Capítulo 3

Daisy não era tão irresponsável quanto sua irmã mais velha costumava afirmar. Tudo bem que às vezes falhas aconteciam, mas, em sua defesa, chegar atrasada ao trabalho fazia parte da sua função dentro da empresa. É lógico que seu cargo se restringia à realização de serviços de pesquisa por e-mail, telefone e elaboração de planilhas e gráficos. Trocar o sono por horas e horas assistindo à sua série favorita não condizia com suas obrigações. No entanto, antes de ser funcionária, ela também era cliente. Então...

— Outra vez, Daisy? — A chefe tentou soar como uma general repreendendo seu soldado. Tudo um fingimento, é claro. Lígia era uma pessoa que exibia uma postura rígida, mas tinha um coração tão caloroso quanto um dia de verão.

— Desculpe. — Juntou as mãos em frente ao corpo e curvou-se um pouco, um hábito adquirido de sua mãe e que sempre se acentuava quando passava muito tempo com a família do lado materno. — Perdi a hora. Prometo que não acontecerá novamente.

— Nessa semana, né? — Daisy sentiu as bochechas esquentarem. — Bom. Enviei o relatório por e-mail. Por favor, reveja as alterações. — Lígia virou-se para ir embora, mas antes apontou para a blusa da funcionária, suja de um líquido amarelo. — Acho melhor você passar água antes que ela manche.

Nem mesmo as mãos em tom de respeito conseguiram esconder o desastre daquele incidente. Diferente do anterior, o esbarrão não teve qualquer relação com o seu dom. Na verdade, tratava-se da união do relógio correndo contra o tempo, olhos atentos no celular e uma pessoa em seu caminho com um copo de suco de laranja na mão. Pronto! A fatalidade estava formada e ocorrida: o líquido respingado com bastante extravagância em sua blusa branca, um pedido de desculpas acordado às pressas e cada um seguindo seu caminho.

Após alguns minutos no banheiro e a infelicidade ao perceber que trabalharia o dia todo com uma mancha alaranjada parecendo um alvo de dardos na altura da barriga, Daisy, enfim, deu andamento às ordens da chefe.

O vai e vem de um expediente normal já estava a todo o vapor. Como sempre, em uma determinada semana do mês, os relatórios de novos assinantes e evasões mexiam com a estrutura da empresa. A concorrência feroz parecia uma característica não somente relegada aos streamings, como também entre os funcionários. Daisy, por sua vez, não compactuava daquela euforia, não por descaso ou indiferença, mas sim por manter a mente focada somente em suas funções. Seu sonho, seu objetivo estava bem mais adiante do que valores numéricos. Na verdade, encontrava-se naquela empresa, mas em um escritório num andar bem mais alto do que o seu.

— Só preciso arranjar um jeito de subir... — comentou consigo mesma, com o olhar fixo na direção do elevador.

— Vai para algum lugar? — Giovani apoiou o corpo na mesa de trabalho da amiga, a postura despojada combinando com as roupas simples e, ao mesmo tempo, elaboradas, algo que somente o programador conseguia unir: tênis e camisa social.

            — Para o último andar. — Voltou sua atenção para o amigo de alguns anos, um companheirismo surgido na sala de espera enquanto a tensão de um dia de entrevista para emprego os envolvia.

            — De novo essa história?

            Excluindo a proprietária do sonho, existiam somente duas pessoas que conheciam o objetivo de Daisy: Giovani e Dahye, sua irmã mais velha. Claro que nunca fora a intenção da assistente de pesquisa revelar seus desejos mais profundos. No entanto, esquecer seu diário embaixo do travesseiro em vez de guardá-lo no seu esconderijo permitiu que a curiosa primogênita burlasse a regra da invasão de privacidade.

— De novo. De novo. De novo. Não vou desistir, amigo. Quero chegar ao último andar.

— Isso pode demorar um pouco, afinal você é apenas uma pesquisadora.

— Não tenho pressa. — Deu de ombros, aceitando os fatos. Para conquistar o andar desejado, alguns passos deveriam ser dados. Primeiro, e talvez o mais importante, manter seu emprego a qualquer custo. Que o seu dom não causasse mais constrangimento, desejou.

— Se pelo menos você visse alguma coisa...

Mesmo conhecendo as variantes do tal dom, o programador hábil e competente teimava em demonstrar seus anseios, como se assim pudesse alterar o inalterável.

— Você sabe que não funciona assim. Não tenho controle de quando, como e por que as visões acontecem, muito menos com qual objetivo.

— O objetivo, nós já estabelecemos. A intenção é te fazer passar vergonha.

Os sons dos colegas de trabalho se misturavam ao barulho das impressoras e aos telefones em pleno uso.

— Nem sempre. Lembra daquela vez que achei a minha carteira?

— Situações raras. Pelo jeito — apontou para a blusa — hoje a intenção não foi tão legal assim.

— Dessa vez foi um acontecimento normal da minha vida.

— Nada na sua vida é normal, Daisy. Quem em sã consciência enxerga que o sexo será uma merda, e ainda assim continua na cama com o cara?

— Ele beijava bem. E já determinamos que não consigo escapar do desfecho. De um jeito ou de outro, sempre o encontro. — Baixou o tom de voz quase num sussurro quando, provavelmente, uma inimiga atravessou seu campo de visão. Se olhares soltassem dardos, como nos desenhos, na certa seria atingida no alvo alaranjado. — Acho melhor você ir falar com ela.

— Não vai adiantar. — O suspiro profundo e resignado escapou pelos lábios dele. Não se deu ao trabalho de procurar a pessoa citada por Daisy. Aquela era uma história antiga, mas com ares de iniciante. — Já está tudo esclarecido entre nós. Somos colegas de trabalho.

— Deve ser minha culpa...

— Não. Nem começa com essa lamentação. Deixei bem claro várias vezes que tipo de relacionamento nós temos, Daisy. Se ela não consegue enxergar ou aceitar que homem e mulher podem ser somente amigos e confiar em minhas palavras, então não temos mais nada para conversar.

Por mais que Giovani insistisse naquela postura, correta para alguns, mas, na certa, equivocada para a mulher que habitava os desejos mais profundos do amigo, Daisy compreendia muito bem sua parcela de culpa. Algumas pessoas possuíam dificuldades em aceitar que não havia romantismo entre os dois. A amizade os guiava desde o primeiro contato.

Se fosse correta, ou melhor, se não dependesse tanto assim de Giovani para desabafar suas lamúrias e conquistar um enorme toque de incentivo para não amaldiçoar aquele dom, talvez afastar-se um pouco dele pudesse tornar tudo mais amigável entre ela e a sua suposta inimiga.

— Sinto muito. Aguente mais um pouco, porque, quando eu enfim conseguir um namorado, talvez tudo se resolva e ela perceba que somos somente amigos.

— Ela não deveria me aceitar baseado na sua vida, e sim nas minhas palavras. Além disso... — bagunçou o cabelo dela, mesmo que o gesto nem chegasse perto de mexer os fios lisos e pesados, carinho infantil    que Daisy odiava, algo que ele fazia questão de executar quando o intuito era perturbá-la — você namorando? Tá aí algo que eu quero muito presenciar. Acho que posso contar nos dedos de uma mão os caras com quem saiu.

— Eu sei, mas.... — Outro ponto em que a sua dependência de Giovani era crucial.

— Tudo bem, amiga, já conversamos sobre isso. Mas, em um determinado momento, você precisará confiar em alguém, assim como seu pai confiou na sua mãe quando eles se conheceram. Da mesma maneira que fez comigo.

— Levei quase um ano para te contar, Gio.

Como poderia revelar seu dom sem conquistar risadas e olhares céticos? Inúmeras vezes já tentara e, no fim, quando enxergava sua história chegando aos amigos, namorados ou estranhos e sendo vista como algo inacreditável, até mesmo um tanto alienado, Daisy voltava atrás, afirmando se tratar de um enredo de alguma série.

— Mesmo assim contou, não contou?

Prestes a responder ou talvez elucidar novamente a dificuldade que foi confiar e acreditar naquela amizade, o semblante de Daisy atingiu o “modo estático”, uma situação que o Giovani já tivera o prazer de presenciar algumas vezes e compreender muito bem do que se tratava.

Para quem testemunhasse a cena, enxergaria somente olhos amendoados cor de mel fixos num ponto específico, mas longe de ares sonhadores. Não havia como descrever exatamente que tipo de expressão Daisy exibia, talvez uma mistura de dor, espanto, força, felicidade e azedume. Nem mesmo a pesquisadora, depois de um momento raro de celular em mãos – situação que Giovani amou – e agilidade dele em tirar uma foto, conseguia decifrar seu sentimento.

Na verdade, não havia nada com que comparar – além do semblante do pai – sua expressão. Não obstante, uma coisa podia afirmar, mais uma visão se aproximava, e tanto Giovani como Daisy torciam para que constrangimentos não fizessem parte do quadro.

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