Nove anos pareciam um sonho que nunca acabava. Eu e Rafael, o melhor amigo de infância da Aurora, tínhamos vivido tudo juntos - desde a adolescência até o momento em que estávamos quase nos casando.
Tudo corria bem, até aquela noite em que o destino resolveu pregar uma peça.
Naquele dia, fui buscar Rafael num bar onde ele estava com os amigos, como sempre fazia. Quando cheguei na porta do camarote, ouvi risadas e brincadeiras de mau gosto antes mesmo de entrar.
— Ei Rafael, sua ex paixão voltou do exterior. Vai continuar com a segunda opção ou vai tentar ter as duas? — A voz era debochada, como quem conta piada.
Fiquei paralisada do lado de fora. Senti um nó na garganta enquanto outra voz completava:
— O cara é gênio! Quando a Mariana foi embora, você agarrou a Natália, a irmã da sua melhor amiga. Nove anos é tempo pra caramba, hein? Agora que a verdadeira voltou, pode aposentar a reserva.
A resposta de Rafael veio cortante:
— Quem mandou a Mariana dizer que eu nunca superaria ela? Peguei a primeira substituta que apareceu para provar que ela estava errada!
Substituta. Para ele, era isso que eu era.
No dia seguinte, na festa de boas-vindas da Mariana, Rafael segurou minha mão com força fingindo normalidade. Ele me tratava com cuidado exagerado, e todos comentavam como ele “adorava a irmãzinha”. No entanto, quando Mariana saiu chorando do salão, ele me empurrou da escada como se eu fosse lixo.
Caí com o tornozelo torcido, vidros de garrafa quebrados enterrando na minha perna. No meio daquela gente chique, ninguém nem olhou. Me arrastei até a porta sangrando, até que um segurança assustado chamou a ambulância.
Em casa, depois do hospital, abri a caixa trancada que Rafael sempre escondia. Fotos dele com Mariana em praias, festas, abraços que nunca me deu. Cada imagem era um soco no estômago.
Liguei para Aurora no exterior:
— Aceito o casamento arranjado. Podem começar os preparativos.
Do outro lado, a voz sonolenta de Aurora endureceu:
— Natália, o que fizeram com você?
A fisgada no tornozelo e o aperto no peito me apertavam feito uma viseira. Engoli seco e puxei um sorriso torto, respondendo:
— Relaxa, só tive um clique. Você sempre soube o que é melhor. O escolhido da família com certeza é top.
Do outro lado, ouvi Aurora soltar o ar preso.
— Nossa, Natália! Demorou, hein? Vem logo para gente marcar um café com ele, depois a gente acerta...
Meti o pé no freio antes que ela completasse:
— Dispensa o encontro. Já marca tudo direto: festa de noivado, data do casório. Estou voltando semana que vem.
A voz dela subiu de tom, igual criança com presente novo:
— Maravilha! Vou caprichar na organização. Falando nisso... Esbarrou no Rafael esses dias? Aposto que o playboy deve estar saltitando de felicidade com o retorno da ex-amada perfeita. Se ver ele, manda um alô sobre o noivado. Vai que eles aparecem juntos para festa, né?
O mundo desabou. Aurora sempre soube da tal mulher. Tudo fazia sentido agora – as desculpas esfarrapadas para esconder nosso namoro. Veio à mente aquela vez que ele zoou:
“Se Aurora descobrir que estou ficando com você, me mata na hora.”
O que antes era piada entre lençóis agora cortava como caco de vidro.
— Aurora, deixa para lá. Nem perde tempo. A gente mal se fala, é só conhecido.
Mal tinha acabado de falar, a porta rangeu ao abrir. Rafael invadiu o espaço, me envolvendo pelos ombros por trás sem preâmbulo. O cheiro amadeirado de seu perfume se misturou ao sussurro áspero que arranhou meu ouvido:
— Com quem é só conhecido, amor?
A voz mantinha aquela doçura habitual, mas agora tingida de algo cortante. Cada sílaba se transformava em lâmina de gelo que me trespassava as costelas.