Capítulo 4

Novamente, o final daquela visão foi constrangedor, uma mistura de vergonha alheia com lágrimas e risadas em excesso. No entanto, havia uma diferença quase palpável e satisfatória que deixou Daisy com o coração acelerado.

Na verdade, bastou somente a união de algumas palavras – “previsão”, “futuro”, “lenda” e “dom” – para que a irmã nem mais nova ou a mais velha permitisse que a esperança dominasse suas emoções

— Gio... — A voz soou num sussurro crescente.

— O que foi dessa vez? — Segurou a amiga pelos ombros, virando-a em sua direção.

— Gio...! — O som era cada vez mais alto e ambicioso.

— Desembucha, garota!

— Um cara falando ao telefone sobre lenda, dom, futuro.... — O discurso desarranjado e esperançoso saía com respirações curtas.

— Calma. Respira. — Ela seguiu a ordem, mesmo que seu coração teimasse em desobedecer-lhe. — E você acha que tem relação com o seu caso?

— Pode ser. — Mais uma pausa necessária. A visão ainda fervilhava em seus olhos, agarrava-se em sua memória.

Giovani não desejava ser o pessimista da equação, mas às vezes não lhe restavam alternativas.

— Não sei, Daisy. Nós trabalhamos numa streaming que possui roteiros originais de diversos gêneros. Pode ser somente o enredo de algum filme, série, sei lá. Pode ser tanta coisa.

— Eu sei, Gio, mas não custa nada tentar. Sabemos que não existe lógica nas visões e que, às vezes, elas me ajudam. Será que dessa vez não seja exatamente isso?

A esperança era uma faca de dois gumes, ele pensou enquanto encarava o semblante ansioso dela. Se realmente não havia qualquer propósito ou benefício em ter aquele dom, por qual motivo permitir abertamente aquele poder na vida da pessoa? A ideia de esse cara ter alguma resposta era tão convidativa quanto uma piscina gelada num dia quente. Entretanto, essa mesma água fria poderia exibir uma camada esverdeada pelo mau uso.

— Você está certa. Não custa tentar, mas primeiro vamos organizar o que temos em mãos. — Ela concordou com a cabeça. — Conte-me exatamente o que viu e ouviu. Concentre-se, pois só temos alguns minutos.      

— Certo. Por algum motivo, estarei perto do escritório da chefe. Esse tal cara estará de costas para mim, parado no corredor, falando ao celular sobre uma lenda que ele está pesquisando a respeito de prever o futuro. Eu paro por um instante, escuto mais alguns segundos e, quando faço menção em chamá-lo...

A cadência da voz da pesquisadora morreu igualmente ao seu sorriso.

— E? — Giovani, apreensivo, aproximou-se.

— Vem mais um fim trágico.

— Lógico que vem. — O bufo de incredulidade saiu mais elevado do que o previsto. — Mas quem é esse cara?

— Não faço ideia. Não consigo ver o rosto dele.

— Consegue se lembrar da roupa dele? Talvez a gente consiga encontrá-lo. — Como Daisy estava submersa em seu delírio, ele percebeu que alguém deveria tornar um pouco racional toda aquela situação.

— Camisa branca.

— Nossa. Bem fácil essa parte.

— Não é hora para o sarcasmo. — Mesmo envolta pela fantasia, conseguiu exibir sua insatisfação com o comentário do amigo. — Lembro-me bem da voz dele.

— Uau. Mais fácil ainda. — Sim, ele estava perdendo um pouco a compostura, mas nem sempre manter-se no papel de pragmático era uma tarefa fácil.

— Gio. — O aviso estava tão nítido quanto as lâmpadas de emergência espalhadas pela empresa.

Tá. Parei. Bom, vamos lá. Já sabemos que não existe a possibilidade de mudar nada, certo? Então que tal você pegar o máximo de informações durante o encontro? Concentre-se nisso. E vamos torcer para ter qualquer relação com o seu caso, pois tudo pode não passar realmente de um enredo da próxima série de fantasia.

Quando o telefone de Daisy tocou e sua presença foi solicitada na sala de Lígia, as peças daquele quebra-cabeça começaram a fazer sentido. Depois de um “foco” e “boa sorte” expressado com forte entusiasmo por Giovani, a moça de descendência oriental e espanhola seguiu o seu destino.

Os minutos seguintes transformaram-se em uma contagem inquietante. A chefe competente explanava sobre relatórios, gráficos e metas as quais ela pouco compreendeu. Na verdade, nem fez questão de manter a mente voltada para aquelas questões, importantes em qualquer outro momento do dia, do mês, do ano, até mesmo para alcançar o seu sonho. Seu raciocínio estava preso como um chiclete velho e bolorento grudado embaixo da cadeira da escola. Nada além da sua missão – que, daquela vez, mais do que nas outras, precisava ter um pouco de sucesso – ocupava sua mente.

Depois do que pareceu uma eternidade, mas não chegou nem a cinco minutos, Daisy conquistou a liberdade. O trajeto até sua mesa foi executado com muito cuidado e esmero. Passo a passo e olhos atentos como uma águia em um voo de caça tomavam conta dos seus sentidos. Por um segundo, o final daquele encontro lhe voltou como um flash. Contudo, ela preferiu ignorar. Não haveria mudanças, como bem sabia, então que mais uma vergonha alheia crescesse em seu currículo.

Seu alvo, enfim, apareceu bem diante dos seus olhos. O coração dela aumentou como uma bexiga nos lábios de uma criança. Como bem apontou Giovani, tudo poderia se tratar de uma mera coincidência de palavras e situações.

Entretanto, havia anos Daisy buscava respostas. Quantas vezes saíra à procura de pistas e se deparara somente com o vazio? Diversas. Mesmo que seu pai tivesse lhe dito em incontáveis momentos que ninguém tinha conseguido uma justificava concreta, além de “não sei”, ela nunca perdera a esperança de mudar aquela ótica dentro da sua família.

Tinha que haver um motivo!

Bem próximo do seu objetivo, Daisy ergueu o tronco numa postura de ataque, aprumou seus ouvidos e diminuiu os passos. Suor escorria por suas costas, como uma perfeita atleta num final de treino intensivo. A vergonha se aproximava, assim como, talvez, alguma resposta. Preciso ver o rosto dele, exigiu a si mesma.

As costas largas do seu algoz gritavam por sua mão, exigindo um toque no ombro, um cutucão sem qualquer delicadeza ou educação. Encarou a camisa branca, o cabelo curto num tom bem costumeiro, castanho-escuro, a mão direita segurando firme o celular rente à orelha, enquanto as palavras escutadas antes eram novamente pronunciadas. “Previsão”, “futuro”, “lenda” e “dom”.

Guardou as pistas já conhecidas na memória e se preparou para as novas. Excluindo o que já havia “visto”, com nenhuma informação relevante aquele homem lhe presenteava. Na certa, calça jeans, sapatos escuros e um corpo talvez bem cuidado não lhe davam qualquer pista.

Quase a uma distância ínfima, Daisy ergueu o braço, levando sua mão direto ao seu intento. Porém, como nada na vida dela parecia ser fácil ou até mesmo monótono, o seu fim chegou de acordo com o previsto.

O funcionário mais inconveniente de toda a empresa, aquele bem impertinente e “sabichão” veio sabe-se lá de onde e interrompeu o momento excruciante, colocando bem em frente aos seus olhos um celular exibindo um vídeo. O conteúdo se desenrolava com bastante determinação, assim como o homem misterioso iniciava uma caminhada para longe.

Contudo, para sorte dela, e talvez como uma primeira mudança no rumo das situações, um ponto bem relevante se sobressaiu: o tal cara segurava um copo de suco de laranja, algo que suprimiu o seu desejo de cometer um dos pecados capitais ao ouvir o funcionário atrevido completando sua vergonha.

— Você viu que alguém postou na internet seu vídeo fazendo xixi nas calças?

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo