Capítulo 2

Aina

Enquanto eu deixava a água quente do chuveiro lavar o meu suor do dia, tive uma pequena recordação do rosto daquele sujeito mal encarado.

Akin disse que ele se chamava Bruno... é um nome bonito para um sujeito tão estranho — pensei, distraída.

Deixando minhas lembranças de lado, saí do chuveiro e me enrolei na toalha lilás e felpuda que havia ali. Como nossa casa não era muito grande, todos nós dividíamos o mesmo banheiro. Eu não reclamava, pois tinha um quarto só para mim e isso bastava para que eu tivesse a minha privacidade.

Caminhei rapidamente pelo corredor estreito que levava em direção ao meu quarto e uma vez que estava dentro do meu pequeno refúgio, tranquei a porta e deixei minha toalha cair no chão. Fazia muito calor naquela época do ano, então eu costumava dormir como vim ao mundo já que ninguém entraria aqui sem que eu destrancasse a porta.

Sentindo uma pequena ansiedade, liguei meu Notebook e subi na cama que estava forrada com um lençol azul. Assim que o sistema iniciou, me apressei em abrir a caixa de e-mails e digitei uma mensagem para o tal "devorador de leoas".

..............

De: AinaNikosi94

Para: o_devorador_de_leoas_23cm

Assunto: Curso de biologia e sobrevivência.

"Boa noite, gostaria de saber se o curso ainda possui vagas disponíveis.

Estou interessada em me matricular."

..............

Com o coração acelerado, enviei o e-mail e mordi os lábios enquanto esperava uma resposta. Não demorou mais que dois minutos para que chegasse a notificação dizendo que eu possuía uma nova mensagem.

................

De: o_devorador_de_leoas_23cm

Para: AinaNikosi94

Assunto: Curso de biologia e sobrevivência [resposta]

"Boa noite, há apenas uma vaga."

..............

Franzi o cenho com a resposta curta e objetiva. O curso estava bem disputado então. Sem pensar duas vezes, cliquei em responder em digitei:

.............

De: AinaNikosi94

Para: o_devorador_de_leoas_23cm

Assunto: Curso de biologia e sobrevivência [resposta]

"Eu fico com a vaga."

...............

Depois que enviei o e-mail, comecei a me perguntar se não agi precipitadamente, mas agora era tarde.

...............

De: o_devorador_de_leoas_23cm

Para: AinaNikosi94

Assunto: Curso de biologia e sobrevivência [resposta]

"Ótimo.

O valor do curso será de KES 100.850 ou US$ 930.

O pagamento à vista pode ser feito em espécie ou através de transferência bancária.

A duração será de 15 dias e durante esse período você ficará na moradia que oferecemos ao aluno. Traga roupas leves, botas de caminhada, toalhas, repelente e protetor solar.

Um carro estará te esperando na entrada de Nakuru amanhã ao meio dia.

!!NÃO SE ATRASE!!

Atenciosamente, B. Barbosa.

.......................

Certo, isso foi muita informação...

É muita grana para um curso de apenas 15 dias, espero que eu aprenda alguma coisa que compense esse valor.

Por sorte, minhas economias eram mais do que o suficiente para pagar o curso sem que o meu orçamento fosse muito prejudicado. Desde que saí da faculdade, eu estava recebendo um salário para ficar no mercadinho enquanto não conseguia o meu emprego dos meus sonhos e como eu ainda morava com os meus pais, não tive muitos gastos — o que contribuiu para que eu juntasse uma boa quantia em apenas dois anos.

Apesar de estar animada para o curso, achei um pouco estranho não me pedirem dados pessoais ou no mínimo o meu nome. Talvez, fariam isso amanhã quando eu chegasse na instituição. De qualquer forma, seria melhor que eu fosse dormir já que precisaria estar na entrada da cidade até o meio dia.

*****

Depois de colocar todas as coisas úteis em minha bolsa de viagens, desci as escadas em direção ao primeiro andar. Eram onze da manhã e levaria apenas alguns minutos para o táxi que pedi chegar na entrada da cidade.

Quando passei pelo mercado vi Zuri, a namorada do meu irmão, arrumando algumas prateleiras. Ontem à noite antes de dormir pedi que Akin a chamasse para me substituir durante os quinze dias que eu passaria fora. Pelo visto, a garota chegou aqui bem cedo.

—Bom dia, você deve ser a Aina— ela me cumprimentou. — Me chamo Zuri. O Akin fala muito de você.

—Eu imagino — Sorri amigavelmente. — Está conseguindo cuidar de tudo sem problemas?

—Estou, eu aprendo rápido. Foi muita gentileza do Akin me chamar para trabalhar aqui durante um tempo. Está difícil conseguir emprego na cidade.

—Realmente, não são todos os lugares que estão contratando — respondi e olhei para a porta. — Bom, eu preciso ir, foi um prazer conhecê-la, Zuri.

—Igualmente — ela acenou para mim.

Sem perder tempo, corri para fora do mercado e entrei no táxi que estava me esperando. Foi um caminho rápido até a entrada da cidade. Não havia trânsito e chegamos em menos de vinte minutos. Me senti terrivelmente ansiosa quando desci do carro e olhei o ambiente ao meu redor.

Eu estava em um posto de gasolina no acostamento da via principal que conectava Nakuru às cidades vizinhas. Havia uma loja de conveniência que ficava aberta 24 horas e a não ser pelo jeep verde musgo estacionado ali, o lugar estava completamente deserto. Pelo visto, ninguém chegou ainda. Me sentindo um pouco insegura, encostei ao lado da porta da loja e esperei. O relógio de couro em meu pulso indicava que já passava das onze e quarenta e o lugar permanecia tão vazio que me fazia sentir em um daqueles filmes pós apocalípticos.

Será que estou no local certo? Bom, se não aparecer ninguém, eu darei um jeito de retornar para casa e esquecerei que isso aconteceu. Como não paguei nenhuma quantia antecipada, eu não ficarei no prejuízo.

Alguns minutos mais tarde, a porta da loja ao meu lado se abriu e alguém saiu de lá em passos apressados. Não virei meu rosto para ver quem era, mas pela silhueta que enxerguei de soslaio parecia um homem. Ele ficou parado a alguns metros de distância de onde eu estava pelos próximos dez minutos e eu comecei a ficar inquieta.

Resolvi encarar o sujeito para ver se o conhecia e meu corpo inteiro congelou quando me deparei com o homem estranho que fez compras no mercadinho na noite passada. Lembrei de Akin mencionando o nome dele... Bruno. Realmente, era um nome muito interessante.

Ele estava bebendo uma lata de energético enquanto observava a estrada principal onde alguns carros passavam. Parecia que estava esperando alguém. Por sorte, Bruno não percebeu a minha presença — ou ao menos fingia que eu não estava ali. Aproveitando que o homem estava distraído, o observei por um longo tempo. Ele usava uma calça marrom, regata branca, colete de safári verde-oliva e um coturno marrom que fazia seus pés parecerem absurdamente grandes. Sua barba ainda estava por fazer e seu cabelo castanho dourado de tamanho mediano ainda estava amarrado em um coque para trás.

Bruno virou seu olhar para mim, mas desviou rapidamente ao perceber que eu o encarava. O homem ficou tenso e mesmo com sua barba por fazer eu consegui notar seu maxilar se tensionando enquanto ele encarava o chão. Definitivamente, o sujeito não queria conversa.

Olhando para o meu relógio de pulso, percebi que já passava do meio dia e não havia mais ninguém ali. Exceto Bruno...

Uma mistura de medo e ansiedade me invadiu naquele momento. Será que o estranho antissocial realmente estava por trás da administração do curso e eu marquei um encontro com ele sem saber? Fiquei tentada a perguntar e caminhei na direção do homem, enquanto apertava a alça da minha bolsa de viagem que estava atravessada em meu ombro.

—Com licença? — chamei.

Bruno voltou seu olhar para mim e em seguida, suspirou.

—Está aqui por causa do curso de biologia? — ele perguntou com a voz grave e profunda, embora parecesse um pouco hesitante.

— Você é o devorador de leoas? — deixei escapar e senti vontade de morder a língua.

O homem franziu o cenho, como se tentasse entender o que eu estava falando. Me xinguei internamente e tentei consertar aquela situação.

— Ah... Estou aqui por causa do curso — expliquei, sentido o meu coração acelerar pelo nervosismo.

Bruno franziu o cenho com a minha resposta e suspirou, aborrecido, balançando a cabeça negativamente. Ele parecia perturbado com alguma coisa.

—Está aqui para me levar até as instalações do curso? — perguntei, na esperança de que o homem voltasse a sua atenção para mim.

—Tecnicamente, estou — respondeu, aborrecido. — Trouxe o dinheiro?

—Eu pago para você?

—O que acha?

Fiz uma careta com a resposta do sujeito.

—Devia ser um pouco mais simpático se deseja trabalhar com pessoas — disparei.

—Não estou fazendo isso porque quero... agora me dê o dinheiro e vamos embora. — Bruno estendeu sua mão.

Revirando os olhos, tirei a carteira do bolso da minha calça jeans e entreguei a quantia.

—Está tudo aí — falei, rispidamente.

Ignorando o meu comentário, o homem contou cédula por cédula até ter certeza de que o valor estava correto. Inevitavelmente me lembrei de ontem à noite quando fiz algo parecido com ele. Certo, era justo.

Depois de conferir a quantia pelo que me pareceu ser a quarta vez, Bruno guardou o dinheiro no bolso da calça e finalmente me olhou nos olhos.

—Precisa assinar o contrato. — Ele puxou uma caneta e um papel de dentro do seu colete e me entregou.

—Aqui? Pensei que eu assinaria os papéis do curso na instituição.

—Daqui você irá direto para o dormitório. Agora vamos. — Ele fez um sinal para que eu o seguisse e caminhou na direção do jeep verde-musgo que estava estacionado ali.

Aproveitei o momento para assinar o contrato, usando o capô do carro como apoio.

—Onde estão os outros alunos? — perguntei, ao perceber que estávamos sozinhos no posto de gasolina.

—Você não leu o e-mail? Tinha apenas uma vaga.

Certo, então os outros estudantes já estão no campus... — Concluí e subi no veículo de duas portas com teto de lona, me acomodando no banco do carona.

—E uma última coisa: não aceitamos reembolso. Se desistir do curso, perderá esse valor. — Ele se sentou no banco do motorista e pegou o contrato das minhas mãos, dando uma breve lida em minha assinatura antes de guardar o papel no bolso interno do seu colete.

Sem reembolso?

—Podia ter me avisado antes que eu assinasse o contrato.

—Estava escrito aí, se não leu a culpa é sua — retrucou e girou a chave, fazendo o motor ligar com um som estridente.

Bufei, irritada. — Espero que os dormitórios não fiquem muito longe, mal vejo a hora de me livrar desse motorista ranzinza.

O homem dirigiu para a entrada da cidade e seguiu pela via principal sem tirar os olhos da estrada um minuto sequer. Ele parecia tenso e incomodado, como se estar naquele carro fosse a coisa mais difícil do mundo. Por mais estranha que pudesse parecer aquela situação, eu não me sentia intimidada — pelo contrário — minha curiosidade sobre o sujeito aumentou ainda mais. Bruno não parecia uma pessoa má, na verdade, era muito perceptível que seu jeito ranzinza era causado por algum problema que ele devia estar enfrentando em sua vida pessoal, talvez, ele só acordou com o pé esquerdo. Seria melhor pegar leve com o homem e não o julgar apressadamente.

O jeep percorreu a via principal por mais de uma hora e continuou por uma estrada de terra que parecia entrar cada vez mais para dentro da vegetação. Bruno se manteve em silêncio o tempo inteiro e eu também não iniciei nenhum assunto, fiquei apenas observando a vegetação rasteira e as acácias distantes que se estendiam pelo horizonte. Estávamos próximos de alguma reserva florestal, eu percebia isso pelos animais que apareciam nos arredores da estrada vez ou outra. A paisagem era bonita, mas acabei cochilando durante um trecho e só acordei quando o veículo parou.

—Chegamos — Bruno disse e saiu do carro.

Assim que desci do jeep, percebi que mais à frente havia um pequeno chalé com paredes e telhados de madeira. Era uma construção bem simples em formato quadricular, possuía apenas uma porta e duas janelas na parede da frente que estavam protegidas por uma cortina azul do lado de dentro. O lugar era completamente deserto, não havia nenhuma construção nas proximidades, apenas terra árida e arbustos, com algumas árvores salpicando a paisagem aqui e ali.

—Onde estamos? — perguntei, um pouco confusa.

—No seu dormitório.

—O que? Meu dormitório fica no meio do nada?

—É um curso de sobrevivência na savana, esperava um shopping center e um restaurante ali na esquina?

—Mas... e os outros alunos? Eu devia conseguir enxergar o chalé deles também, não é? — perguntei, aflita. Aquilo não fazia sentido algum e meu coração estava começando a palpitar. Eu estava no meio do nada com um homem estranho em frente à uma casa pequena que mal parecia ter energia elétrica.

—Você é a única aluna — respondeu, impaciente.

—O que?!

—Eu disse que só havia uma vaga disponível.

—Espere aí... uma vaga disponível queria dizer uma vaga em todo o curso? — minha voz estava trêmula e eu podia sentir uma leve falta de ar pela aflição do momento.

—Exatamente... e você também saberia disso se lesse o contrato. — Ele pegou o papel dentro do seu colete verde-musgo. — Se quiser desistir do curso, saiba que não devolverei o dinheiro.

—Mas que filho da puta! — Eu me exaltei e tentei tirar o papel das mãos do homem. — Vou rasgar esse contrato e enfiar no seu...

—Regras são regras, Aina Nikosi. Eu estou protegido pela lei — ele me interrompeu, levantando os braços para que eu não pudesse alcançar o contrato. Infelizmente, o homem era vários centímetros mais alto que eu, o que me deixou em desvantagem. —Sei que o tema do curso é sobrevivência na savana, mas vou dar um conselho para sobreviver no mundo: não assine um contrato sem ler, alguém pode te passar a perna.

—Como você acabou de fazer comigo? — franzi o cenho.

—Eu não te enganei, você ganhará o seu diploma no término do curso como em qualquer outro lugar.

—Quem é o diretor da instituição em que você trabalha? Eu quero falar com ele.

Após refletir por alguns minutos, o homem me entregou um cartão de visitas. Não parei para ler as informações que estavam escritas, apenas peguei o celular em meu bolso e liguei para o número. Eu iria tirar essa história a limpo.

Bruno me observava com um olhar divertido e achei estranho ver um traço de felicidade naquele rosto que estava com o cenho franzido desde que o encontrei. Depois de aguardar alguns segundos, a ligação começou a chamar e o toque estridente de um celular da Motorola começou a apitar em algum lugar próximo. Não acredito.

Com um sorriso irônico, Bruno tirou o celular do bolso da calça e atendeu. Imediatamente, sua voz ecoou em meu ouvido.

—Aqui é o diretor do curso de sobrevivência na savana, em que posso ajudar?

—Vai se foder! — gritei e desliguei a ligação.

Aquilo não podia ser real. Como fui tão imprudente a ponto de me matricular em um curso sem ao menos checar as informações? Tudo bem que eu estava ansiosa, mas eu devia ter percebido que havia algo errado pelo nome daquele e-mail.

—Se pretende ficar, sugiro que entre, se acomode na casa e descanse. Começaremos a aula assim que o sol nascer amanhã.

—Você será o meu professor? — franzi o cenho, temerosa pela resposta.

—Não tem mais ninguém aqui — Ele deu de ombros.

—Puta que pariu... ficaremos naquele chalé apertado também? — Gesticulei irritada para a construção de madeira.

—Sim — respondeu sem reservas.

Meu cérebro entrou em pane. Essa era de longe a pior situação em que eu me meti.

—Olha, se quiser ir embora, é só seguir a estrada. — Bruno apontou para a faixa de terra que havia há poucos metros dali.

Eu não era louca para ficar no meio do mato com um homem estranho dividindo um chalé onde mal cabia uma pessoa. De repente, ir embora e deixar meu dinheiro para trás me pareceu a melhor solução.

— Quer saber, isso foi uma péssima ideia — suspirei. — Eu vou embora.

—Não vou devolver o dinheirinho.

—Enfia o dinheiro no cu! — Mostrei o dedo para ele e me virei, caminhando apressadamente até a estrada de terra.

—São quatro horas de caminhada. Só espero que chegue na cidade antes da chuva — gritou.

Olhei para o céu, disfarçadamente. Não havia nenhuma nuvem carregada nas proximidades. Com certeza, o desgraçado estava querendo me enganar outra vez, mas eu não vou cair no seu joguinho de novo. Eu voltarei para a cidade e contratarei algum profissional para me ajudar a resolver essa situação estúpida em que eu me meti.

— Eu voltarei, e vou trazer uma penca de advogados! — gritei.

Assim que pisei na estrada de terra, peguei meu celular e disquei o número de Akin para pedir que ele viesse ao meu encontro, mas para o meu azar ele não atendeu. Droga. Provavelmente, está distraído com a presença de Zuri no mercadinho. Ao que parece, estou por conta própria nessa estrada vazia que parece não ter fim. Meu subconsciente me alertava que seria mais seguro voltar para o chalé, mas ignorei aquela ideia completamente.

O Bruno que se foda! — pensei, enquanto seguia a minha jornada pela estrada deserta que levava em direção ao norte.

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