Mundo ficciónIniciar sesiónO táxi seguia silenciosamente pelas ruas elegantes do bairro de South Kensington, um dos mais charmosos e sofisticados de Londres, conhecido por seus edifícios vitorianos impecavelmente preservados, museus, cafés discretos e jardins floridos. Era ali, em uma rua paralela à Gloucester Road, que Alicia Parker morava sozinha há pouco mais de dois anos.
O prédio era discreto, de fachada em tijolos claros, com janelas altas e floreiras nas sacadas de ferro fundido. Não chamava atenção aos olhos desatentos, mas por dentro, cada apartamento fora reformado com requinte moderno, respeitando a estrutura original. Alicia desceu do carro, pagou em silêncio e subiu os três lances de escada até o seu andar. Não era fã de elevadores — uma mania que herdara da mãe, que dizia que subir escadas mantinha a mente alerta. Girou a chave na fechadura, empurrou a porta branca e entrou. O aroma familiar do seu perfume de ambiente, amadeirado com notas de jasmim, a recebeu como um abraço. Seu apartamento era um reflexo fiel de quem ela era. Elegante, contido, harmonioso. A sala tinha tons neutros: bege, creme e cinza suave. O sofá em linho claro ficava posicionado diante de uma estante embutida repleta de livros jurídicos, romances ingleses, algumas edições de poesia francesa e caixas organizadoras de couro marrom. Uma luminária de piso minimalista, um tapete persa antigo — herdado da avó — e uma poltrona bege clara completavam o ambiente. Na parede oposta, uma tela em tons azuis abstratos trazia um toque contemporâneo. Havia poucas fotos. Uma delas: ela e os pais em frente ao Royal Courts of Justice, no dia em que ela passou na Ordem. A cozinha, aberta para a sala, era compacta e funcional. Bancada de pedra branca, armários embutidos em madeira clara, utensílios organizados com precisão britânica. Tudo sempre limpo, no lugar, como se vivesse em permanente prontidão. Ela pendurou o casaco na entrada, retirou os sapatos e caminhou descalça até o quarto. Ali, tons de branco e lavanda dominavam. A cama estava perfeitamente arrumada — como sempre. O edredom plissado, os travesseiros dispostos com simetria, a escrivaninha ao canto com seu notebook fechado e uma vela apagada sobre um livro de Tolstói. Era seu mundo. Seu refúgio. Sua ordem. Mas agora… Algo em sua alma estava desarrumado. Ela sentou-se na beirada da cama, com os ombros tensos e a cabeça pendida. Como isso aconteceu? Como eu, logo eu, fui perder o controle assim? Desde jovem, sempre fora recatada. Pacata, até. Educada em escolas particulares, filha de diplomata inglês com uma professora de Literatura, cresceu entre chá da tarde, bibliotecas e passeios aos domingos pelo Hyde Park. Nunca foi do tipo que bebia até cair. Nunca foi impulsiva. Sempre teve planos. Cronogramas. Disciplina. E, no entanto, … Bastou uma noite. Uma taça a mais. Um olhar a mais. E ela havia se entregado. Sem saber quem ele era. Sem proteção. Sem lógica. Sem passado… nem futuro. Ela se levantou, foi até o banheiro e lavou o rosto com água fria. Encarou o espelho como quem confronta uma estranha. Por que isso me abala tanto? Por que estou tão preocupada com o que ele pensa de mim? Alicia sempre fora prática. Nunca romantizou sexo. Achava o termo “se entregar” antiquado. Mas agora, sabia que havia se entregado de verdade. Porque Victor — embora só soubesse agora seu nome — a tocou em um lugar mais fundo do que seu corpo: sua alma. E o pior… Ele era o cliente. Ele era o dono da empresa. Um homem de poder, influência e charme avassalador. E ela? A advogada da equipe enviada para assessorá-lo. Será que ele vai me ver como fraca? Será que pensa que fui uma diversão fácil? Sentou-se na poltrona perto da janela, puxou a manta do encosto e cobriu-se até os ombros. Eu não sou essa mulher… Mas com ele, por uma noite, eu fui. Respirou fundo, olhando a neblina lá fora cobrir os telhados de telhas escuras de South Kensington. Ela precisava se recompor. Voltar a ser Alicia Parker. Advogada. Racional. Serena. Intocável. Mas como se esquecer do único homem que a fez sentir tudo o que ela nem sabia que existia? Ela fechou os olhos. E a imagem dele voltou. Sussurrando, pressionando, tomando. Sim… Ela havia se perdido. E não sabia como — ou se queria — se encontrar de novo. O toque da campainha a fez sobressaltar. Alicia se levantou num pulo, como se tivesse sido pega em flagrante pelos próprios pensamentos. Puxou a manta para o sofá rapidamente, ajeitou o cabelo com as mãos e caminhou até a porta. Olhou pelo olho mágico e, ao ver quem era, soltou um suspiro leve. Abriu a porta. — Lorena! A amiga, como sempre, entrou antes mesmo de ser convidada, sorrindo, com uma garrafa de vinho branco gelado numa mão e duas taças na outra. — Surpresa! Vim comemorar! — disse, sacudindo a garrafa como um troféu. — Você achou mesmo que eu ia te deixar sozinha depois dessa conquista? Impossível! — Que conquista? — Alicia perguntou, tentando disfarçar o tom confuso. — Como assim, Alicia? O contrato com a D’Abruzzi Holdings, claro! O escritório fechou! Agora só falta o CEO decidir se vai querer uma equipe jurídica permanente lá dentro ou se vamos seguir com tudo de fora. Mas o mais importante já aconteceu! — ela girou no meio da sala, como se fosse uma bailarina empolgada com um prêmio. Alicia sorriu, mas por dentro, o nome D’Abruzzi a fez sentir um frio subir pela espinha. — E o mais curioso… — Lorena continuou, já se dirigindo para a cozinha como se estivesse em sua própria casa — … é que todo mundo só fala do CEO. Que homem, minha amiga! Discreto, charmoso, educado, aquela elegância que só europeu tem, sabe? E o sotaque? Aquele inglês perfeito… mas com um toque italiano que, olha… arrepia. Alicia permaneceu em silêncio, apoiada na quina da parede, observando Lorena abrir a gaveta das rolhas como se morasse ali. — Você o viu na festa? — a amiga perguntou de repente, virando-se com uma sobrancelha arqueada, já encaixando o saca-rolhas na garrafa. A pergunta a atingiu como um tiro. Alicia hesitou. — Não… — respondeu com um leve desvio no olhar. — Lembra que falei que bebi e passei mal. Tive uma tontura e saí mais cedo. Não consegui aproveitar muito. Lorena parou por um instante, a garrafa a meio caminho, e a encarou. — Ué… que estranho. Porque ele estava lá desde o início. Falaram que chegou cedo, até conversou com o Dr. West, do financeiro. Como assim você não o viu? Alicia mordeu o lábio. Pensou em inventar qualquer coisa. Pensou em contar a verdade. Pensou em dizer que sim, ela viu… e mais do que viu. Mas se conteve. — Deve ter sido antes de eu chegar. Ou talvez... — hesitou. — Talvez eu tenha cruzado com ele e nem tenha percebido. Não conhecia o rosto dele. Mentira. Conhecia cada centímetro daquele rosto agora. Lorena serviu as taças e caminhou até ela. — Brindemos! — disse, estendendo uma taça. — Ao novo contrato? — Alicia arriscou, tentando sorrir. — Ao novo contrato, à equipe brilhante que você representa e… ao CEO mais gato da Europa! — disse Lorena, piscando. Alicia riu, mas sua taça tremia levemente. "Se você soubesse, Lorena…" "Se soubesse que ele já esteve entre as minhas pernas, sussurrando palavras em italiano enquanto eu esquecia quem eu era." Tomou um gole grande, deixando o vinho gelado escorrer pela garganta como se apagasse o fogo interno. — Você está estranha, disse Lorena, estreitando os olhos. — Tem algo que não está me contando, tenho certeza. Alicia soltou uma risadinha curta, tentando se esquivar com leveza, mas a amiga não caiu. — Lorena… para. Tô só cansada. A tensão do dia, a reunião, o susto que foi lidar com tudo isso tão de repente… — Alicia, por favor. A gente se conhece há mais de cinco anos. Eu sei quando você está fingindo. Olha só pra você — está com o olhar perdido, inquieta, e você quase derrubou a taça quando brindou! Alicia desviou o olhar, respirou fundo e apoiou a taça na mesinha de centro. Lorena a observava como uma investigadora. Sabia que havia algo por trás daquela fachada impecável. — Tudo bem… eu… eu preciso te contar uma coisa. — Alicia começou, sua voz baixa, controlada. — Mas não posso entrar em detalhes. É sério. Eu nem sei como explicar. Lorena arregalou os olhos e sentou-se mais ereta no sofá, segurando a taça com as duas mãos. — Meu Deus. Fala logo. Você transou com alguém? — perguntou quase sussurrando, como se o apartamento pudesse ouvir. Alicia arregalou os olhos, escandalizada. — Lorena! — Ai, desculpa. É que… você tá com uma energia diferente. Um brilho estranho nos olhos. Tipo… “mundo virou de cabeça pra baixo em 24 horas”. Eu conheço esse olhar. É o olhar “fiz algo que jamais imaginei fazer”. Alicia mordeu o lábio inferior, encarando as próprias mãos. Não respondeu. O silêncio foi o suficiente. — VOCÊ TRANSOU COM ALGUÉM! — Lorena berrou, jogando a cabeça para trás. — Alicia Parker! Em plena festa?!? Com quem? Você vai me matar de curiosidade, mulher! — Shhh! Fala baixo, sua doida! — Alicia riu, quase envergonhada, tentando abafar a gargalhada da amiga. — Não foi bem na festa. Foi... foi depois. Ou antes. Sei lá. Nem sei explicar. Eu saí um pouco… estava passando mal. Lorena arregalou ainda mais os olhos. — Você tá me dizendo que… saiu da festa e… encontrou alguém?! Quem? Você o conhecia? Alicia hesitou. Sua voz quase não saiu. — Não. Não o conhecia. Não sei quem ele era. Lorena piscou várias vezes. Seu queixo quase caiu no colo. — Alicia. Parker. Você dormiu com um desconhecido? Em Londres?! — Não dormi. — ela rebateu automaticamente. — Foi… intenso. Rápido. Mas foi. Lorena estava em choque. — Você ficou com um homem que não sabe quem é… e nem o nome dele?! Alicia desviou o olhar, envergonhada. — Eu menti pra ele. Disse que meu nome era Lúcia. Lorena agora já estava boquiaberta, mas também maravilhada. — Você mentiu o nome?! Meu Deus, quem é você e o que fez com a Alicia? As duas caíram na risada. Mas havia um fundo de nervosismo e vulnerabilidade no riso de Alicia. Lorena percebeu. E, como boa amiga, segurou sua mão com doçura. — Ei… agora falando sério. Você está bem? Não está se sentindo usada, culpada ou arrependida? Alicia ficou em silêncio por alguns segundos. Depois, respondeu: — Me sinto… diferente. Não me arrependo, porque foi o momento mais… mais intenso da minha vida. Eu nunca senti aquilo antes, nem com o Adrian, nem com ninguém. Me senti desejada, viva, livre. Mas ao mesmo tempo, estou me sentindo vulnerável. Expus algo de mim que nunca imaginei expor. Me entreguei de um jeito que… eu nem sabia que existia em mim. Lorena apertou sua mão. — Você é humana. Linda, sensível, forte. Você não precisa se punir por viver. Mas… só me promete uma coisa? — O quê? — Que se reencontrar esse homem… vai se proteger. E vai lembrar que você é muito mais do que qualquer noite de prazer. Alicia assentiu, emocionada. Mal sabia Lorena que aquele homem já havia reaparecido. E que agora... estava no comando.






