Capítulo 6

Aina

—Vamos mais à frente — Bruno chamou a minha atenção e caminhou cautelosamente até o meio da pradaria, onde dezenas de cudos e gnus pastavam tranquilamente.

—Nunca fiquei tão perto de animais selvagens — admiti.

—Há sempre uma primeira vez para tudo. — Ele estendeu sua mão para acariciar um pequeno filhote de cudo. — O importante é não permitir que os animais te vejam como uma ameaça. Evite olhar nos olhos deles ou encará-los por mais tempo que o necessário.

Concordei em silêncio.

—Acho que vou precisar de um caderno para anotar essas dicas — comentei.

Bruno balançou a cabeça negativamente.

—Quando se trata de sobrevivência na savana, acredito que o melhor tipo de aprendizado seja a prática. Você precisa guardar tudo na cabeça. — Ele bateu na sua têmpora, perto da linha onde começavam seus fios de cabelos castanhos.

De repente, o filhote de cudo que Bruno acariciava se afastou e correu até a sua mãe. O homem observou ao seu redor e franziu o cenho quando um grupo de antílopes se agitou mais à frente.

—Precisamos ir — ele disse com a voz séria e segurou o meu braço, me puxando para a trilha pela qual viemos.

—O que está acontecendo?

—Os animais estão assustados — sussurrou enquanto me levava em direção a encosta do barranco sem tirar os olhos da pradaria que estava à nossa frente. — E suspeito que o motivo não seja a nossa presença.

—Acha que há algum predador aqui? — Engoli em seco.

—Possivelmente.

Poucos segundos depois que Bruno disse aquilo, seis hienas saíram dos arbustos no lado esquerdo da pradaria, caminhando sorrateiramente até um gnu macho. Ela tentou morder sua perna, mas levou um coice no focinho e o antílope correu para longe. Imediatamente, todos os animais que pastavam ali se agitaram e começaram a correr para todos os lados. Alguns vieram em nossa direção e eu teria sido pisoteada se Bruno não me puxasse para trás do seu corpo.

—Em uma situação como esta, nunca fique parada enquanto pensa no que fazer — me alertou. — Raciocine enquanto corre.

Ele segurou minha mão e correu em direção a trilha por onde viemos, disputando espaço entre os antílopes que corriam ao nosso redor e levantavam pedaços de grama com seus cascos, alguns cudos até pulavam sobre nossas cabeças. Era assustador e magnífico.

—Bruno, eu não quero morrer! — gritei desesperada, ao ver que uma hiena estava quase nos alcançando.

—Então continue correndo — gritou por cima do ombro.

Minutos depois o homem me puxou para que eu ficasse na sua frente e me empurrou em direção à encosta da colina. Quase desequilibrei, mas minhas botas de caminhada mantiveram meus pés fixos no chão.

— Continue, Aina. Não perca o foco — ele me encorajou quando começamos a subir a trilha íngreme.

Infelizmente, alguns cudos também tentavam subir por ali e um deles passou correndo ao meu lado — o que me fez perder o equilíbrio — meus pés derraparam no cascalho e eu virei para trás naquela encosta íngreme. Já estava esperando a queda quando duas mãos me seguraram — uma empurrou minhas costas e a outra o meu bumbum — me mandando para cima novamente.

—Suba logo — Bruno gritou atrás de mim e parecia tão desesperado para escapar daquela caçada quanto eu.

Após mais alguns segundos de agonia, finalmente cheguei ao topo da colina onde o jeep estava, não hesitei em correr até o veículo e entrar nele. Bruno fez o mesmo que eu e trancou as portas quando se acomodou no banco do motorista. O homem estava cansado e algumas gotas de suor escorriam em sua testa devido ao calor que já se fazia presente naquele início de manhã.

—Isso acontece com muita frequência? — perguntei, enquanto observava a manada correndo próxima ao jeep.

—Ficaria surpresa se eu dissesse que sim? — respondeu, ofegante.

—Se sabia que era perigoso por que desceu até lá?

—Estou te ensinando a sobreviver aqui. Não aprenderá nada se não ficar de frente com o perigo algumas vezes. — Ele fez uma pausa e virou sua cabeça para olhar os animais que corriam do lado de fora. — O que aprendeu com essa experiência?

— Que não devo descer um morro íngreme para fazer carinho nos animais — respondi, ironicamente.

Bruno ficou em silêncio, refletindo sobre a minha resposta e assentiu.

—Exato, não chegue perto dos animais a menos que seja extremamente necessário. E se você estiver em uma situação de perigo, corra para um local seguro como se a sua vida dependesse disso, porque ela com certeza depende.

Concordei em silêncio e me movimentei no banco um pouco inquieta. Estranhamente eu ainda estava sentindo o calor do toque de Bruno em minha nádega esquerda — onde sua mão me segurou para impedir que eu escorregasse naquele barranco. Não fiquei incomodada pelo seu toque, mas me assustei com a sensação que ele me causou. Minha parte irracional e lasciva queria sentir aquilo outra vez, embora o meu cérebro me alertasse que eu praticamente acabei de conhecer o sujeito — também não posso esquecer do fato que ele é o meu professor.

—Acho que os animais já se acalmaram — Bruno disse, me tirando dos meus pensamentos confusos.

Olhei para o cenário lá fora e percebi que não haviam mais antílopes correndo por todos os lados. Suspirei, aliviada.

— Então podemos seguir com a aula — sugeri

—Honestamente, pensei que me pediria para te levar até a cidade depois dessa situação — admitiu com a voz baixa.

—Eu decidi que vou ficar. — Voltei meu olhar para ele a tempo de ver um rápido sorriso curvando os seus lábios que estavam levemente escondidos pela barba por fazer.

—Tem certeza? Não desistirá no meio do caminho?

—Quando começo uma coisa, eu vou até o fim — afirmei de maneira confiante.

—Certo, então vamos começar a nossa primeira aula. — O homem ligou o carro e dirigiu para longe dali.

Engoli em seco, enquanto tentava adivinhar que tipo de experiência quase mortal ele tinha em mente. 

Bruno

Apertei minhas mãos no volante, tentando esquecer o que senti quando toquei a bunda de Aina por acidente no momento em que a ajudei a subir pela trilha. O calor e aquela sensação macia ainda estavam na palma da minha mão esquerda e quanto mais eu tentava esquecer, mais nítida a lembrança se tornava.

Bufei irritado, enquanto dirigia pela estrada de terra com cascalhos que deixavam o terreno um tanto irregular. Eu estava levando Aina para conhecer uma poça que ficava cheia nesta época do ano e lhe explicar sobre os animais que passavam por ali. Seria bom para ela observar a rotina das espécies locais e eu aproveitaria o momento para lhe dar um relatório sobre os biomas que haviam na região.

Embora eu soubesse que Aina queria conversar, fiquei em silêncio durante todo o trajeto. Eu não queria que ela iniciasse uma conversa aleatória como fez hoje cedo e precisava manter o profissionalismo. Ser gentil com Aina era uma coisa, deixar uma brecha para que ela entrasse em minha vida era algo totalmente diferente.

Mesmo que eu não quisesse admitir, estava começando a achar aquela mulher interessante — Talvez, o fato dela também gostar de animais ajudou um pouco nesse processo... ou foi apenas a simpatia e empolgação que ela esbanjava a todo momento. — Uma coisa era certa: o meu mal humor estava desaparecendo à medida que eu interagia com Aina. Eu tinha consciência de que estava entrando em uma zona perigosa. O meu corpo ganhava vontade própria toda vez que ela me olhava, sorria ou até mesmo me encarava com raiva. Eu simplesmente não conseguia entender o porquê de estar reagindo assim com alguém que conheci há apenas um dia.

Isso é a porra da carência. — Refleti internamente, mas por uma estranha razão não me convenci daquelas palavras. Desde que fui traído não senti necessidade de estar em outro corpo e jurei que não me envolveria com mais ninguém, mesmo que fosse apenas por uma noite. — Por que estou tão inquieto ao lado de Aina? Por que não paro de pensar nela desde que a vi atrás daquela maldita caixa registradora? Se eu não estivesse tão desconfiado da minha loucura precoce eu até suspeitaria que estou me apaixonando... Não... como eu poderia? Acabei de conhecê-la! — Pensar naquela possibilidade apenas aumentou a teoria de que eu estava enlouquecendo com o passar dos anos.

*****

Estacionei o carro há cem metros de distância da poça que estava cheia após a chuva da noite anterior. Aina arquejou ao ver uma família de quatro elefantes se refrescando ali. Ela abriu a porta do carro e se preparou para descer, mas eu a impedi e segurei o seu braço.

—Não iremos até lá — avisei.

A expressão animada da mulher se desfez e por um momento eu quis voltar atrás na minha palavra e levá-la até mais perto da poça. Foco, Bruno. Não se deixe vencer ainda...

—Por que não? Pensei que você fosse um aventureiro que não tivesse medo de se misturar entre os animais. — Ela franziu o cenho.

—Até eu sei reconhecer o perigo — Olhei para os elefantes ao longe. — Eles parecem pacíficos, mas se ficarem irritados nem este carro nos protegerá do ataque.

—Então não devo chegar perto dos elefantes em hipótese alguma? — Aina perguntou, enquanto olhava para os animais, a porta do carro já estava aberta.

—Não — respondi. — Se ver um elefante enquanto anda pela savana, mantenha vários metros de distância e, se possível, vá para a direção oposta ao animal. Se um deles cruzar o seu caminho, fique parada e não faça movimentos bruscos até que ele vá embora.

—Certo — ela assentiu. — Estou começando a achar que precisarei de um caderno para anotar todas as instruções.

—Tem uma agenda com caneta no porta-luvas.

Aina abriu o compartimento no painel e tirou dali a minha agenda de brochura e capa preta com uma caneta azul que ficava presa a ela por um barbante. Fazia muito tempo que eu não a usava, honestamente, nem me lembrava do que estava escrito ali, mas tinha certeza que não devia ser algo importante.

Depois de folhear a agenda por alguns instantes, Aina franziu o cenho e sorriu logo em seguida.

—O que essa Helena fez para merecer tanto ódio? — perguntou, enquanto analisava as folhas.

Franzi o cenho e tirei o pequeno caderno das mãos da mulher imediatamente. Ela reprimiu uma risada e balançou a cabeça com uma expressão divertida no rosto.

Senti uma imensa vergonha quando meus olhos pousaram no interior da agenda. Haviam vários desenhos de uma mulher com chifres e cara de má e ao lado desses rabiscos horríveis estavam escritos inúmeros palavrões que nem me dei ao trabalho de lê-los por completo. Agora eu me lembrava daquela agenda, comprei ela depois de ler em um fórum para homens traídos que descarregar suas emoções em um papel era uma ótima forma de fazer com que a dor e a raiva passassem. Usei ela por alguns dias, mas logo a deixei de lado, pois quanto mais eu escrevia sobre Helena mais eu pensava nela. Depois de um tempo acabei superando o que a vadia me fez, mas decidi que nunca mais abriria o meu coração para alguém novamente.

—É a sua namorada? — Aina perguntou com a voz divertida, me trazendo de volta ao mundo real.

—Esposa — deixei escapar.

A mulher no banco ao meu lado arqueou a sobrancelha, surpresa com o que acabei de dizer.

— Você é casado?

—Não sou mais — respondi secamente, evitando que ela continuasse com aquelas perguntas, mas Aina era persistente.

—O que aconteceu? Ela não aguentou o seu mau humor?

Eu não queria levar aquele assunto a diante. Falar do passado me trazia dores que eu apenas queria esquecer.

—Não tenho que dar explicações da minha vida pessoal para você. — Franzi o cenho, na tentativa de parecer irritado, mas meu peito pesou por responder Aina  naquele tom. — Está aqui para aprender sobre a savana e não para fazer fofoca — completei. Por algum motivo, as palavras que saíram da minha boca doeram mais que as lembranças do meu passado.

Aina virou seu rosto na direção oposta, seus olhos murcharam e ela e cruzou os braços.

Me senti terrível por deixá-la magoada, mas aquele era um assunto delicado para mim. Era impossível falar de Helena sem que o ódio que havia em meu interior assumisse o controle — E eu definitivamente não quero que Aina veja essa parte de mim.

Decidido a ser o mais profissional possível, rasguei as folhas rabiscadas e entreguei a agenda para ela.

—Anote o que achar melhor, mas não interrompa a aula para fazer perguntas irrelevantes. — Minha voz estava séria e autoritária. Eu sentia um profundo desconforto no peito por tratar Aina daquela maneira e comecei a me questionar se valia a pena trocar uma angústia pela outra. Talvez, eu deva parar de relembrar o meu passado e começar a viver o presente.

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