Mundo de ficçãoIniciar sessãoHelena Narrando...
O dia amanheceu e eu já estou aqui de pé, terminando de me arrumar para ir trabalhar. Passei a madrugada rolando na cama, com a mente inquieta, como se cada pensamento fosse uma agulha espetando meu corpo. Meus olhos ardiam, pesados, mas mesmo assim não consegui me desligar. Mas enfim, espero de verdade que hoje eu não veja o Lorenzo Vasconcellos, espero que ele tenha esquecido do ocorrido de ontem e eu possa continuar trabalhando como uma pessoa invisível, onde não sou vista por ninguém, muito menos por ele. Saí do meu quarto, com a mochila nas costas e fui até o quarto da minha mãezinha. Abri a porta com cuidado e lá estava ela. A cada dia que passa, minha mãe parece encolher mais, como se o corpo dela estivesse se apagando pouco a pouco. Me aproximei devagar, ajeitei a coberta que teimava em escapar de seus ombros finos e senti um nó se apertar no meu peito. — Já tá de pé, filha? — ela murmurou, a voz rouca, meio perdida entre o sono e o cansaço. — Tô, mãe, eu já tô indo e… você precisa descansar.... tá, mais tarde estou de volta... — Sorri de leve, aquele sorriso forçado que aprendi a usar pra esconder o desespero. Ela sorriu fraco, e fechou os olhos de novo, mas eu sabia que não dormia. Minha mãe carrega a mesma insônia que eu, a mesma preocupação que nunca se cala. Eu sou os braços dela agora, as pernas, a força. Se eu fraquejar, tudo desmorona. Senti uma lágrima escapar dos meus olhos, mas limpei de imediato. Me aproximei e dei um beijo na sua testa e dei as costas, saindo dali e intercedendo pra que quando eu volte, minha mãe ainda esteja aqui comigo e que esse câncer agressivo não tenha consumido ela. Saí de casa, ajeitei a mochila nas costas e fui para o ponto de ônibus, como sempre, eu ando de cabeça baixa, perdida nos meus pensamentos. O ônibus demorou quarenta minutos pra passar, e quando chegou, já vinha lotado, como sempre. Entrei espremida, o corpo colado em desconhecidos, o ar pesado de suor e pressa. Me segurei na barra de ferro, tentando equilibrar o corpo a cada freada brusca. O caminho até o centro da cidade é sempre o mesmo: prédios se multiplicando, carros importados cortando as avenidas, gente com roupas caras e olhares apressados, como se vivessem em um mundo que nunca vai tocar o meu. E no meio desse contraste, eu, com meu uniforme cinza, segurando firme minha bolsa, torcendo pra que o dia de hoje não seja um desastre. Quando o ônibus finalmente parou em frente ao espelhado arranha-céu da V-Tech, respirei fundo e desci do ônibus. É impressionante como esse prédio sempre me intimida. Não importa quantas vezes eu entre aqui. O reflexo da fachada é tão perfeito que chega a doer; um monumento de vidro e aço, que brilha como se fosse feito pra lembrar ao resto do mundo que o poder mora lá dentro. Atravessei a entrada junto com outros funcionários. A recepção, como sempre, parecia mais uma galeria de arte do que um local de trabalho. Tapetes felpudos, obras modernas nas paredes, lustres gigantes descendo do teto de mármore. O perfume do ambiente é caro, controlado, quase sufocante. Um luxo tão distante da minha realidade que chega a me dar vontade de rir. Mas eu não rio. Eu baixo a cabeça e sigo. Passei pelo detector, entreguei minha identificação, e caminhei em direção ao elevador de serviço. É por ali que nós, “os invisíveis”, nos movemos. Enquanto os executivos sobem pelos elevadores panorâmicos, com vista pra cidade, a gente se aperta nesse cubículo metálico. Dois mundos coexistindo no mesmo espaço, mas sem nunca se tocar de verdade. Quando cheguei no andar do setor de inovação, aquele que mais respira tecnologia, já senti a tensão no corpo. Ontem… ontem eu tinha derrubado café. Em cima dele. O CEO. O intocável. O homem que todo mundo teme e respeita como se fosse um deus moderno. Lorenzo Vasconcellos. Só de pensar no nome, meu estômago revirou. Não era medo apenas. Era algo maior, mais sufocante. Ele me olhou como se pudesse atravessar minha alma, como se cada segredo meu estivesse exposto nos olhos dele. Não sei explicar. Mas sei que nunca tremi tanto diante de alguém. Balancei a cabeça, afastei os pensamentos e comecei meu turno limpando os corredores, passando pano no chão impecável que nunca parece sujo de verdade. O silêncio aqui é diferente, é cheio de teclados batendo, vozes firmes, ordens que circulam pelo ar. Todo mundo parece correr contra o tempo, como se cada segundo valesse milhões. E talvez valha mesmo. Enquanto esfregava o chão, me peguei observando de relance os funcionários vestidos de forma impecável, falando inglês, alemão, línguas que eu mal entendo. Eles não me veem. Passam por mim como se eu fosse parte da mobília. E isso deveria me proteger. Mas, desde ontem, sinto que não é bem assim. Porque ele me viu. E eu não sei se queria ou não ter sido vista. Meu coração b**e mais rápido cada vez que eu lembro do olhar dele queimando em cima de mim. Da forma como ele falou, ríspido, mas com uma intensidade que me fez sentir coisas que não deveria. Balancei a cabeça, tentando afastar esses pensamentos novamente. Não posso me perder nisso. Eu não sou nada. Só uma faxineira. Só a filha de uma mulher doente que precisa colocar comida na mesa. Não posso esquecer meu lugar. Contínua...






