Capítulo 2

— E aí? Está muito ruim? — Giovani puxou uma cadeira próxima e sentou-se ao lado da amiga, colocando sobre a mesa a bebida preferida dela: café com calda de chocolate e leite, quanto mais espumoso melhor.

— O que você acha? — Daisy tinha os olhos fixos na tela do computador, tentando exibir uma postura indiferente, quando, na realidade, a vergonha havia se instalado por todos os lados desde o incidente. Sentiu o aroma do seu vício e aceitou desviar um pouco sua atenção.

— Não acho que...

— Giovani — ela interpelou o comentário sem sentido, afinal poderia fingir desinteresse, mas estava longe de ser uma pessoa surda. Os buchichos flutuavam ao redor dela.

— Certo. Desculpe. — Ambos saborearam suas bebidas, Giovani com seu café bem forte e amargo.

— Dois dias já se passaram, e ainda sou o assunto do momento.

— Se quiser, posso mudar isso, talvez andar com a braguilha aberta ou enviar algum vídeo de sacanagem no grupo dos funcionários.

— Você já fez isso. — Havia um tom de resignação inconfundível na voz da amiga.

Não foi um dos melhores momentos da vida do melhor programador da empresa, mas, em sua defesa, recebeu vários apoiadores e seguidores após o pequeno descuido. Bebida e celulares definitivamente não combinavam.

— Desculpe por não a ajudar naquela hora, na verdade acabei piorando.

— Está tudo bem, Giovani. Você não teve culpa, e nós sabemos muito bem que não dá para mudar os fatos. — Nem mesmo o doce de sua bebida conseguia diminuir a vergonha da sua “bexiga solta”.

Quanto mais tentava lutar contra a realidade, mais Daisy se machucava. Essa era a verdade da situação, um fato que ela nunca desejou e de que, infelizmente, não conseguia se livrar.

Senhor Lair, pai de Daisy, costumava chamar de dom, uma aptidão passada de pai para filha sem qualquer justificativa ou uma sequência lógica. Afinal, dentre as quatro irmãs, somente a assistente de pesquisa de uma plataforma de streaming foi “abençoada” com aquela habilidade.

— Por que eu, pai? — Essa foi a primeira pergunta entre as demais que viriam com o tempo, ainda no auge dos seus sete anos.

— Não sei, filha. — O senhor encarou o rosto da filha mais nova, reconhecendo os traços da incredulidade com a situação, algo que acontecera com ele muitos anos antes, quando tivera o primeiro contato com a herança de família.

— Para que serve isso? Como faço para parar? O que os outros irão dizer? Por que não aconteceu com as minhas irmãs? — As mãos estavam enganchadas na cintura fina, numa pose de pura imaturidade, a face úmida pelas lágrimas derramadas.

— Daisy, venha aqui, minha menina. — Como a mais obediente da turma, ela seguiu o comando. Os olhos cor de mel, herdados do pai e motivo de orgulho, exibiam pontos vermelhos devido ao choro excessivo. — Não tenho respostas para todas as suas perguntas. Assim como você, também não entendo muito bem como funciona, mesmo depois de todos esses anos. Seus tios, meus irmãos, também não receberam esse dom. Na verdade, ninguém da nossa família sabe exatamente como surgiu e o motivo.

— Mas eu não quero isso, pai. Não tem como parar?

— Eu também não queria, Daisy, e infelizmente não tem como parar. Há anos procuramos respostas, fazemos pesquisas, e ainda não encontramos nada. Assim como eu, seu avô, sua bisavó e tantos outros que já passaram pelo que você está sentindo agora, temos somente que aprender a lidar com as consequências, às vezes boas, outras não.

— Como hoje... — Baixou a cabeça, escondendo a vergonha e a decorrência daquela aptidão ilógica.

— Exatamente. — Ergueu o rosto da filha com delicadeza. Seu pai fizera o mesmo gesto com ele, lembrou-se.

— Eu sabia o que iria acontecer, tentei me esconder, até mesmo mudei os meus horários, mesmo assim levei uma bolada que nem sei de onde veio e perdi o meu dente. Olha aqui! — Apontou para a famosa “janela” na boca de uma criança e permitiu que o choro recomeçasse.

Lair a trouxe para dentro do seu abraço, aceitando aquele drama em excesso. O dente em questão nem deveria estar mais ali, pensou. Já passara da hora de trocar pelos mais resistentes, e a bola desgovernada tinha surgido para fazer esse trabalho.

No entanto, não era esse fato que trazia lágrimas e mais lágrimas para a menina de sete anos, e sim o que implicava todo aquele movimento. E, infeliz ou felizmente, o senhor de compleição forte e coração gentil conhecia muito bem aquela parte.

Assim como o pai, Daisy teve suas primeiras visões por volta dos seis anos. De início, pensou se tratar de um sonho iguais àqueles a que assistia nos desenhos. Depois, estranhou que esses tais “sonhos” se concretizassem. Achou “legal” e, até certo ponto, divertido. Por um tempo, guardou segredo da família, pois, dentro de sua lógica infantil, parecia ter superpoderes, e eles deveriam ficar escondidos.

Contudo, nem todos os acontecimentos foram tão cômicos como imaginava; alguns bem trágicos, principalmente para uma menina que mal compreendia muito bem o que aquele dom representava.

Finalmente, depois de um evento bem calamitoso ocorrido na porta da escola, o qual ela até tentou desviar, compreendeu que necessitava de ajuda. Naquele dia, uma pomba bem-posicionada trouxe gargalhadas dos coleguinhas de sala e lágrimas de Daisy.

E, mesmo após tantos anos, com a compreensão quase completa com relação ao seu dom, Daisy, às vezes, voltava a ser aquela menininha chorosa sentado no colo do pai, quando não coberta de vergonha, como no caso do banheiro ocupado.

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