Depois de uns longos minutos esperando pelo príncipe Noctis, sentada sozinha àquela mesa isolada, senti a inquietação crescer dentro de mim como uma erva daninha. Meus olhos percorriam o jardim, tentando disfarçar o incômodo. Já era o bastante. Levantei-me com um suspiro, alisando a calça de tecido leve que usava, e comecei a caminhar sem rumo definido. Talvez uma volta pelo jardim acalmasse minha mente. O sol, em seu lento declínio, lançava uma luz dourada e quente sobre o jardim, tingindo as flores e árvores de tons alaranjados e púrpura. O perfume doce das pétalas recém-desabrochadas se espalhava no ar, misturando-se com o aroma sutil da grama cortada e da terra úmida. O ambiente parecia tranquilo, quase onírico, como se fosse um recanto separado do resto do mundo. Caminhei por entre os canteiros decorados, sentindo a brisa suave brincar com as mechas soltas do meu cabelo. Pequenas fadas-luz — insectoides encantados, comuns nos jardins mais antigos — flutuavam entre os arbustos,
De longe, o rei Lucius Castas de Heits observava a família Norton se afastando do jardim. Seus olhos, treinados e sagazes, captavam cada movimento, cada gesto tenso. Nada passava despercebido à sua percepção aguçada — o modo como Altair caminhava adiante das filhas, como sua mão direita, fechada em punho, vibrava discretamente de frustração. A maneira como Kaelara lançava olhares furtivos para trás, como se relutasse em partir. Lucius podia sentir a tempestade não dita que pairava sobre aquela família, mesmo sem ouvir uma única palavra. Ao seu lado, passos apressados soaram contra o solo de pedras lisas. O príncipe Noctis aproximava-se rapidamente, a expressão no rosto jovem uma mistura de confusão, irritação e, acima de tudo, incompreensão. — Pai — chamou ele, sua voz ansiosa quebrando o breve silêncio que pairava entre eles. Lucius não respondeu de imediato, preferindo manter os olhos fixos nas costas cada vez mais distantes dos Norton. O vento agitava as vestes cerimoniais do re
Do lado de fora, o vento fresco da noite começava a soprar pelos jardins do castelo de Heits, trazendo consigo o cheiro das flores e o murmúrio abafado da festa que ainda acontecia à distância. A claridade dourada do pôr do sol começava a desaparecer, dando lugar a tons azulados e violetas que pintavam o céu. Puxei minha capa mais para perto do corpo, sentindo o frio que não vinha apenas do clima, mas da confusão em meu coração. Olhei para minha irmã, sem conseguir mais suportar a incerteza que pairava no ar. — O que está acontecendo? — perguntei, minha voz carregada de preocupação e confusão. Annya suspirou profundamente, olhando para o portão por onde nosso pai havia desaparecido momentos antes. Seu rosto, normalmente tão calmo e sereno, estava tenso. — Irmãzinha — disse ela, num tom mais suave —, espere nosso pai voltar. Eu te conto tudo. Não quero falar sem ele aqui. Franzi o cenho, frustrada, mas assenti. Havia algo nos olhos de Annya que me dizia que o que estava por
Saí da sala particular sentindo que o peso do mundo havia sido jogado sobre meus ombros. As palavras do rei ainda ecoavam em minha mente como trovões distantes. Fergus Melius Drentis… Traidor. Não apenas um inimigo, mas alguém que havia destruído vidas através da traição mais desprezível. Cresci ouvindo histórias sobre os draconatos. Sempre os admirei — sua imponência, sua força, sua ancestralidade. Para mim, eram lendas vivas de honra e bravura. Agora, tudo isso parecia desmoronar como um castelo feito de areia. Segui atrás de meu pai e de Annya pelos corredores silenciosos do castelo. Meus passos eram mais lentos, como se eu carregasse correntes invisíveis amarradas aos pés. Não conseguia evitar: a admiração que um dia me encheu de orgulho agora pesava como desilusão em meu peito. O vento frio soprava através das janelas abertas, trazendo um cheiro de terra molhada e flores noturnas. Em outro momento, eu teria achado reconfortante. Agora, era apenas mais um lembrete de que o mu
Acordou sobressaltada. O despertador piscava inutilmente no criado-mudo, mudo como sua própria voz, quando percebeu que já passava das oito. O coração acelerou como se fosse sair do peito, e o primeiro pensamento foi uma enxurrada de palavrões abafados. O tempo estava contra ela.Pulou da cama, vestiu a primeira roupa que encontrou no cabide — uma camisa amassada e uma saia que não combinava com nada — e desceu as escadas do prédio tropeçando nos próprios sapatos. O céu estava fechado, carregado de nuvens densas como chumbo. Nem teve tempo de pegar o guarda-chuva. Quando colocou os pés na calçada, a tempestade caiu com uma fúria quase pessoal.As gotas batiam no rosto como pequenos tapas. O ônibus atrasou, o trânsito estava um caos e, a cada minuto, seu estômago reclamava pela ausência de café da manhã. Chegou à empresa encharcada dos cabelos às meias, sentindo a roupa colada ao corpo, a maquiagem derretida e os olhares curiosos dos colegas de trabalho que disfarçavam mal os sorrisos
A escuridão foi se afastando aos poucos, dissolvendo-se em ondas suaves de calor e luz tênue. Marina sentiu-se flutuar num espaço sem forma, como se estivesse sendo embalada por braços invisíveis. Não havia dor. Nem memória. Apenas um estranho vazio sendo preenchido por sensações novas: o toque de algo macio, um som agudo como o assobio do vento… e depois, o som mais intenso que já ouvira: o próprio choro. Era o seu primeiro respiro. Era o início. O mundo explodiu ao seu redor em cores suaves e sons abafados. As pálpebras minúsculas se abriram com esforço, revelando olhos ainda úmidos, perdidos em um brilho difuso. Tudo parecia tremular, como se o mundo estivesse sendo visto através de uma fina camada d’água. A claridade machucava, mas logo se tornava familiar. Sentia o corpo pequeno, frágil e molhado, os pulmões lutando por ar, as mãos se movendo involuntariamente. Foi quando sentiu algo a envolvendo com firmeza, mas também com carinho. Um par de mãos fortes, porém delicadas, a
Três anos haviam se passado desde o dia em que abri os olhos neste novo mundo — um mundo de céu aberto, ventos cantantes e criaturas magníficas de asas resplandecentes. Já não era uma recém-nascida confusa envolta em mantos e cantos estranhos. Agora, com três anos, eu havia me adaptado à vida entre as harpias. Aprender a falar a língua delas foi um desafio no começo. Suas palavras tinham sons sibilantes, agudos e notas guturais que pareciam imitar o próprio vento. Mas, como tudo que uma criança determinada deseja entender, aos poucos, cada som se tornava familiar, cada sílaba era domada com o tempo e a repetição. Muitas noites, eu adormecia com a boca ensaiando palavras novas, e nas manhãs seguintes, corria para testá-las com minha mãe. O nome dela era Jenevive Norton. Só de ouvi-lo, meu peito se aquecia. Jenevive era tudo o que eu admirava: forte como as raízes que sustentavam as plataformas da nossa cidade, e doce como o néctar das flores que pendiam dos galhos mais altos. Ela me
A dualidade entre as minhas memórias humanas e esta nova existência como harpia é um sussurro constante, às vezes doce, outras vezes brutal. É uma batalha silenciosa travada em mim desde os primeiros suspiros da infância, quando eu deveria apenas descobrir o mundo com a inocência de quem nunca viu além do presente. Mas eu me lembrava. Não com clareza, mas com a profundidade do que é sentido no peito. Recordações surgiam como relâmpagos em dias calmos — uma risada ao longe, um cheiro que não existia naquele mundo, o nome de alguém que eu nunca conhecera aqui. Fragmentos de uma vida anterior, humana, complexa. Fragmentos de mim mesma. Essas memórias humanas, tão intrusas e familiares ao mesmo tempo, me acompanharam enquanto eu crescia entre penhascos e nuvens. Eram como sombras projetadas na parede do novo mundo ao meu redor: um toque de saudade quando tudo parecia novo demais. Eu me via dividida, como se metade da minha alma pertencesse ao céu e a outra metade ao chão de uma terra q