A Mansão Montenegro erguia-se imponente à luz do crepúsculo, suas paredes de pedra pálida banhadas por um véu azul acinzentado que o céu da noite recém-chegada lhe conferia. As sombras dançavam sob as janelas altas e envidraçadas, onde cortinas pesadas se mantinham cerradas, como se o próprio casarão guardasse segredos profundos, temeroso de permitir que o mundo exterior os devassasse. Um silêncio denso pairava sobre os degraus de mármore que conduziam à entrada principal, onde uma porta de madeira esculpida parecia desafiar qualquer visitante a adentrar.
No jardim, uma fonte antiga murmurava suavemente, suas águas caindo em um ritmo hipnótico, como se ecoasse os sussurros esquecidos das gerações que já passaram por ali. Em torno da fonte, flores de cores vibrantes brotavam em meio a arbustos cuidadosamente podados, mas a beleza delas parecia fora de lugar, como se fosse uma tentativa falha de esconder a escuridão que pulsava nas entranhas da casa. Ramos de hera e trepadeiras serpenteavam pelas paredes, como mãos invisíveis tentando tomar posse da estrutura, como se a natureza quisesse reclamar aquele monumento da decadência. As janelas do salão de vidro, adornadas por intrincados detalhes vitorianos, refletiam o céu carregado, embora dentro houvesse apenas sombras, um presságio das histórias não contadas que se desenrolaram nos corredores vazios. À medida que a brisa noturna passava, carregando o aroma fresco das flores, havia uma estranha sensação no ar, algo que parecia vibrar abaixo da superfície — uma expectativa, talvez um alerta. Ali, sob a lua que se erguia, a Mansão Montenegro não era apenas uma casa; era um relicário de memórias, lamentos e mistérios ainda vivos, esperando apenas o momento certo para se revelar. Dentro da gloriosa mansão, Bellamina Montenegro repousava em seu quarto, mas o sono não lhe trazia paz. Deitada em sua cama de casal de dossel, as cortinas de veludo estavam abertas, permitindo que a fraca luz lunar e a brisa da noite penetrassem o ambiente abafado daquele verão. Sua camisola rosa claro contrastava com a escuridão do quarto, um reflexo de sua vulnerabilidade diante da vastidão sombria que a cercava. As janelas estreitas e altas estavam entreabertas, deixando a suave brisa noturna sussurrar pelo quarto, tocando sua pele com um frescor temporário que não aplacava a inquietação em seu peito. Bellamina se mexia incessantemente, os lençóis finos se enrolando em suas pernas enquanto ela soltava murmúrios indistintos. Seus olhos estavam apertados, os lábios rosados se movendo como se quisessem dizer algo, mas as palavras nunca se formavam. O quarto, em silêncio absoluto, parecia observar cada movimento seu, como se a própria casa estivesse atenta aos seus suspiros e aos segredos que seu sono tentava revelar. Foi então que, em meio à sua agitação, ela sentiu uma mudança. O colchão ao seu lado afundou levemente, como se o peso de outra pessoa estivesse ali, deitado junto a ela. Um arrepio percorreu sua espinha, e o ar ao seu redor pareceu esfriar de repente, mesmo com o calor da noite. Seus olhos se abriram lentamente, o coração acelerando, enquanto ela se virava, temendo o que pudesse encontrar. Ali, na penumbra ao lado dela, dois olhos vermelhos vibrantes a encararam com intensidade. O sangue de Bellamina gelou em suas veias. Ela tentou gritar, mas o som morreu em sua garganta, transformando-se apenas em um grunhido de puro terror. Seu corpo se encolheu, e seus pulmões lutaram por ar, como se o ambiente ao redor houvesse se tornado sufocante, denso demais para respirar. Antes que pudesse reagir, uma mão gélida e pálida deslizou suavemente até seus lábios. O toque era ao mesmo tempo assustador e hipnótico. Os dedos frios pressionaram sua boca, silenciando qualquer tentativa de protesto. O dono daqueles olhos vermelhos, com uma voz tranquila e sedutora, murmurou perto de seu ouvido, o som suave como um sussurro carregado pelo vento. — Shh... A única palavra foi dita com tal calma que seu medo paralisante transformou-se em uma confusão pulsante. A respiração de Bellamina ficou presa em seu peito enquanto ela encarava aquela presença sombria. Havia algo de sobrenatural, de outro mundo, na criatura ao seu lado, mas ao mesmo tempo, sua voz, sua mão, tinha uma estranha familiaridade, como se não fosse a primeira vez que visitava seu leito. Os segundos seguintes estenderam-se como uma eternidade. Bellamina não ousava mover-se, seus olhos fixos naquela figura misteriosa, em busca de respostas para o que estava acontecendo. A mansão ao redor parecia pulsar, como se ela também estivesse ciente daquela presença, mantendo seus segredos guardados nas paredes ancestrais. — Não tenha medo. — A voz sussurrou novamente, sua tonalidade sedutora trazendo um estranho conforto em meio ao terror. Bellamina sentiu o peso daquela presença ainda mais forte ao seu lado, como se a escuridão ao redor estivesse viva, moldando-se ao corpo que agora a acompanhava. Ela tentava resistir ao pânico crescente, mas algo naquelas palavras a enredam, como uma teia de sombras envolvendo sua mente. — Não tenha medo. —A voz sussurrou novamente, mais próxima. — Não sou o seu pesadelo... sou o seu despertar. Bellamina tentou falar, mas a pressão gélida nos seus lábios a silenciava, e, no fundo, ela sabia que as palavras não seriam suficientes para explicar o que estava sentindo naquele momento. Seu coração batia de maneira descompassada, e sua mente vagava entre o pavor e a estranha atração pela figura diante dela. Os olhos vermelhos continuavam fixos, como se a devorasse com um olhar, estudando cada detalhe de suas emoções. O silêncio no quarto era espesso, interrompido apenas pelo som irregular de sua respiração. A figura ao seu lado, ainda semioculta pela penumbra, finalmente retirou a mão de seus lábios, deixando que o toque gélido se dissipasse como uma névoa que se evapora ao amanhecer. Bellamina, agora com os lábios livres, sentiu a respiração retornar, ofegante e trêmula, enquanto seus olhos permaneciam fixos nos daquela criatura. Porém, mesmo com a retirada do toque, ela sentia uma força invisível a segurando ali, incapaz de fugir ou de se levantar — Quem... quem é você? — A voz de Bellamina saiu rouca, fraca, como se tivesse sido arrastada para fora de si com grande esforço. As palavras mal cortavam o silêncio pesado da sala. A figura ao lado dela inclinou a cabeça ligeiramente, como se estivesse ponderando a pergunta, e então se moveu para fora das sombras, revelando-se à luz da lua que filtrava pela janela. Era uma mulher de traços delicados, quase etéreos, com pele pálida como mármore, contrastando com o brilho intenso dos olhos vermelhos. Seus cabelos loiros e curtos caíam em suaves ondas ao redor de seu rosto anguloso, e seus lábios curvavam-se em um leve sorriso que carregava tanto uma promessa quanto uma ameaça. — Eu sou o que você sempre sentiu na escuridão. — Respondeu ela, a voz soando como um murmúrio distante, mas ainda assim claramente audível. — Sou o desejo que sempre esteve no fundo da sua alma. A sua libertação moral, e o anseio desesperado de fugir dessa realidade. Bellamina sentiu um arrepio correr por sua espinha ao ouvir aquelas palavras. Uma parte de si queria negar, queria acreditar que aquilo não passava de um pesadelo, mas outra parte, mais profunda e antiga, reconhecia o que ela dizia. Ela sempre sentiu essa presença, mesmo sem nunca tê-la visto antes. Nos sonhos mais perturbadores, nas noites mais solitárias, havia algo que a cercava, a observava, a aguardava. — Eu não te chamei…— Murmurou Bellamina, sua voz vacilante. O sorriso da criatura se ampliou ligeiramente, mas sem perder a sua frieza. — Você não precisava chamar. — Ela respondeu, sua voz carregada de uma tranquilidade inquietante. — Sua alma já estava ligada à minha muito antes de você nascer. Somos parte de um mesmo destino, de uma mesma história antiga, esquecida nas brumas do tempo... mas agora, Bellamina, chegou a hora de lembrar. A jovem sentiu seu corpo estremecer. Uma parte dela queria fugir, gritar por ajuda, mas outra, mais profunda, permanecia imóvel, como se estivesse presa por um feitiço antigo e inquebrável. Seus olhos não conseguiam se desviar daqueles olhos rubros, que pareciam carregar séculos de conhecimento e segredos indecifráveis. A figura inclinou-se ainda mais perto, até que Bellamina pudesse sentir o frio que emanava dela. Não era um frio comum, mas algo que parecia ressoar com o próprio vazio, com a ausência de vida. Ela ergueu a mão, desta vez não para silenciá-la, mas para acariciar suavemente seu rosto, traçando o contorno de sua mandíbula com dedos gélidos que deixavam um rastro de gelo invisível sobre sua pele quente. — Você pertence a mim, Bellamina. — Sussurrou ela, as palavras deslizando pelo ar como um veneno doce. Antes que Bellamina pudesse responder ou mesmo processar o significado daquelas palavras, ela se aproximou ainda mais, seus lábios quase tocando os dela, e a sala pareceu mergulhar em um silêncio absoluto, como se o mundo tivesse parado para assistir ao momento inevitável. A brisa suave que antes soprava pela janela cessou por completo, e a luz da lua ficou mais pálida, quase desaparecendo. E então, com um movimento lento e calculado, ela inclinou-se ainda mais, seus lábios roçando os de Bellamina em um toque frio e sedutor. O tempo pareceu parar. A jovem sentiu sua mente se encher de uma escuridão profunda, densa e inescapável, como se estivesse sendo arrastada para um lugar além do sonho, além da realidade, para um espaço onde o próprio conceito de tempo e identidade se diluía. — Eu serei seu despertar... e sua ruína. — Ela sussurrou, suas palavras reverberando em sua mente enquanto Bellamina sentia seu corpo ceder ao peso daquela presença, seu espírito oscilando à beira de um abismo. A garota, incapaz de resistir, deixou-se cair nas profundezas daquela escuridão, sem saber se algum dia encontraria o caminho de volta.