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Capítulo 4 — Samuel Montes

Eles acham que podem decidir minha vida como se eu fosse apenas mais uma peça no tabuleiro deles.

Filho do temido Valentin Montes. Herdeiro direto de um império erguido com sangue, silêncio e lealdade cega. Cresci em corredores onde os sorrisos eram diplomáticos e os beijos nas bochechas ocultavam facas. Aprendi cedo a calar e observar. Aprendi cedo demais a obedecer.

Mas uma parte de mim sempre se recusou a ser como eles.

Foi por isso que me afastei.

E foi por isso que Valeria me pareceu tão… diferente.

Ela veio até mim como o oposto do que me cercava. Linda, ousada, com um brilho nos olhos que parecia fome de mundo. Achei que fosse paixão. Achei que fosse ambição, e admirei isso.

Eu estava errado. Totalmente.

Mas ainda não sabia.

Hoje, quando recebi a ligação do meu pai, eu já imaginava o tom da conversa. Valentin nunca fala à toa. Não desperdiça palavras.

— Está na hora de voltar, Samuel. — Sua voz, sempre cortante. — Ela chegou.

Ela. A herdeira. A dívida que agora tem nome e rosto: Emanuelle Bressanelli.

— Eu disse que não aceito esse casamento. — Respondi frio, sem rodeios.

— Não é sobre aceitar. É sobre destino. E sobre manter vivo o que construímos.

— Vocês construíram, pai. Vocês. Não eu. Você e o pai dessa menina que decidiram tudo. Ela está de acordo? Ela sabe que tenho uma vida com a Valeria?

— Então é isso? Vai continuar se escondendo atrás daquela mulher que só quer o seu sobrenome e seu dinheiro?

— Valeria está comigo porque me ama. — Argumentei, mesmo sabendo que nem eu mais acreditava nisso por completo.

Do outro lado, silêncio. Depois, um riso seco.

— Ah, Samuel... um dia você vai entender o que é amor de verdade. E vai se odiar por desperdiçar tempo com quem te vê como escada, uma conta bancária, um cartão sem limites.

Desliguei antes de explodir.

Mas ele havia me fisgado com uma única frase.

“Ela chegou.”

Emanuelle.

A menina criada longe de tudo. A órfã escondida. A virgem prometida.

Um contrato selado antes mesmo de nascermos.

Como se dois corpos pudessem curar séculos de guerra.

Mas eu não era uma moeda. E ela, espero, também não.

Horas depois, me vi guiando meu carro de volta à mansão. Contra a minha vontade. Contra minha lógica.

O portão se abriu como uma boca faminta. E lá estava ela.

De costas, no jardim. Vestido simples. Postura ereta. Sozinha.

Parecia uma pintura antiga, deslocada no tempo. Uma prisioneira elegante.

Fiquei um tempo ali, observando-a.

Ela se virou. O olhar me acertou como um golpe inesperado. Não de ternura. Nem de submissão.

Mas de ódio contido.

Ela me analisou dos pés à cabeça.

— E você é mais um homem que me vê como mercadoria? — disse, seca.

— Em momento algum tive essa intensão. Não quero essa ligação tanto quanto você.

— Ótimo. Pelo menos nisso concordamos.

Houve silêncio entre nós. Um silêncio denso. Estranhamente íntimo.

— Me escute, Emanuelle. Eu não vou te tocar. Não vou te obrigar a nada. Não quero isso. — Cruzei os braços, encarando-a. — Mas preciso que saiba: aqui dentro, você está jogando com monstros. E meu pai… ele nunca aposta para perder.

Ela ergueu o queixo.

— Então é bom que ele tenha apostado na mulher errada. Pois dessa vez ele vai perder, nem que para isso tenha que tirar minha própria vida.

Pela primeira vez em muito tempo, senti algo que quase me fez sorrir.

Respeito.

Ela não era uma vítima frágil. Nem uma boneca moldada para agradar.

Ela era um incêndio esperando pela faísca certa.

E mesmo sem querer, eu sabia que meu pai acabara de pôr fogo no próprio império.

************

Mais tarde, no quarto, Valeria me ligou. Sua voz melosa e sempre conveniente.

— Amor... você voltou para a mansão? Vai deixar que aquele velho controle sua vida de novo? Como o fantoche de luxo dos Montes?

— Estou aqui por obrigação, não por submissão. Tenho assuntos pendentes para enfim vivermos juntos.

— Então prove isso. Volte para mim. Hoje. Agora.

Olhei pela janela. A silhueta de Emanuelle ainda visível no jardim escuro.

— Eu não posso. Ainda não. Já lhe falei que tenho assuntos pendentes e não serei fantoche nem seu, nem dos meus pais.

— Samuel… — Ela fez aquela pausa dramática que sempre usava quando queria manipular.

Mas dessa vez, alguma coisa em mim não reagiu do mesmo jeito.

Algo estava mudando. E eu não sabia se era devido à Emanuelle com sua força e vontade de lutar contra tudo isso que nos cerca ou porque finalmente eu estava acordando. 

Desliguei sem responder.

Voltei a encarar a escuridão lá fora. E tive certeza de uma coisa:

Esse jogo não será como os outros.

Porque pela primeira vez... há duas peças que se recusam a jogar.

Permaneci ali, parado, com os olhos perdidos no breu do jardim, onde Emanuelle havia desaparecido alguns minutos antes. Era estranho o efeito que ela causava. Uma garota que eu não conhecia, que não queria ao meu lado — mas que, em poucas palavras, havia virado minha visão do avesso.

Ela não me temia.

E o mais curioso: ela não me queria.

Não por ressentimento. Não por rejeição.

Mas por algo muito mais afiado — convicção.

Como alguém que passou a vida cercado por bajuladores e oportunistas lida com alguém que não o quer?

Sentei-me na poltrona de couro do meu antigo quarto, sentindo o peso de um nome que eu carregava sem nunca ter escolhido. Montes.

Eles acham que o nome basta. Que é passaporte. Escudo. Arma.

Mas eu só queria ser Samuel.

Simples assim.

O celular vibrou. Valeria, de novo. Insistente. Como se pressentisse que estava perdendo o controle.

Ignorei.

Peguei um copo de uísque do bar, algo antigo e caro, exatamente como tudo nesta mansão, e caminhei até a lareira. As chamas dançavam como se zombassem de mim. De nós.

Fui até o cofre escondido atrás de um quadro antigo. Digitando o código que só eu e meu pai sabíamos, abri a porta de metal e puxei de lá uma caixa preta.

Arquivos.

Cartas. Fotografias. Contratos.

O testamento assinado entre ele e Dante Bressanelli estava lá. Dizia em palavras frias que Emanuelle, filha única de Dante, seria prometida ao herdeiro dos Montes. Um pacto selado com sangue. Um favor antigo. Uma dívida paga com a vida de uma mulher.

De novo, nós éramos as peças.

Voltei a fechar o cofre, mas não consegui deixar o assunto morrer ali. Algo em mim — um instinto adormecido — começava a despertar. E o nome de Emanuelle pulsava entre minhas costelas como um aviso.

Não era só o olhar firme dela.

Nem a raiva.

Era o fato de que, pela primeira vez, eu via alguém tão preso quanto eu. Mas que, ao contrário de mim, ainda lutava com unhas e dentes para não ser consumida.

E isso me tirava o chão.

*******

Desci para a cozinha no meio da noite, tentando fugir dos meus pensamentos, quando ouvi passos leves no corredor. Me escondi instintivamente atrás de uma coluna.

Emanuelle.

Sozinha, com uma blusa larga e calça de moletom — claramente roupas emprestadas. O cabelo solto, desfeito. Mas os olhos... vivos. Atentos. Ela caminhava como quem carrega segredos, vasculhando a casa como se buscasse verdades escondidas.

Ela parou em frente à porta da biblioteca e girou a maçaneta.

Entrou.

Esperei alguns segundos antes de segui-la. Silenciosamente.

Ela puxava livros das prateleiras, folheava páginas, mexia em arquivos com a precisão de alguém acostumada a não confiar em ninguém. E então, sem perceber minha presença, ela murmurou:

— Famílias da Cúpula Negra... Palermo... papai, o que você fez?

Então ela sabia... pelo menos parte.

— Não é seguro mexer com o passado — minha voz saiu baixa, mas firme.

Ela se virou num pulo, os olhos arregalados. Não era medo. Era prontidão.

— Está me vigiando?

— Estou te protegendo. — dei de ombros. — Pelo menos é isso que vão dizer se me pegarem aqui com você.

Ela fechou o livro que segurava, mas não me desafiou. Só me observou, como se tentasse entender qual era o meu jogo.

— Está do lado do seu pai? — perguntou.

Balancei a cabeça, rindo sem humor.

— Estou do lado de ninguém. Estou à deriva, como você. Mas ao contrário de você, parei de lutar faz tempo.

Ela se aproximou um passo. Os olhos se estreitaram.

— Então por que continua aqui?

— Porque não importa o quanto eu fuja, essa família sempre dá um jeito de me puxar de volta.

— Isso não é uma resposta. Isso é rendição.

Toquei o queixo, encarando-a.

— Você fala como se tivesse escolha, Emanuelle.

— E você fala como quem tem medo de tentar.

O silêncio caiu entre nós de novo. Tenso. Elétrico. Intenso demais para dois estranhos.

E talvez fosse isso que me assustava.

Ela era tudo que eu tinha aprendido a evitar: intensa, imprevisível, indomável. Mas mesmo assim… eu queria ver até onde ela iria.

E mais ainda: se eu teria coragem de segui-la.

— Boa noite, Samuel — disse ela por fim, passando por mim sem quebrar o contato visual.

E antes de sumir pela porta, acrescentou:

— Quando resolver parar de sobreviver... me procure. Talvez ainda dê tempo de viver.

Fiquei ali. Imóvel.

Com a estranha sensação de que aquela mulher acabara de colocar o império dos Montes de cabeça para baixo — só com palavras.

E o pior: parte de mim torcia para que ela conseguisse.

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