02

Ellen Vasconcellos.

O sol já estava se expondo quando saí pela porta principal da faculdade, puxando a mochila pelo ombro e tentando não tropeçar nos próprios cadarços. A última aula tinha sido tão arrastada que eu quase dormi com o professor falando sobre ética empresarial — ironia, considerando o que seguiria.

— Você viu a cara do professor? — Fábio comentou ao meu lado, já rindo. — Parecia que ele tinha perdido a vontade de viver dando aquela aula pela milésima vez.

Fábio era meu ponto de equilíbrio. Melhor amigo, sempre ao meu lado com piadas ruins e abraços inesperados. A gente tinha esse tipo de amizade que o tempo não desgastava. Ele conhecia minhas manias, meus surtos existenciais, e eu conhecia o jeito dele de disfarçar quando não estava bem. 

Eu fingia não perceber, mas, no fundo, eu sabia que ele gostava de mim, só tentava disfarçar.

— Está tudo certo mesmo? — perguntei, olhando para ele de lado, vendo o quanto ele parecia meio para baixo.

— Tudo ótimo, Ellen. Só cansado. — Ele me olhou de cima, brincando como sempre e tentando desviar o assunto. — E com inveja porque você vai para casa no seu carrão enquanto eu pego o busão — disse com um sorrisinho fraco e meio forçado.

Ia insistir, perguntar se ele queria uma carona, mas meu celular começou a vibrar dentro da mochila. Revirei os olhos, achando que fosse propaganda ou cobrança, mas congelei quando vi o nome na tela.

Tia Deborah. 

Minha mãe tinha duas irmãs, mas nossa relação sempre foi meio distante. Conversávamos em aniversários, feriados e afins. O tipo de ligação que só acontecia quando alguma coisa estava errada.

— Fábio, eu... preciso atender. — Falei já com o rosto mais sério.

— Tudo bem. Vai lá. — Ele se despediu com um beijo na bochecha e um abraço apertado, e eu senti que ele queria ficar e conversar mais, mas eu precisava atender.

Levantei e peguei minha mochila, saí da sala e comecei a caminhar pelo pátio da faculdade. 

Respirei fundo e, enquanto caminhava até meu carro, apertei o botão e comecei a falar.

— Oi, tia... tudo bem?

A voz dela veio do outro lado da linha, firme, mas carregada. Era como se ela estivesse segurando algo há muito tempo, e agora não conseguisse mais manter.

— Ellen... querida, me perdoa por estar ligando assim do nada, mas... eu não consigo mais guardar isso sozinha.

Meu corpo inteiro começou a ficar rígido, em alerta.

O que pode ter acontecido?

— O que houve? — Minha voz saiu falha. 

Sua voz veio em seguida. 

— Seus pais... eles não quiseram te contar, mas as coisas não estão nada bem, minha flor. — A pausa que ela fez me apertou o peito. — Seu pai está enfrentando problemas sérios na empresa. A situação está feia, Ellen. E a sua mãe... sua mãe está muito doente.

Parei no mesmo instante, coloquei a mão nos cabelos e então a questionei. 

— O quê? — Travei. — Como assim, doente? Que tipo de doença? E por que... por que ninguém me disse nada? — senti meu coração bater mais rápido. 

Continuei andando até o estacionamento e puxei o ar com força. 

Entrei no carro rapidamente, sentindo meus dedos gélidos, tremendo. Larguei a mochila no banco do passageiro e continuei ouvindo enquanto ela tentava explicar.

— Eles não quiseram te preocupar. Disseram que você precisava focar na faculdade, que estavam dando conta de tudo. Mas não estão, Ellen. E eu... eu não consigo mais ficar calada vendo tudo isso.

Minha mente girava. Imagens dos meus pais sorrindo nos almoços de domingo, as mensagens carinhosas da minha mãe dizendo que “estava tudo bem por aqui”, os depósitos regulares da mesada, a prestação do meu apartamento sendo paga em dia, o carro... Tudo parecia tão estável. Eles... estavam mentindo?

Minha garganta se fechou. Olhei para o volante como se ele fosse responder minhas perguntas, como se houvesse alguma lógica naquele caos.

— Eu... eu preciso vê-los — falei, sentindo a urgência crescer dentro de mim. — Não fazia ideia... eu nem imaginei.

— Eu sei, minha querida. Eles só queriam te proteger. Mas você tem o direito de saber.

— Obrigada por me contar, tia... de verdade.

Desliguei antes que minha voz desabasse. Fechei os olhos e tentei respirar, mas foi inútil. O choro veio em ondas silenciosas, pesadas, sufocantes. Não era só a notícia. Era a culpa.

Como eu não percebi?

Estava vivendo a vida como se tudo estivesse no lugar. Saía, ria, fazia planos para o verão, reclamava das provas. Enquanto isso, meus pais estavam se afundando... e escondendo isso de mim para não me preocupar.

Eu não pensei duas vezes. Dirigi rapidamente para o apartamento e, quando entrei na sala do meu apartamento, agi rapidamente, me sentei no sofá e agi. 

Mandei um e-mail para a coordenação da faculdade, explicando que precisaria de uma breve pausa por motivos pessoais. Não entrei em detalhes. Nem consegui. Enviei e eles me responderam.

Em seguida, fui até o meu quarto e arrumei uma mochila com algumas roupas e parti.

Sai do apartamento e decidi pegar a estrada.

Eles vinham bastante para São Paulo, mas têm a empresa deles em MG, em Contagem. 

Coloquei minha mochila no banco de trás, coloquei o cinto e saí apressada, fui até a rodovia e segui rapidamente. 

Meus olhos estavam fixos no horizonte e a mente girava em círculos. Não avisei. Não liguei. Só... fui.

A casa dos meus pais ficava em Minas Gerais, Contagem, a distância de São Paulo até lá é de 6 a 8 horas de viagem. 

Passei todo o trajeto tentando me convencer de que minha tia podia estar exagerando. Que talvez as coisas não fossem tão graves assim. Que meus pais, como sempre, estavam dando um jeito. Mas, no fundo, eu sabia que estava só tentando me proteger. Me proteger de uma dor que eu não queria enfrentar.

As horas passaram, estava escurecendo. Havia parado para descansar apenas uns minutos e continuei, estava chegando, faltava pouco. 

*****

Quando virei a última curva e vi os portões da mansão dos Vasconcellos, tudo pareceu igual. A fachada branca impecável, o jardim perfeitamente aparado, as palmeiras balançando com o vento leve da noite.

Estacionei o carro em frente e peguei minha mochila, colocando-as nas costas, apertei a campainha e esperei. 

Assim que a porta se abriu... eu soube.

Foi a velha Idalina quem atendeu. Ela tinha sido minha babá, minha segunda mãe por anos. Agora, tinha os cabelos completamente brancos e uma expressão cansada. Mas foi o susto no rosto dela que me alertou.

— Menina Ellen? — Ela quase deixou a bandeja cair das mãos. — Meu Deus... que surpresa! 

Passei pelos portões e o fechei atrás de mim. 

— Oi, Ida... — sorri, mas era um sorriso frágil, incômodo. — Eu... senti saudade. Posso entrar?

— Claro! Claro que pode... só... — Ela olhou para dentro da casa, meio perdida, como se tentasse decidir se era melhor me deixar entrar ou correr e avisar os meus pais.

Entrei.

E a primeira coisa que senti foi o peso.

A mansão podia estar de pé, mas dentro dela... tudo estava desmoronando.

O ar estava denso. O silêncio, pesado demais para uma casa que costumava ter música, conversas e cheiros de comida boa. Caminhei pelo corredor até a sala principal e parei na porta, o coração descompassado.

Minha mãe estava ali.

Sentada em uma poltrona reclinável branca, magra demais, pálida demais, com as pernas cobertas por uma manta leve. Um soro pendia ao lado dela, e dois enfermeiros estavam por perto, ajustando alguma coisa. Ela olhava para a janela, perdida em pensamentos, até me ver.

Seu rosto mudou. Primeiro susto. Depois, a emoção. E por fim... medo.

— Ellen? — a voz dela saiu fraca, mas carregada de surpresa.

Eu corri até ela. Me ajoelhei ao seu lado, segurando sua mão com cuidado. Meus olhos ardiam, mas eu me recusei a deixar as lágrimas caírem ali.

— Mãe… meu Deus. O que está acontecendo? Você está bem?

— Estou, estou, sim, minha filha. É só uma anemia boba — disse, tentando ajeitar o cabelo como se aquilo escondesse o soro. — Uma besteira. Estou só fazendo um tratamento preventivo, coisa de rotina.

— De rotina, mãe? Dois enfermeiros em casa? — Minha voz falhou.

Ela respirou fundo, evitando me encarar.

— Eu não queria te preocupar. Você tem seus estudos, sua vida… isso aqui não é nada de mais.

— E por que ninguém me disse nada? - a questionei, tentando transparecer forte. 

— Porque você sempre foi nossa menina, Ellen. Sempre quisemos te proteger. É o nosso papel, não é?

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ouvi passos pesados vindo da cozinha. Virei o rosto e vi meu pai.

Ele parou quando me viu. Ficou parado ali, como se não soubesse se deveria sorrir ou se desculpar. E foi aí que vi o quanto ele estava diferente. As olheiras profundas, os ombros caídos, a barba malfeita... nada naquele homem lembrava o pai elegante e invencível que eu conhecia.

Levantei e fui até ele. Não disse nada. Só abracei.

Ele ficou rígido por um segundo e então me envolveu nos braços. Forte. Como se, por um instante, deixasse cair toda a armadura.

— Vim passar um tempo aqui com vocês — murmurei contra seu ombro.

— Mas... e a faculdade?

— Isso pode esperar. Vocês não. — Soltei o abraço e olhei para os dois. — Eu estou aqui agora. E não vou a lugar nenhum.

Eles trocaram um olhar entre si. Aquela mistura de alívio, constrangimento e, no fundo, saudade. Sabiam que não podiam mais esconder. Sabiam que, de alguma forma, eu tinha descoberto.

Ficamos em silêncio por alguns segundos.

E foi nesse silêncio que uma coisa se clareou dentro de mim.

Até aquele momento, eu era sustentada por eles. Vivendo uma vida confortável, sem questionar de onde vinha tudo. Agora era minha vez. Não importava como. Não importava quanto custasse.

Eu não ia mais depender de mesadas, favores ou mentiras bondosas. Eu ia trabalhar, me virar, dar um jeito.

Eu ia cuidar deles.

Assim como eles cuidaram de mim.

Era a minha hora de fazer algo por eles, era minha hora de mudar tudo a nosso favor.

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