observar o quarto. O lugar estava mais arrumado do que nos últimos dias. Talvez ela est
Narrado por KhaledDesde que me tornei o homem mais temido da minha família — e, talvez, de toda Dubai — aprendi que o perigo raramente vem vestido com sangue e faca. O perigo verdadeiro chega sorrindo. Servindo o chá. Dobrado no canto do quarto com um espanador na mão.Ranya.A mulher é discreta demais. Atenta demais. E embora tenha sido contratada para cuidar da limpeza da parte leste da mansão, ela vem aparecendo onde não deveria com uma frequência que me faz franzir a testa.Hoje de manhã, saí mais cedo do quarto, deixando Lara ainda adormecida. Ela parecia exausta da noite anterior — e de tudo que tem enfrentado desde que chegou à minha vida. Queria que ela descansasse, então me vesti em silêncio e desci para a biblioteca.Foi lá que vi Ranya.Parada diante de uma estante que já fora limpa no dia anterior. Estava com o pano na mão, mas os olhos fixos na porta entreaberta que dava acesso ao meu escritório. Onde, por acas
Narrado por LaraOlhei meu reflexo no espelho pela terceira vez em menos de dez minutos. O vestido dourado de seda fluía pelo meu corpo como uma segunda pele. O decote era elegante, mas ainda assim ousado o suficiente para fazer minhas bochechas corarem. Meus cabelos estavam soltos, com ondas suaves caindo sobre os ombros. A maquiagem leve deixava meus olhos mais marcantes. Eu estava bonita. Muito bonita.Mas também estava nervosa.Era estranho. Eu tinha convivido com Khaled tempo suficiente para saber que ele era um homem perigoso. Mas também... um homem de camadas. E desde a noite do hospital, ele tinha sido diferente comigo. Cuidadoso. Atento. Como se estivesse tentando me proteger de tudo, até mesmo dele.Hoje, ele tinha dito que queria me levar para jantar. Nada grandioso, só nós dois. Um momento a sós. Só que desde que ouvi a conversa dele com o pai, algo vinha martelando na minha cabeça: o bendito herdeiro.Ouvi uma batida lev
Alberto VasconcellosA ruína não chega de uma vez. Ela se insinua aos poucos, como uma praga silenciosa, destruindo tudo o que construí ao longo dos anos. Eu a vi se aproximar, tentei resistir, mas era como segurar areia entre os dedos. A Vasconcellos Import & Export, a empresa que levei uma vida inteira para erguer, estava falida.Foram anos de glória. Eu dominava o mercado de commodities, transportando produtos valiosos pelo mundo inteiro. Meu nome era respeitado, meus contratos eram disputados e meu império parecia inabalável. Mas o mundo dos negócios é cruel. Com a ascensão de novas potências econômicas, a concorrência ficou impossível. Empresas chinesas e árabes começaram a dominar o setor, oferecendo preços com os quais eu simplesmente não podia competir.Os contratos começaram a cair. Clientes antigos romperam acordos que existiam há anos. Investidores se afastaram. Fiz de tudo para segurar minha posição: peguei empréstimos, cortei custos, apostei em novas estratégias. Mas foi
Alberto VasconcellosEntro em casa e, como sempre, sou recebido pelo silêncio pesado que habita este lugar. Antes, minha casa era um reflexo da minha posição: móveis importados, quadros de artistas renomados, tapetes persas. Agora, tudo perdeu o brilho. Parece um cenário prestes a desmoronar.Subo as escadas, sentindo a tensão no ar. Minhas filhas estão todas em casa. Posso ouvir as vozes delas no andar de cima. Natália e Bianca, as mais velhas, conversam animadamente sobre alguma besteira fútil. Lara, como sempre, está quieta.Abro a porta do escritório e me sirvo de uma dose de uísque antes de encará-las. Minha paciência anda curta, e eu sei que não vou gostar das reações que estão por vir.— Reúnam-se na sala — digo alto o suficiente para que todas me ouçam.Natália e Bianca descem primeiro, com ares de tédio. São exatamente o que a sociedade esperava que fossem: filhas mimadas de um empresário rico. Sempre tiveram tudo do bom e do melhor, e mesmo agora, com a falência batendo à p
Lara VasconcellosSempre soube que era diferente das minhas irmãs. Desde pequena, eu sentia isso. Enquanto Natália e Bianca eram o orgulho do meu pai, sempre ganhando presentes caros, viagens de luxo e tudo o que desejavam, eu era a sombra. A filha esquecida.Não sei exatamente quando percebi que meu lugar na família era esse. Talvez tenha sido nos aniversários, quando minhas irmãs recebiam joias caras e vestidos importados, e eu ganhava um "parabéns" dito às pressas. Ou talvez tenha sido nos natais, quando elas desembrulhavam presentes luxuosos enquanto eu, muitas vezes, sequer era lembrada.A verdade é que, por mais que eu tentasse, nunca fui suficiente para ele.E o pior de tudo? Eu nunca soube o que fiz para merecer esse tratamento.Até entender.Minha mãe morreu no meu parto.Ela morreu para que eu vivesse, e isso me transformou na inimiga do meu pai desde o momento em que nasci.Eu não lembro dela. Não sei se seu cabelo era liso ou cacheado, se sua risada era alta ou suave, se
Lara VasconcellosAs horas seguintes foram uma correria. Eu não queria estar ali, e nada fazia sentido para mim, mas de alguma forma eu me vi arrumando a mala, colocando roupas no mínimo desconfortáveis, e me preparando para embarcar em um avião para um lugar tão distante quanto Dubai. Meu pai nunca teve consideração por mim, e agora ele estava me forçando a ir com ele para que eu fosse parte de algo que nem ao menos entendia. Tudo o que eu sabia era que a empresa dele estava à beira da falência, e ele via essa viagem como a última chance de salvar tudo o que ele havia construído.Eu ainda não entendia como tudo tinha virado um turbilhão tão rápido. A ideia de viajar com meu pai e minhas irmãs para o outro lado do mundo, onde ele teria que negociar com um sheik árabe para salvar a nossa vida de luxo, me parecia uma piada cruel. Mas as palavras de meu pai ainda ecoavam na minha cabeça. Eu não tinha escolha.Arrumei minha mala com a cara fechada, o peso de todas as minhas frustrações s